- Valor Econômico
Os argumentos contrários aos cortes de juros são equivocados
A recessão no Brasil em 2020, associada ao coronavírus, será a mais disseminada da história recente, com enorme impacto no setor de serviços (63% no PIB). O segmento informal será o mais afetado, com forte redução da demanda por vários serviços. As projeções de contração do PIB já divulgadas alcançam até 5% e embutem recuo no 1º semestre e retomada no 2º semestre.
Nesse ambiente, a taxa de desemprego crescerá de 11% em dezembro para mais de 15%. Basta assumir que 20% dos trabalhadores por conta própria, sem CNPJ, perderão sua fonte de renda para se alcançar os 15% - a previsão do Goldman Sachs é de que a taxa de desemprego nos EUA aumente de 3,5% para 9%.
As propostas do governo para combater a crise divulgadas desde a semana passada já alcançam mais de 3,2% do PIB, muitas sem custo fiscal - o valor é inferior aos pacotes da maioria dos países, e.g., EUA (7% do PIB) e Austrália (10% do PIB). O governo ainda anunciará outras propostas, elevando mais o déficit fiscal e a dívida pública. Isso não é um problema, desde que os gastos sejam temporários. Manter a responsabilidade fiscal em 2020 seria equivocado.
Pelo lado da receita, as medidas incluem a postergação do pagamento de impostos e contribuições, bem como o direcionamento pelo BNDES de crédito para empresas com a utilização de fundos do PIS/Pasep e do FAT de R$ 30 bilhões. As medidas são positivas, mas os valores são muito inferiores à necessidade do setor privado.
Pelo lado das despesas, as medidas abrangem aposentados, pensionistas, beneficiários do Bolsa Família e trabalhadores. Esse apoio precisaria privilegiar a parcela dos quase 45 milhões de trabalhadores sem carteira ou por conta própria que perderá grande parte da sua renda e que não possui rede de proteção social. A proposta do governo de distribuir R$ 200 por trabalhador autônomo por três meses, totalizando R$ 15 bilhões, é insuficiente. A expansão do Bolsa Família para mais 1,5 milhão de pessoas é acertada, apesar de sua implementação não ser imediata. Os Estados e municípios serão beneficiados com suspensão do serviço da dívida, apoio para renegociação com bancos e recomposição do FPE e do FPM. Haverá também destinação de mais recursos para saúde e assistência social.
No ambiente corporativo, a dúvida sobre a duração da crise e sobre o aprofundamento da quarentena piora a capacidade de pagamento das empresas. Empresas grandes com intacta saúde financeira já experimentam aumento do custo de crédito. A maior demanda por empréstimos e a alta do risco de inadimplência das pequenas e médias empresas, em geral pouco capitalizadas, dificultarão o aumento ou mesmo a rolagem dos seus financiamentos, independentemente da alta dos juros.
Mesmo assinalando que a cobertura de ativos problemáticos é sólida e que o sistema bancário possui liquidez elevada, o Banco Central (BC) anunciou na 2ª feira medidas para garantir que o sistema continue líquido e capitalizado. Essas decisões alcançam R$ 1,2 trilhão (16,7% do PIB), superando em muito o programa de 2008 de 3,5% do PIB. Entre as medidas, destacam-se: novo depósito a prazo com garantias especiais; liberação de depósitos compulsórios e não dedução no capital de efeitos tributários decorrentes do overhedge.
As medidas tornam o sistema financeiro ainda mais estável, mas não aumentam o apetite a risco dos bancos e nem evitam o empoçamento desses recursos. As medidas dificilmente serão capazes, por si só, de direcionar recursos para as pequenas e médias empresas. Sem o Tesouro assumir parte relevante dos riscos, dificilmente a maioria dessas empresas terá sucesso no acesso ao crédito.
Em entrevista na 2ª feira, o presidente do BC sugeriu que, na atual crise, a alta dos juros dos empréstimos responde mais ao aumento dos custos de liquidez e de capital do que à taxa de juros básica. Sob o risco de o Relatório de Inflação de 26 de março comprovar essa avaliação, julgo que um corte da taxa Selic bem maior do que os 50 pontos base (pb) adotados na última reunião do Copom teria contribuído para reduzir os juros dos empréstimos e o custo de oportunidade dos bancos. Nesse sentido, um afrouxamento monetário adicional mínimo de 75 pb na maior brevidade possível contribuiria para irrigar o mercado de crédito e reduzir os gastos do Tesouro.
Tenho dificuldade de concordar com o comentário da ata de março do Copom de que, neste momento, eventuais dúvidas sobre a continuidade do ajuste fiscal possam apertar as condições monetárias e isso tornar relaxamentos monetários adicionais contraproducentes.
A principal dúvida é sobre a magnitude da recessão e não sobre a sustentabilidade fiscal. Quanto maior for a contração neste semestre e mais lenta e frágil for a retomada, piores serão os números fiscais nos próximos anos. Um maior corte de juros contribuiria para tornar essa dinâmica menos perversa.
Os argumentos contrários aos cortes de juros são equivocados. Uma eventual depreciação cambial dificilmente colocará em risco a meta de inflação deste ano e de 2021, ainda mais em um ambiente recessivo que tende a reduzir ainda mais o repasse cambial para a inflação.
Ademais, um afrouxamento monetário adicional talvez nem eleve a inclinação da estrutura a termo da taxa de juros, pois a curva de juros deixou de refletir os fundamentos, expressando mais a disfuncionalidade de mercado e as questões de liquidez.
Em suma, o governo começou a atuar para atenuar a recessão. Na frente fiscal, o déficit das contas públicas aumentará devido a menores receitas e maiores despesas. Isso não é um problema, se os gastos forem temporários. Na frente monetária, as medidas implementadas pelo BC contribuirão para manter a estabilidade do sistema bancário.
Não obstante, as condições de crédito para as pequenas e médias empresas piorarão se o Tesouro não assumir parte dos riscos. Continuo defendendo que um afrouxamento monetário adicional melhoraria essas condições significativamente. O governo precisa agir com celeridade para evitar que o cenário para 2020 e 2021 seja ainda mais negativo.
*Nilson Teixeira, sócio-fundador da Macro Capital Gestão de Recursos, Ph.D. em economia pela Universidade da Pensilvânia
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