Folha de S. Paulo
Boric se curvou à vontade dos cidadãos,
saudando-a como expressão da democracia
A fala do presidente do
Chile, Gabriel Boric,
conhecidos os resultados do plebiscito sobre a nova Constituição nacional, o
alça ao diminuto rol dos estadistas democráticos que a América Latina conheceu
ao longo de sua conturbada e não raro trágica história.
Rejeitado por robusta maioria, o texto era mais do que uma proposta para substituir aquele herdado da ditadura pinochetista (1973-1990) e emendado pelos governos livres que a sucederam. Em mais de três centenas de artigos, expressava a utopia de uma esquerda democrática e renovadora que Boric encarna.
De fato, a sua eleição e a chamada Convenção Constitucional resultaram ambas da imensa vaga de protestos de 2019-2020, que os chilenos chamam de "el estallido" (o estrondo) e que pareceu destroçar um sistema partidário conhecido por sua solidez e previsibilidade.
Sem exceção, as siglas que haviam
vertebrado a disputa eleitoral desde o fim do cruento regime militar sofreram
uma sangria de eleitores; o sistema se pulverizou em um emaranhado de legendas
e movimentos. O ex-líder estudantil chegou ao Palacio de La
Moneda aos 35 anos, embora só tivesse recebido 25,8% dos votos no
primeiro turno e dependesse do apoio da centro-esquerda —cuja legitimidade ele
contestava— para se eleger na segunda rodada. Na assembleia escolhida para
redigir a nova Carta, com paridade de gênero garantida de antemão, os
representantes dos movimentos sociais prevaleceram sobre os políticos
profissionais.
O desfecho do plebiscito mostra que a
parcela organizada e politicamente ativa da sociedade não se confunde com as
preferências da maioria, tampouco a exprime, mesmo quando se enxerga como a sua
tradução mais legítima e generosa.
Em face da ofuscante vontade de seus
concidadãos, Boric a ela se curvou, saudando-a como expressão da força da
democracia chilena, apelou ao diálogo e aos acordos para superar as
"fraturas e dores" do país e se comprometeu a buscar com o Congresso
e a sociedade o "itinerário
constitucional" capaz de produzir uma versão que reflita o
sentimento majoritário dos chilenos.
Ao fazê-lo, mostrou vigoroso compromisso
com os valores e regras da democracia, que sempre se assenta no acatamento da
voz das urnas e na busca de convergências possíveis.
Tudo o contrário do que se tem aqui: um
presidente que não perde oportunidade para tratar adversários como inimigos,
fomentar a cizânia na população —até no dia em que se comemoram os 200 anos da
Independência— e fabricar suspeitas sobre as eleições que podem apeá-lo do
poder e sobre as instituições que zelam pelo respeito às escolhas da cidadania.
*Professora titular aposentada de ciência
política da USP e pesquisadora do Cebrap
2 comentários:
" Em mais de três centenas de artigos, expressava a utopia de uma esquerda democrática e renovadora que Boric encarna. "
Esquerda " democrática ". 🤔
A diferença entre um estadista e um oportunista arruaceiro é imensa.
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