quarta-feira, 25 de março de 2020

Merval Pereira - Transparência, presidente

- O Globo

Esconder doenças geralmente é fatal para as pretensões de qualquer candidato presidencial nas democracias

Parece absurda a decisão do presidente Jair Bolsonaro de não apresentar o atestado de que não se contaminou com o Covid-19, apesar de 25 pessoas de sua comitiva aos Estados Unidos terem testado positivo. Alegar que é uma decisão de cunho pessoal não é desculpa para um funcionário público, especialmente tratando-se do presidente da República.

O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, também errou ao dizer que as informações pertencem aos pacientes. Pode até ser, mas não quando esse paciente é o presidente da República. Temos no Brasil dois exemplos na nossa historia recente recente: o então ministro da Justiça do governo Geisel, Petronio Portela, tido como um potencial candidato à presidência da República na ocasião, escondeu um ataque cardíaco e acabou morrendo.

Tancredo Neves, já eleito presidente, mas temeroso de que os militares tentassem não largar o poder, escondeu uma dor que o levou ao hospital na véspera da posse. O que parecia uma diverticulite, acabou se mostrando um tumor, que o matou.

O governador de São Paulo, João Doria, mostrou o atestado de que seu exame deu negativo, assim como o prefeito paulistano Bruno Covas. Em qualquer país do mundo a saúde do chefe do governo é fato relevante, e esconder doenças geralmente é fatal para as pretensões de qualquer candidato presidencial nas democracias ocidentais, quanto mais quando no exercício do cargo.

É atitude costumeira em regimes autoritários ou ditaduras, que dependem da idolatria da imagem de seus líderes para se sustentarem. O caso mais recente é o de Hugo Chávez na Venezuela, que escondeu um câncer durante meses, que acabou matando-o.

O presidente Bolsonaro não se negou a revelar detalhes sobre a facada que o vitimou na campanha eleitoral, e já mostrou até mesmo o corpo com cicatrizes na televisão, numa atitude inusitada. O próprio Bolsonaro revelou, em entrevistas diversas, que não dorme direito desde que levou a facada, que tem pesadelos, às vezes chora à noite.

Foram revelações íntimas de um chefe do governo que passaram a ideia de um homem angustiado com sua saúde, mas revelavam também um presidente transparente, o humanizaram diante da população.

Todas as operações a que foi submetido foram anunciadas com detalhes, e uma possível nova cirurgia já foi admitida por ele mesmo. Seria inconcebível que essa atitude desabrida só tenha acontecido porque a facada lhe angariou simpatias, e sua vitimização pode lhe trazer ganhos eleitorais.

O Hospital das Forças Armadas em Brasília entregou às autoridades do Distrito Federal, por decisão da Justiça, a relação de todos os pacientes que testaram positivo pelo novo coronavírus, mas estranhamente deixou dois nomes de fora da lista, o que só faz aumentar a suspeita de que alguma coisa está sendo escondida do povo brasileiro.

Evidentemente que se o presidente Bolsonaro sabia que estava infectado ao sair abraçando seguidores e tirando selfies naquele domingo das manifestações bolsonaristas a seu favor, a irresponsabilidade terá sido muito maior do que se imagina.

Para agravar as desconfianças, que só existem pela falta de transparência, seu filho Eduardo Bolsonaro foi acusado por jornalistas da rede Fox de televisão dos Estados Unidos de ter dado uma primeira informação de que seu pai testara positivo para o Covid-19. Ele desmentiu posteriormente e tudo parece ter sido um mal entendido, possivelmente por causa do idioma, que ele não domina tão bem quanto apregoa.

Seria gravíssimo se o desmentido tiver sido sido feito para acobertar a verdade sobre a doença de seu pai. O presidente também colabora com a desinformação ao comentar que talvez tenha sido contaminado pelo novo coronavírus e nem mesmo notou, o que é possível mas pouco provável num grupo em que 25 pessoas foram contaminadas, a maioria por ter viajado com Bolsonaro no mesmo avião presidencial em que o secretário de comunicação Fabio Wajngarten, esse sim, irresponsavelmente, voltou ao Brasil já com os sintomas de ter sido contaminado pelo Covid-19.

Esperemos que a boa notícia de que o presidente não se contaminou com o novo vírus não seja desmentida pelos fatos. Nesse caso, Bolsonaro terá cometido o maior erro político de sua vida, que pode custar caro. A confiança do brasileiro em suas ações, que está em baixa segundo várias pesquisas de opinião, será inevitavelmente trincada.

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