O Estado de S. Paulo
Estudos sugerem que cruzadas contra a
corrupção fazem mais mal do que bem à democracia
Duas suspeitas graves de corrupção, uma
nova e uma antiga, movimentam o debate público brasileiro. A nova se refere a
irregularidades na compra de 20 milhões de doses da vacina
indiana Covaxin. O Ministério Público Federal chamou
atenção para o caso, em que pelo menos dois detalhes geram desconfiança.
O Estadão revelou
que o governo contratou as vacinas com um superfaturamento de 1.000%. E a
compra, diferentemente do que ocorrera em operações similares, foi intermediada
por um laboratório.
O deputado Luis Miranda, dos Democratas,
disse ao Estadão que
avisou Jair
Bolsonaro de possíveis irregularidades na compra das
vacinas, e mostrou uma troca de mensagens com um ajudante de ordens do
presidente. Bolsonaro, até onde se sabe, não levou o caso à polícia. Cabe à CPI
da Covid interrogar os envolvidos e apurar os fatos.
O caso antigo é o que levou à queda do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles. Ele é suspeito de participar de um esquema de exportação ilegal de madeira. O Coaf registrou uma movimentação “extremamente atípica” de R$ 14,1 milhões na conta do escritório de advocacia em que o ex-ministro é sócio da mãe.
Poucas coisas fazem mais mal à democracia
que a corrupção. Ela corrói um pilar dos regimes de liberdade, o laço de
confiança entre eleitores e eleitos. Em tese, a exposição dos corruptos faria
com que os cidadãos não mais os elegessem, melhorando a qualidade da
democracia. Uma pesquisa mostra, no entanto, que o efeito pode ser diferente
quando a luta contra a corrupção assume ares de cruzada, como ocorreu no Brasil
da Lava Jato.
A professora Nara Pavão, doutora em ciência
política pela Universidade americana de Notre Dame, acaba de concluir o
livro The Criminalization of
Corruption in Latin America: Prosecutors, Politicians and Voters during Lava
Jato. A obra, escrita com três colegas, mostra que a luta contra a
corrupção, para ser respeitada pelos eleitores, precisa mostrar eficiência e
imparcialidade. Segundo Nara Pavão, personagem do minipodcast da semana, é da
natureza de cruzadas como a Lava Jato – ou a operação italiana Mãos Limpas –
recorrer a exageros midiáticos. Tais exageros acabam por minar sua
credibilidade.
Mais que punir os corruptos negando seu
voto, os eleitores se desiludem com a democracia e se desmobilizam. Nara Pavão
acha que a corrupção não será tema dominante nas próximas eleições: “Bolsonaro
pegou a última onda. As pessoas estão cansadas de se mobilizar. O próprio
presidente contribuiu para isso. Quando chegou ao poder, formou-se a impressão
de que era mais do mesmo.”
Um segundo efeito é que, constatados os
exageros – às vezes acompanhados de violações da lei –, o sistema político se
rearticula e os investigados recuperam força. Aconteceu com o fujimorismo no
Peru, que chegou ao segundo turno numa eleição disputada. Com o Partido
Socialista espanhol, que chegou a ser apelidado de “CorruPSOE” e hoje governa o
país. E com o PT no Brasil. Lula disparou em pesquisa eleitoral recente, com
mais que o dobro das intenções de voto de Bolsonaro.
Os estudos sugerem que cruzadas contra a corrupção fazem mais mal do que bem à democracia. São como um remédio eficiente ministrado em dosagem errada. A bula recomenda apuração diligente em vez de estardalhaço e slogans, além de respeito ao processo legal. Investigar e punir os corruptos de forma justa e imparcial é a melhor maneira de promover a ética na política.
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