- O Estado de S.Paulo
O costume de realizar cultos em edifícios públicos é ilegal, intolerante, usurpador
O Estado moderno exige três monopólios para evitar o morticínio generalizado: o uso exclusivo da força física contra a virulência dos indivíduos e grupos (assassinatos, roubos, sequestros) e defesa coletiva na guerra ou tensão internacional. Só o Estado pode prender corpos e treinar soldados para batalhas. A segunda exclusividade a temos nas formas jurídicas. Só o Estado pode editar leis. O terceiro monopólio reside nos impostos. Apenas o mando estatal tem o direito de os exigir. Nenhum particular tem legitimidade para prender, obrigar a obediência à lei, recolher contributos. Tais monopólios não podem ser aplicados de modo imprudente.
Os limites do poder surgiram nas primeiras cidades. O controle social perde força se ocorre abuso. A natureza humana exige respeito e liberdade. Recordemos que o poder absoluto corrompe absolutamente e, assim, mina a própria base da obediência.
Spinoza, grande autor ético, longe de ser otimista ingênuo afirma que nenhuma sociedade subsiste “sem governo (imperio) e força, sem leis que moderem e controlem o apetite do prazer e das paixões”. Mas a ordem pública erra ao exagerar no uso da força. “A natureza humana não suporta ser constrangida de maneira absoluta. Como diz Sêneca, o Trágico, ‘governos ferozes não persistem muito tempo, o poder moderado permanece, violenta imperia nemo continuit diu; moderata durant’” (Tratado Teológico-Político, capítulo 5). A advertência volta no capítulo 16: “Ninguém conserva um poder violento, (...) pois é quase impossível que a maioria dos indivíduos concorde com um absurdo” desses. O governo deve possuir força para comandar. Logo, é preciso que a sociedade lhe transfira a potência para que ele exerça a soberania à qual todos devem obedecer, livremente ou por medo. Lemos na mesma página: “Democracia é a união dos homens em um todo que possui direito soberano coletivo sobre tudo o que está sob seu poder”.
Nenhum setor privado desafie o Estado, mas não opere o governo em nome de agrupamentos sociais, religiosos, econômicos, bélicos. A religião, por exemplo, se unida ao Estado, dele parasita os monopólios essenciais. Ela tenta concorrer com a soberania, enfraquece de modo absurdo o poder público.
A Igreja Católica tentou controlar corpos e mentes, receber impostos, definir normas para todos os cidadãos. No Tratado de Westfalia ela foi banida do horizonte diplomático, embora até hoje conserve influência significativa. O seu alento foi dado por concordatas com diversos governos, contraditórias ideologias e formas jurídicas. Entre os acordos lamentáveis sublinhemos o de império com o governo de Hitler, o Tratado de Latrão e outros que lhe permitiram sobrevida. Desde a doutrina da soberania indireta do papa formulada pelo cardeal Bellarmino, ela reivindica dos governos privilégios legais, financeiros, educativos.
Sua intolerância no Brasil se deu, entre muitas técnicas de pressão, na famosa Liga Eleitoral Católica (LEC). O rebanho lia ao entrar no templo os nomes dos vetados por serem liberais, socialistas, espíritas, protestantes, agnósticos. A LEC desapareceu, mas a Igreja apoiou muitos regimes desde que vantagens fossem por ela auferidas. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) abençoou o golpe de 1964 e o AI-5. Só a minoria corajosa de bispos, padres, religiosos e leigos enfrentou o poder de exceção.
Hoje a democracia recebe ameaças nos Estados Unidos, na Europa e na América do Sul, por uma onda clerical de origem protestante. Na era Vargas procissões católicas eram reverenciadas nos palácios por dirigentes do Executivo, do Legislativo, do Judiciário. O Cristo Redentor é um Coração de Jesus e simboliza a soberania espiritual da Igreja sobre o Estado. Mas mesmo então havia certa distância e decoro no comércio entre os domínios.
A frágil democracia é hoje erodida nos palácios governamentais, legislativos e do Judiciário. O absurdo chega ao patético. O costume de realizar cultos em edifícios públicos é ilegal, intolerante, usurpador e criminoso – atenta contra a República, a igualdade de todos perante a lei. E vem de longa data. Neste espaço já verberei tal atentado na Câmara Municipal paulistana. Recentemente o presidente da República efetivou com pastores e outros um ato religioso no palácio de governo. Gravíssimo desvio da norma constitucional, o feito passou em brancas nuvens. O Ministério Público fingiu nada ver, o que é mais do que absurdo: é ilicitude de sua parte.
E tem mais: em 18 de dezembro de 2019, no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o presidente do Supremo Tribunal, Dias Toffoli, autorizou uma reza para finalizar trabalhos do colegiado. O cúmulo foi a leitura aos presentes de mensagem redigida pelo cardeal Tempesta, do Rio de Janeiro. Cito para vergonha da cidadania democrática: “Que o Senhor abençoe essa nossa casa, esse CNJ, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. O CNJ não tem o direito de rezar por um ou outro campo religioso. Os seus integrantes louvem seu Deus nos templos ou moradias. A piedade imprudente insulta quem não partilha suas crenças.
O coletivo, no seu todo, ainda é movido pelo Estado, segue as leis do Estado, paga impostos ao Estado. É crime parasitar a soberania em favor de uma fé particular. Nenhuma seita, igreja ou movimento está acima do Estado Democrático de Direito. Os cultos usurpadores, praticados e assistidos com tibieza por autoridades, ameaçam o poder legítimo. Breve o mando estatal estará nas mãos dos “terrivelmente evangélicos” ou católicos. Serão abolidas a cidadania e a República. Em tal via teocrática não mais teremos presidentes da República, legisladores ou juízes, mas apenas sacerdotes que, imitando o Irã, dominam corpos e almas.
Eles governarão irresponsavelmente em seu brutalitarismo porque padres e pastores, como os reis absolutos, se corrompem absolutamente, pois só respondem diante do ser divino, quando morrem.
*Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros estados da razão' (Perspectiva)
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