sábado, 26 de junho de 2021

Carlos Alberto Sardenberg - Vai liberar geral

O Globo

 ‘Sessão de psicanálise, você diz: sonhei com Fulano/a, e não foi um sonho erótico.

Danou-se. O/a analista já sabe: foi erótico.

É clássico.

Vários ministros do STF que votaram pela anulação das condenações de Lula imediatamente acrescentaram: atenção, não vale para os demais casos.

Ou seja, vale.’

Comecei assim a coluna de 17 de abril passado. Naquele momento, o caso de Lula estava no seguinte ponto: o ministro Fachin, relator, havia decidido que o foro adequado para o julgamento de todos os casos de Lula era Brasília, e não Curitiba, sede da Lava-Jato. Assim, os processos estavam cancelados e deveriam recomeçar da estaca zero.

Queria evitar, com essa manobra, que a Segunda Turma do STF julgasse a suspeição de Sergio Moro no caso do triplex do Guarujá.

Não funcionou. A Segunda Turma seguiu esse julgamento e, por 3 a 2, numa votação liderada por Gilmar Mendes, considerou Moro suspeito e anulou a condenação no caso do apartamento do Guarujá.

De novo, vieram com a lorota de que só valia para aquele caso. Mas o caso foi ao plenário do STF — e este decidiu, por 7 votos a 4, manter a decisão da Segunda Turma: que Moro havia sido parcial na condenação de Lula no caso do triplex. Só se tratou desse caso.

Pois, no dia seguinte, o ministro Gilmar Mendes já tinha pronta uma decisão declarando Moro suspeito e parcial em todos os casos envolvendo Lula — o triplex, o sítio de Atibaia, o terreno para o Instituto Lula e o apartamento de São Bernardo.

O que há de comum em todos esses passos? Simples: em nenhum momento se discutiu se Lula era culpado ou inocente. As decisões de Moro, confirmadas em duas instâncias superiores, diziam: o triplex foi doado a Lula e reformado pela OAS sob orientação do ex-presidente e sua mulher, dona Marisa; a Odebrecht reformou o sítio de Atibaia, em presente para o ex-presidente; a Odebrecht comprou um terreno para ser a sede do Instituto Lula.

Tudo isso baseado em provas materiais abundantes e delações de executivos de empreiteiras envolvidas.

Foi assim mesmo ou é tudo mentira? A resposta do STF é mais ou menos assim: isso não é com a gente; o que sabemos é que Moro não devia ser o juiz, e o foro não deveria ser Curitiba; logo, volta tudo para o ponto de partida.

Reparem: Lula não foi inocentado. Denúncias e processos, em tese, recomeçam, mas obviamente prescreverão sem julgamento.

Fica só no ex-presidente?

É claro que não. Todos os demais condenados pela Lava-Jato, em casos de algum modo conexos aos de Lula, e praticamente todos são, poderão requerer os mesmos benefícios. Seria Moro um juiz parcial — como decidiu o STF — apenas com Lula? Por que não teria sido igualmente parcial com Eduardo Cunha ou Marcelo Odebrecht?

Vamos falar francamente: não se trata apenas de Lula, nem da Lava-Jato. O movimento em questão, com a liderança de Gilmar Mendes, tem o claro objetivo de desmontar todo o sistema de combate à corrupção.

Interessante que o presidente Bolsonaro, eleito brandindo a bandeira da Lava-Jato, está também empenhado em controlar e fragilizar os órgãos de combate à corrupção, como o Ministério Público, a Polícia Federal e o Coaf.

Isso ocorre porque o combate à corrupção foi longe demais, no bom sentido. Começou a apanhar os intocáveis, os donos das fazendas, como diria Roberto DaMatta. Ou, como já se disse, numa ótima definição: “Na verdade, o que se instalou no país nesses últimos anos, e está sendo revelado na Lava-Jato, é um modelo de governança corrupta. Algo que merece o nome, claro, de cleptocracia”.

Autoria de Gilmar Mendes, lá atrás. “Onde foi parar esse juiz?”, perguntou DaMatta em coluna neste jornal. Acrescento: e por que foi parar onde parou?

Fatos novos, certamente. Mas tão graves assim a ponto de levar ao desmonte de todo o sistema anticorrupção, numa clara combinação entre Judiciário e Congresso?

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