terça-feira, 1 de agosto de 2023

Aylê-Saalassié Filgueiras Quintão* - Glotocídio é pouco!

As ministras do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber e Carmen Lúcia estiveram  a semana que passou no interior do estado do  Amazonas, precisamente,   em São Gabriel da Cachoeira, para lançar o texto da Constituição Federal,  de 1988, em nhengatu, língua indígena  por meio da qual  presume-se poder contatar a maioria dos povos que vivem  às margens dos rios amazônicos. 

Só no município de São Gabriel, que separa o Brasil da Colômbia e da Venezuela, falam-se 25 línguas das famílias aruak, tukano e maku. Em se tratando da língua portuguesa, a população é, no mínimo,  analfabeta funcional. O nhengatu é uma das quatro línguas indígenas  oficializadas no município  junto com o português, o maku e o tucano , usadas tanto do lado do Brasil quanto dos países vizinhos. A remanescencia dessas línguas deve-se, sobretudo, às  várias  associações e entidades civis, religiosas e indígenas    sediadas ali, e que se propõem a organizar aquela multiculturalidade .
 
Juntas, formam o que é conhecido na região  como a  Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), que funciona independente, associativamente, nos moldes do branco,  quase como uma assembleia, na qual cada nação indígena   se faz representada, sem comprometer suas atividades e organização cultural.  
Por isso, embora a Constituição em nhengatu possa ter sido festejada pelas autoridades  políticas locais,  aventa-se na comunidade que  ela  terá, entretanto, poucos  leitores por ali. O índice de alfabetização  é baixo, e aquelas  nações indígenas já tem uma estrutura comunitária ou tribal.   Teme-se, inclusive,  que a Lei do branco, na sua volubilidade,  vá causar  confusão entre os povos da  região. Se não gerar um dilema político, pode vir a ser recebida como mais uma agressão à cultura e à organização  das nações indígenas regionais.
  
Tem-se  dúvida  quanto ao simbolismo implícito: a presença das ministras do Supremo Tribunal  e a distribuição de   cópias do texto da Lei Maior do branco para aqueles povos enraizados  na região. Poderia ser interpretada por ali como uma bandeira de  vencedor,  tomando posse do  território do outro. De outro ângulo, inspirado em doutrinas de segurança nacional, poderiam ser vistas como  um desafio   às diferentes frentes potenciais invasoras que, vez por outra, anunciam  a autonomia regional?
  
A "Cabeça de Cachorro", como é identificada a região, é uma das áreas mais isoladas do Brasil. É cheia de  histórias e controversas. É rica em gás natural, as guerrilhas colombianas estariam  sempre tentando circular por ali, religiosos  de diferentes denominações e geólogos estrangeiros  circulam por ali. Já chegou-se a cogitar da ideia de um território autônomo e exclusivo.  Aliás, até  Che Guevara imaginou começar uma insurreição no continente por ali. 

"Estamos só de passagem", dizem os invasores , quando interceptados no alto rio Negro atravessando a fronteira para o Brasil, vindo da Colômbia ou da Venezuela.  A ordem dos militares é para a  interceptação :   "Aqui é o fim linha". A unidade militar do Comando de Fronteira , até há pouco tempo, era a única presença efetiva do Governo Federal na região:  Funasa, Receita, Ibama, Polícia Federal, Ministério do Trabalho,  estão  instalados por lá, às vezes, em uma única sala,  a maioria do tempo fechadas. 

As titulares da Justiça no Brasil levaram para os índios uma tradução da Constituição em  nhengatu,  uma língua, falada sobretudo, tão vacilante quando a Constituição do Brasil.  É como se insinuasse que os ensinamentos e regras sociais  contidos na lei do branco fossem  superiores   às praticadas na região,  apreendidas nas   culturas incubadas  nas matas e serras que cobrem aquelas fronteiras. 

Por meio dessa ação - não sei se intempestiva, ou não -  tenta-se dar um passo a mais na  aculturação e na integração, à Nação Brasileira, daquelas populações indígenas quase isoladas. A gestão do município obedece à um modelo  próprio.  Os prefeitos de São Gabriel , Santa Izabel, Barcelos e povoados menores por ali são, quase sempre,  indígenas.

Como uma das línguas oficiais em São Gabriel e Santa Izabel, o nhengatu  não é uma língua exclusiva de uma Nação Indígena. É constituído de   palavras de diferentes falas que se amalgamaram num idioma. Trata-se de uma língua geral,   surgida  ainda nos tempos do Império, a partir dos  padres, e retomada  por iniciativa do general Couto Magalhães, também etnólogo e historiador, que  procurava encontrar um meio termo entre mais de 150 falas  indígenas ao longo do  rio Amazonas e seus afluentes.   

Descobriu ele ainda que o tupinambá - uma variável do tupi - falado pelos índios entre Belém e o Maranhão, podia ser compreendido pelos índios do médio Amazonas e do  no Alto Rio Negro. 

Etnólogos brasileiros acreditam que com o nhengatu  poderiam ser  preservadas, parcialmente, as memórias de dezenas de línguas e culturas regionais.   Há centenas de histórias já narradas em Nheengatu, língua que vem preservando a memória coletiva ancestral, incluindo  mitos, preceitos e normas gerados, segundo os índios, por uma  entidade sobrenatural conhecida  por Jurupari , vista por religiosos brancos como o diabo.
  
No fundo,  o  Estado Brasileiro,  insiste na bandeira de  “uma só língua , um só país”.  Na medida em que a colonização avança, as línguas e culturas nativas vão sendo enterradas, cometendo-se, no mínimo,  um  "glotocídio", justificado ainda hoje  com a crença de que  a diversidade atenta contra a unidade nacional. Só em 1988 a Constituição assumiu que não se trata de “tolerar” o plurilinguismo, mas de fomentá-lo, pois longe de ser algo negativo, arquiva a riqueza do patrimônio cultural do Brasil.

O lançamento da Lei Maior do Brasil em nhengatu contou com o aval explícito  de uma comitiva integrada por  três ministras, a presidente da Funai, o diretor da Biblioteca Nacional e de professores  da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Não faltaram explicações de consistência duvidosa, até da Presidente do STF, ministra Rosa Weber, para quem ,  trata-se de “um passo em direção ao fortalecimento e à preservação de todas as demais línguas indígenas” - disse,  em um discurso formal no evento.

*Jornalista e professor

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Muito bom o artigo-notícia.