sábado, 26 de junho de 2021

João Gabriel de Lima - A dose errada do remédio certo

O Estado de S. Paulo

Estudos sugerem que cruzadas contra a corrupção fazem mais mal do que bem à democracia

Duas suspeitas graves de corrupção, uma nova e uma antiga, movimentam o debate público brasileiro. A nova se refere a irregularidades na compra de 20 milhões de doses da vacina indiana Covaxin. O Ministério Público Federal chamou atenção para o caso, em que pelo menos dois detalhes geram desconfiança. O Estadão revelou que o governo contratou as vacinas com um superfaturamento de 1.000%. E a compra, diferentemente do que ocorrera em operações similares, foi intermediada por um laboratório.

O deputado Luis Miranda, dos Democratas, disse ao Estadão que avisou Jair Bolsonaro de possíveis irregularidades na compra das vacinas, e mostrou uma troca de mensagens com um ajudante de ordens do presidente. Bolsonaro, até onde se sabe, não levou o caso à polícia. Cabe à CPI da Covid interrogar os envolvidos e apurar os fatos.

O caso antigo é o que levou à queda do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles. Ele é suspeito de participar de um esquema de exportação ilegal de madeira. O Coaf registrou uma movimentação “extremamente atípica” de R$ 14,1 milhões na conta do escritório de advocacia em que o ex-ministro é sócio da mãe.

Poucas coisas fazem mais mal à democracia que a corrupção. Ela corrói um pilar dos regimes de liberdade, o laço de confiança entre eleitores e eleitos. Em tese, a exposição dos corruptos faria com que os cidadãos não mais os elegessem, melhorando a qualidade da democracia. Uma pesquisa mostra, no entanto, que o efeito pode ser diferente quando a luta contra a corrupção assume ares de cruzada, como ocorreu no Brasil da Lava Jato.

A professora Nara Pavão, doutora em ciência política pela Universidade americana de Notre Dame, acaba de concluir o livro The Criminalization of Corruption in Latin America: Prosecutors, Politicians and Voters during Lava Jato. A obra, escrita com três colegas, mostra que a luta contra a corrupção, para ser respeitada pelos eleitores, precisa mostrar eficiência e imparcialidade. Segundo Nara Pavão, personagem do minipodcast da semana, é da natureza de cruzadas como a Lava Jato – ou a operação italiana Mãos Limpas – recorrer a exageros midiáticos. Tais exageros acabam por minar sua credibilidade.

Mais que punir os corruptos negando seu voto, os eleitores se desiludem com a democracia e se desmobilizam. Nara Pavão acha que a corrupção não será tema dominante nas próximas eleições: “Bolsonaro pegou a última onda. As pessoas estão cansadas de se mobilizar. O próprio presidente contribuiu para isso. Quando chegou ao poder, formou-se a impressão de que era mais do mesmo.” 

Um segundo efeito é que, constatados os exageros – às vezes acompanhados de violações da lei –, o sistema político se rearticula e os investigados recuperam força. Aconteceu com o fujimorismo no Peru, que chegou ao segundo turno numa eleição disputada. Com o Partido Socialista espanhol, que chegou a ser apelidado de “CorruPSOE” e hoje governa o país. E com o PT no Brasil. Lula disparou em pesquisa eleitoral recente, com mais que o dobro das intenções de voto de Bolsonaro.

Os estudos sugerem que cruzadas contra a corrupção fazem mais mal do que bem à democracia. São como um remédio eficiente ministrado em dosagem errada. A bula recomenda apuração diligente em vez de estardalhaço e slogans, além de respeito ao processo legal. Investigar e punir os corruptos de forma justa e imparcial é a melhor maneira de promover a ética na política.

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