O Estado de S. Paulo
Só os democratas poderão evitar o avanço da
erosão que hoje afeta o Estado brasileiro
Os militares sempre foram importantes
agentes políticos e cumpriram funções decisivas na vida nacional. Para
recordar: fizeram a República em 1889, foram reformadores com o tenentismo e a
Coluna Prestes nos anos 1920-1930, foram admirados e temidos, ganharam
prestígio e densidade institucional. Com o golpe militar de 1964, ajudaram a
que o País ingressasse num ciclo ditatorial que teve alto custo social e
político, prejudicando grandemente a imagem das Forças Armadas. Durante os anos
de chumbo, os militares foram vistos com temor, sem a admiração acumulada ao
longo da História.
Com a redemocratização, os militares
entraram numa fase de “neutralidade” e respeito constitucional. Voltaram a ser
elogiados pela postura técnica e pela disciplina.
Os dias correntes trouxeram à tona um
enigma: o que levou os militares a emprestarem seu prestígio e seus recursos ao
governo Bolsonaro, um ex-militar sabidamente indisciplinado, ignorante,
agressivo e sempre pronto a desafiar a corporação com atos e palavras?
Uma primeira hipótese já foi explorada: com o apoio ativo, os militares conseguiriam controlar o presidente e dar ao governo um suporte técnico adicional, que não viria do bolsonarismo, bastante conhecido por ser pobre de quadros e ideias. Não aconteceu.
Uma segunda hipótese afirma que os
militares foram seduzidos pela perspectiva de “empoderamento” e de protagonismo
governamental, recuperando o “salvacionismo” que repicou em vários momentos da
História nacional. Explorando as alegadas virtudes da disciplina e do preparo
técnico, meteram-se na política prática e enredaram-se nas malhas do poder.
A terceira hipótese é um pouco mais
tortuosa. Indica que o Exército, em particular, foi selecionado pelo presidente
para ser “testado” como instituição do Estado ou como dispositivo armado de
governo. A intenção teria sido incluir os militares num projeto de poder ao
qual eles se submeteriam, deixando os governantes de mãos livres para agir.
Como escreveu o general Santos Cruz em artigo publicado no Estado em 13/6, o jogo
seria viabilizado mediante “a tentativa permanente de arrastar o Exército para
o erro histórico de assumir um protagonismo político em apoio a uma aventura
pessoal perseguida de forma paranoica”.
O fato é que hoje, dois anos e meio depois
da eleição de Bolsonaro, os militares (as Forças Armadas) não mais se
distinguem do governo. Agarraram-se nele, entregaram-se a suas ordens e seus
desejos. Foram projetados para o centro da permanente crise política e
administrativa em que nos encontramos.
Consequência: passaram a correr o risco da
erosão como instituição, da perda de identidade e do papel previsto na
arquitetura constitucional do Estado brasileiro. Afinal, o presidente é um
demolidor de instituições e um apologeta da grosseria e do desrespeito. Os
militares, assim, estariam abandonando a responsabilidade e a inserção positiva
na vida nacional.
O que esperar a partir de agora? São cerca
de 6 mil militares no governo, muitos oficiais em cargos-chave e sustentando as
estripulias presidenciais. Há compromissos e lealdades evidentes, que parecem
soldar uma aliança que tem sido nefasta para o País.
O que sobrará do prestígio militar depois
de tantas demonstrações de violência verbal, formulações toscas e desorientação
explícita de um governo por eles apoiado, mas que não exibe nenhuma das
virtudes das Forças Armadas, muito menos um projeto estratégico de nação? Um
governo cuja atividade principal é disseminar boçalidades para redes
fanatizadas não está em sintonia com a lógica que pulsa na mente militar.
A erosão institucional pode causar quebra
de disciplina e hierarquia. O “caso Pazuello” é uma chaga exposta. O Exército
são os militares e as Polícias Militares, que formam “exércitos estaduais”
independentes dos governadores. É um rastilho de pólvora, pronto para explodir
caso se perca o controle.
Bem consideradas as tradições militares,
não é fácil vislumbrar um “sonho chavista” ganhando força no Brasil, um País
seguramente mais complexo que a Venezuela. Os militares não parecem “prontos”
para serem usados por um projeto pessoal doentio. Não têm sido treinados para
se submeter, mas para comandar. Seu lugar não é nos governos, nem nas praças
públicas.
Mas para que tudo isso seja de fato
contratado a política democrática precisa pulsar com vigor, emitindo sinais
claros de que há disposição para arrumar a casa e unificar o País. Tudo passa
pela emergência de uma articulação democrática plural, ativa e propositiva. É
mais do que encontrar uma “terceira via”: é criar uma força moderada e
reformadora, aberta e dinâmica, com ideias e programas claros.
O momento, portanto, exige muito mais dos democratas que dos militares. Sem os primeiros, os segundos ficam sem norte. Só os democratas poderão evitar o avanço da erosão que hoje afeta o Estado brasileiro e fornecer aos militares a possibilidade de repor sua função constitucional plena.
*Professor titular de teoria política da Unesp
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