- O Globo
Citar e ressuscitar Goebbels (ainda) não passa despercebido. Tampouco (ainda) foi tratado como bússola aceitável
Em final de novembro passado, poucas horas antes de subir ao palco para um recital em Halle, Alemanha, o pianista Igor Levit foi dar uma última checada em seu e-mail. “Seu porco judeu”, anunciava uma das mensagens. Caso ele não desistisse de se apresentar, seria morto ali mesmo, no palco da sala de concerto lotada. Levit, de 32 anos, nunca havia recebido ameaça de morte tão precisa, apenas ataques em mídias sociais por ser um cidadão ativo e crítico.
Sentiu raiva ao sentar ao piano. Mas tocou, protegido por complexo esquema de segurança armado às pressas. Conta que sentiu medo só depois — e não por ele, mas pelo seu país de adoção, a Alemanha, que o acolhera ainda criança dentro de um programa para famílias judias egressas da antiga União Soviética. “Apesar de tantos avisos, o Estado continua a fechar os olhos para o racismo, o antissemitismo, o extremismo de direita, o terror”, escreveu em contundente artigo publicado no diário berlinense “Der Tagesspiel”. Ele alerta que já passa da hora de só falar em democracia. “Nós — tanto os cidadãos como o Estado democrático — precisamos agir”. No dia seguinte à ameaça recebida, a “Appassionata” de Beethoven e as “Variações Goldberg” de Bach lhe soaram diferentes. A música e o músico fazem parte da mesma vida.
Levit é considerado o grande virtuose de sua geração, com calendário fechado para bem além desta década e uma carreira que talentos do passado só costumavam atingir depois dos 50 anos de vida. Ainda assim, ele se considera primeiro um cidadão, depois um europeu, e só por fim um pianista. Tem pouca paciência com quem defende a ideia de que o artista pode, ou deve, manter-se acima do rugoso cotidiano da vida. “Tremendo erro”, explicou no jornal que publicou seu libelo, “Somos responsáveis pelo mundo em que vivemos. A Lua não pode ser uma alternativa. E a música não pode ser Ersatz nem para a verdade, nem para a política, muito menos para a liberdade”.
Levit acompanha a atualidade internacional de forma insaciável, conhece de perto os avanços dos negacionistas da história e dos terraplanistas de geografia. Não deveria mais se espantar com aberrações retóricas. Afinal, foi em discurso perante o Bundestag de Berlim que um deputado alemão de extrema direita, Alexander Gauland, procurou minimizar o horror nazista: “Hitler e os nazistas são apenas um apêndice em nossa história nacional de mais de mil anos”. (Apêndice esse que deixou o Holocausto, a eutanásia e 40 milhões de mortos em seu rastro).
Ainda assim, a emulação das ideias de Joseph Goebbels com citação quase literal de um discurso do ideólogo da propaganda hitlerista, feita pelo secretário especial de Cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, deve ter deixado o pianista atônito. Citar e ressuscitar Goebbels (ainda) não passa despercebido. Tampouco (ainda) foi tratado como bússola aceitável para domesticar a cultura e a produção intelectual de um país em 2020 — nem mesmo no Brasil de Jair Bolsonaro. Tanto assim que, pressionado de todos os lados mas com uma delonga que fala alto, o presidente acabou por defenestrar Alvim.
Foi pouco, foi tarde, e cortou-se apenas o galho mais espinhoso.
“Muitas pessoas públicas, políticos, formadores de opinião, lideranças nacionais parecem ainda não terem compreendido que estamos passando por um severo deslocamento das normas democráticas”, concluiu Levit. Ele teme que a deixar prosseguir este curso, o antissemitismo, o racismo, o ódio se expandirá na Alemanha. E do anonimato atiçado do mundo virtual, a malta digital pode não precisar mais se esconder. Primeiro a internet, depois a rua. Primeiro o ficcional, depois a morte real do inimigo construído.”
Ainda bem que qualquer poder humano pode ser resistido e mudado pelo ser humano, como ensina Ursula K Le Guin. Em famoso discurso no National Book Awards de 2014, a celebrada autora anunciou tempos duros pela frente e falou da necessidade de “escritores que tenham a memória da liberdade, e de realistas de uma realidade maior”. Resistência e mudança começam na cultura e na arte, e todo regime não democrático sabe disso. Daí a ascensão de Joseph Goebbels.
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