(A sociedade da minoria de espertos e da maioria de cegos)
Antecedentes
Nesse conciso ensaio, submete-se um conjunto
de sintéticas proposições sobre aspectos do funcionamento da política
brasileira e suas relações e impactos sobre a ação governamental e, em
decorrência, sobre a vida social dos brasileiros. Devido a um imperativo
lógico, como se perceberá adiante, o comentário dirige uma ênfase especial ao
Partido dos Trabalhadores e ao chamado “campo petista”, procurando refletir
sobre as razões que explicam, tanto a “resiliência” do Partido como os seus
espaços públicos de dominação. É uma agremiação que se mantém sólida por mais
de quarenta anos, atuando com eficácia e consequência, seja no tocante ao
número de filiados ou em relação à sua influente presença na vida política.
Enquanto isso, se examinado o tempo mais longo, à sua volta nascem e
desaparecem os demais partidos e, quando permanecem, são no geral relativamente
inócuos em suas atividades e somente demonstram apelo eleitoral em função de
fatos episódicos ou meramente conjunturais (como exemplo, o atual PL). Por que
existiriam essas diferenças de funcionamento entre os partidos?
A análise oferecida nesse exercício de livre pensar reflete a observação, ao longo de considerável período de tempo, dos eventos marcantes na trajetória daquele Partido (supostamente) de esquerda, mas também considera as facetas salientes de nossa história social e os reiterados descaminhos que caracterizam os esforços da sociedade. São descaminhos porque, incluindo o campo petista, sequer sabemos (e nunca soubemos) para onde desejamos conduzir o grande barco nacional. Ou seja, acentua-se aqui o (convicto) pressuposto sobre o qual está ancorado esse comentário – nunca tivemos, com alguma explicitação pública razoável, uma ideia de “projeto nacional”, ou destino estratégico, que a maioria desejasse alcançar em algum radioso dia futuro. Qual seria, de fato, o porto que desejamos algum dia ancorar? Que tipo de sociedade realmente ambicionamos? Ninguém sabe responder essa pergunta sob algum enfático convencimento, e que fosse solução aceita por amplos segmentos de seus concidadãos. E não existe nenhuma razão para imaginar que esse conhecimento esteja sendo fermentado em alguma usina de ideias, instituto de pesquisa ou nas brilhantes mentes dos melhores analistas da vida brasileira.
Sempre estivemos seguindo o vácuo acerca de
nosso futuro e, infelizmente, como se argumentará adiante, por razões diversas
assim nos manteremos por significativo tempo vindouro.
Por onde começar? Se for seguida a tradição
beletrista cultivada entre nós, o ponto de partida seria o papel das capitanias
hereditárias como o elemento fundador da desigualdade social brasileira. Sem
esse longo recuo ao passado, no entanto, talvez a mais adequada baliza temporal
tenha ocorrido em algum momento do século passado, quando foram desencadeados
tantos eventos decisivos de nossa história política. A ruptura institucional em
1930 poderia ser um deles e a posterior ampliação do Estado e sua crescente
capacidade intervencionista? Ou seriam os anos vinte, com a emergência do
modernismo e o tenentismo? A tumultuada década de 1950?
Ou então, deslocando o eixo analítico e
enfocando mais diretamente os processos econômicos e financeiros, deveríamos
nos debruçar sobre o longo ciclo de dominação dos interesses dos cafeicultores
paulistas e seu comércio, o nacional e, em especial, o internacional? Ou seja,
desde o Acordo de Taubaté (1906) e o esforço, por décadas, para manter a
política de valorização dos preços do café, até a sua decadência definitiva, no
decênio de 1960. Na realidade, esse seria um marco temporal que abriu o caminho
para aquele que, provavelmente, é o mais apropriado ponto de partida para
atender ao objetivo principal desse breve ensaio.
Sem minimizar os fatos citados, entre outros
igualmente incidentes em seus profundos efeitos na formação nacional, incluindo
o campo das mentalidades sociais, para os propósitos específicos desse
artigo, são os anos da ditadura militar, provavelmente, os mais relevantes para
interpretar o período contemporâneo. E, em particular, discutir os aspectos
políticos que aqui se pretende destacar. Seria o último meio século ou, talvez,
as duas últimas gerações, se estendendo por 50-60 anos.
Sem nenhum aprofundamento e em síntese
“desesperadamente breve”, o período autoritário compreendido entre abril de
1964 e 1985 promoveu, pelo menos, dois grandes efeitos principais. Primeiramente,
uma transformação radical na estrutura econômica, o país deixando de ser
primordialmente centralizado em torno do café e
emergindo, já na década de 1980, sob uma vibrante economia diversificada
e sobretudo urbana e industrial. Não obstante terem sido igualmente lançadas as
raízes da modernização agrícola, mudança que depois surgiria com imenso vigor,
no presente século.
Foi reestruturação que atraiu uma imensa
massa de migrantes rurais, em especial durante os anos setenta, seduzidos pelos
empregos e as promessas de melhor futuro. Se feita uma comparação separada por
vinte anos, por exemplo os anos acima citados, poderia indicar dois países
quase radicalmente distintos entre si. Em síntese, não obstante os desafios da
inflação crescente e o explosivo surgimento do “problema da dívida externa”,
ainda assim o regime militar aprofundou notavelmente os fundamentos da moderna
economia brasileira, em diversos âmbitos produtivos. Sob esse foco, foram
abertas diversas veredas que se tornariam promissoras para o futuro.
O outro aspecto a salientar, contudo, diz
respeito à política em geral e às nuvens sombrias e até trágicas vividas
naqueles anos. Sob o tacão militar e o autoritarismo implantado, diversas
forças sociais de contestação emergiram, entre elas as tentativas de formar
partidos que se opusessem à dominação castrense. Surgiu um partido de oposição,
o antigo PMDB, que permanece até hoje, mudado para MDB. Mas, sobre ele, esse
comentário nada analisará, pois se trata de grupo partidário sem nenhuma
ideologia ou programa, sempre foi apenas um fragmentado clube de arranjos
estaduais que se organiza a partir de interesses igualmente paroquiais e em
função exclusiva das regulares disputas eleitorais. Pode ter nascido sob
sedutoras promessas de progresso social pelas mãos de renomados políticos, mas
propostas nunca concretizadas em seus governos.
Próximo aos estertores do regime militar, em
1980 nasceu o Partido dos Trabalhadores, na famosa reunião realizada no Colégio
Sion, em São Paulo. Sua origem, assim insistem os historiadores, convergiu
piedosos, embora radicalizados, setores da esquerda católica, então dominada
pela Teologia de Libertação, além de variados setores da intelectualidade à
esquerda, defensores de quase todos os matizes ideológicos desse campo teórico
e político. A eles, majoritariamente, somaram-se os setores sindicais de trabalhadores
operários, uma parte importante resultante da industrialização paulista do ABC.
Dessa curiosa mistura emergiu um líder que paulatinamente foi se tornando
inconteste no Partido, Luís Inácio da Silva (ainda sem o “Lula” depois
formalmente incorporado ao seu nome).
Nos anos iniciais, durante a década de
oitenta, como seria inevitável em um agrupamento partidário autonomeado como
sendo “de esquerda”, foram muitas as facções e, em consequência, as disputas
internas eram incessantes, ruidosas e intensamente ideológicas, sendo
disputadas acidamente as leituras de mundo e as diretrizes, não apenas para a
ação partidária, mas também em relação às interpretações acerca da história
política da esquerda, socialista ou comunista. Como sempre foi típico em tais
campos políticos, desentendimentos quase físicos surgiam em função de uma
palavra ou vírgula nos textos gerais e públicos, depois raramente lidos e logo
esquecidos. Talvez, em toda a história petista, o único documento sobre o qual
ainda existe alguma lembrança é a “Carta ao povo brasileiro” (junho de 2002),
que adiantou as linhas gerais que autenticaram o único mandato realmente
bem-sucedido do atual Presidente, o Lula 1. Pois, não obstante a altíssima
popularidade ao final do Lula 2, entende-se que era avaliação positiva que
refletia o otimismo que foi sendo gerado durante os dois mandatos, sem que
fosse percebido pela maioria dos brasileiros que a derrocada econômica nos
mandatos seguintes (sob Dilma Rousseff) já corroía inexoravelmente os
subterrâneos da economia e resultaria no “impeachment” da então presidente, em
agosto de 2016 (1)
Não existindo a intenção de sintetizar a
riquíssima história do Partido, pois há vasta bibliografia a respeito, há
aspectos, contudo, que precisam ser enfatizados, ao analisar as mais de quatro
décadas de existência do PT e o sólido e quase inquebrantável “campo petista”.
Já adiantando que se trata, com o passar dos anos, de um domínio que chegou ao
impressionante nível de 30-35% do eleitorado votante, em todo o Brasil, não
obstante as variações regionais ou conjunturais. Embora igualmente destacando
que ultrapassar esse montante sempre dependeu de outros fatores ocasionais –
quem seriam os candidatos, a região, se eleições municipais ou em outro nível,
etc. Mas aquela proporção delimita um eleitorado que tem sido fiel e cativo,
quase sempre garantindo um segundo turno, quando a possibilidade existe no
espaço social sob disputa.
O primeiro aspecto a ser destacado diz
respeito ao lento, gradual, mas imparável “desfazimento ideológico” do Partido,
processo ocorrido, sobretudo, ao longo dos anos noventa. Sem sequer tentar
algum tipo de teorização a respeito, existe uma prova empírica irrefutável: a
revista do partido Teoria e debate,
iniciada em dezembro de 1987 (edição na qual um artigo prometia explicar o
próximo “tropeço do capitalismo”). Foi periódico que causou grande alvoroço em
um público leitor crescente até, pelo menos, o final dos anos 1990. Mas, logo
depois, no presente século, se transformou em órgão retórico de propaganda
governamental, com a entrada do Partido no poder federal, em janeiro de 2003, e
foi definhando gradualmente. A revista prossegue, mas quem, realmente, desperdiçaria
seu tempo lendo a publicação, quando se sabe que deixou de existir qualquer
senso crítico e rigor analítico por parte de seus colaboradores? Uma revista
exclusivamente laudatória, com fáceis aplausos para o governante de plantão, se
este for do Partido. Uma revista que no presente século lembra apenas
ditaduras, não regimes políticos plurais e democráticos. Retornando ao tema
inicial: quem, quando e como, no campo petista, ainda se importa com a
coerência política sustentada em “ideologia”?
Esse foco foi desaparecendo por duas razões
decisivas. A principal sendo o mesmo “desfazimento” da esquerda em geral,
internacionalmente, após a Queda do Muro. É campo político que não foi ainda
enterrado, mas foi se enredando em um labirinto de crescente confusão
interpretativa, pari passu com a
força da globalização e uma quase incontrastável afirmação capitalista em todo
o mundo, especialmente da segunda metade da década de 1990 em diante. Sob certa
surpresa, pois é uma inesperada contradição, foi um profundo enraizamento
capitalista estimulado, e depois assegurado definitivamente, sobretudo, pela
avassaladora presença no comércio internacional de um país formalmente dominado
por um partido comunista, a China. Não é tema desse breve artigo, mas se os dez
mais reputados e capazes intelectuais “de esquerda” do mundo se reunissem para
desenvolver uma resposta à pergunta “o que significa ser de esquerda
atualmente?”, provavelmente sairiam tiros e mortes e nenhuma conclusão comum
seria elaborada, sequer por dois deles.
Em afirmação direta, embora indelicada – no
presente século, agoniza uma ideologia considerada “de esquerda”, um fato que
certamente abalou profundamente o modus
operandi do Partido dos Trabalhadores no Brasil. Sem esse rumo, o que
fazer? Pois há um fato incontornável: os fundamentos ideológicos de um modelo
tradicional defendido pelos setores políticos à esquerda, necessariamente,
apontariam para uma sociedade futura, profundamente distinta e teoricamente
muito melhor. Seriam os alicerces de uma sociedade pós-capitalista. Mas, se
inexistirem aqueles pressupostos e seus princípios e valores, sem visão de uma
sociedade vindoura, ficaremos presos ao presente, o que afirmará logicamente a
ordem social existente. Para um partido autonomeado de “esquerda”, pode
representar a sua desmoralização no debate público.
Não se comenta detalhadamente aqui sobre
outro vetor para esse descaminho interpretativo no plano das “leituras de
mundo”, que foi a passagem, lenta e gradual, das gerações iniciais do Partido,
fortemente seduzidas pelos cânones tradicionais da esquerda e intelectualmente
sólidas, para as gerações atuais que detém o poder nas instâncias partidárias.
Afinal, trata-se da passagem do bastão de um Francisco Weffort, lá nos
primeiros anos ou, depois, uma Marilena Chauí, para, atualmente, quase anônimas
pessoas que podem até deter relevante autoridade política, mas jamais sequer
leram algum curto panfleto dos “clássicos do Marxismo”. Há um fato indiscutível
no âmbito partidário: houve uma perda dramática de qualidade discursiva e
capacidade analítica, tão bem evidenciada pela indigência intelectual
amplamente compartilhada pelos dirigentes do Partido, da atual presidente aos
quadros principais e mais conhecidos. Quem ainda ouve com atenção às
manifestações de algum quadro do Partido dos Trabalhadores, se não for o seu
líder principal?
Outra razão para o paulatino afundamento
ideológico é relativamente óbvio. O sucesso eleitoral do Partido dos
Trabalhadores, nascido com a heroica eleição de Gilson Menezes em Diadema e
também a curiosa eleição do prefeito petista na remota Santa Quitéria do
Maranhão, no longínquo ano de 1982, além de uma qualificada bancada federal de
oito deputados, seguiu em um crescendo. E consagrou-se com a vitoriosa eleição
presidencial de Lula 1, em outubro de 2002, quando finalmente se abriu uma
fabulosa e aparentemente inesgotável comporta, em particular, de postos,
posições, cargos e o bem remunerado exercício de alguma autoridade, qualquer
que fosse, na gigantesca máquina federal. Em outras palavras e em termos
práticos, emergiu com força imensa o campo da burocracia pública a ser ocupada
pelos novos detentores do poder. Incluindo suas possibilidades sedutoras e
irresistíveis, de poder, narcísica visibilidade e autoridade pública. E
dinheiro, às vezes, muito dinheiro. Para os milhares de militantes do partido, enfim
surgiam as chances significativas de mobilidade social.
E, como se sabe e é lei social consagrada na
Ciência Política, “onde há organização, há oligarquias”, o famoso dictum afirmado por Robert Michels há
mais de cem anos em seu clássico livro sobre os partidos políticos. A equação
formada pelo desaparecimento de algum norte ideológico sob alguma clareza
orientadora, o crescimento do partido, a disciplinada organização interna e a
chegada à esfera mais abrangente do poder (o governo federal), inevitavelmente
produziu a cada vez mais sentida necessidade de criar mecanismos de
eternização, de perenidade, gerando a férrea vontade (nada democrática,
insista-se) de manter o poder a qualquer custo. Sendo um partido que se tornou
rapidamente oligárquico, o monopólio de mando pessoal e exclusivo exercido por
Luiz Inácio Lula da Silva sobre todo o campo petista seria inevitável.
Ainda sobre o tema acima e suas nuances
explicativas, talvez possa ser acentuado, sucintamente, mais uma faceta que o
tempo petista foi moldando. É conhecimento primário e estabelecido que
potencialmente a via mais eficaz de “fazer política” é criar alguma evidente
polarização fundada em algo discernível, real e inteligível para a maioria dos
eleitores e cidadãos. A trajetória do MST ilustra admiravelmente bem o fato,
pois em boa parte de sua história prevaleceu o binômio “nós, os sem-terra,
contra eles, os latifundiários”. Com a modernização da agricultura, hoje
louvada por quase todos, o termo que seria o inimigo foi esfumaçando-se e, em
seu lugar, surgiu uma outra palavra, mas esta é, no geral, positiva para a
maioria da sociedade, o “agronegócio”. E a polaridade inicial foi deixando de
existir, com a organização dos sem-terra ficando apenas com o pincel na mão.
Não surpreende que esta foi luta social (a reforma agrária) que igualmente foi
perdendo o seu fundamento social e político.
É o famoso “nós contra eles”, corriqueiro na
política, em todos os lugares, Talvez tenham sido as religiões que
primeiramente desenvolveram esse aprendizado, para promover seu proselitismo
(“os deuses versus o mal”). O fato
também contribuiu para o sumiço ideológico petista, pois insistir na defesa do
socialismo e seus modelos então existentes, como a finada União Soviética, em
um país católico e conservador como o Brasil, jamais produziria votos
suficientes. É o que ocorre com um outro partido, que fala em “socialismo e
liberdade”. Não sairá nunca da mais minúscula margem da política, caso persista
com bandeiras tão etéreas, irreconhecíveis para os cidadãos. É preciso uma
polarização, digamos, robusta, terrena e visível, ameaçadora aos olhos do
eleitorado, ainda que possa ser concretamente falsa em seus fundamentos
empíricos.
Após seu nascimento, opor-se ao Governo
Sarney e seus políticos “tradicionais”, em meio ao desastre macroeconômico dos
anos oitenta, com seus fracassados planos de estabilização monetária ante o
descalabro da contínua alta dos preços, foi até fácil e trouxe lentamente mais
combustível para o PT, em termos de seu crescimento eleitoral. Com o
acirramento inflacionário, a outra face da polarização foi sendo modificada e,
nos anos noventa, foi primeiramente algo mais nebuloso para a população, pois
seria uma luta contra “o neoliberalismo”, alvo cuja leveza discursiva demorou
para ser mais visível e usada como arma da ação política.
O Partido logo acordou e, na virada do século
(particularmente após a assunção de Lula 1), encontrou a sua vítima favorita –
Fernando Henrique Cardoso e seu grupo de tucanos, os quais seriam responsáveis
por uma indefinida “herança maldita”. Logo se percebeu ser esta uma polarização
bem mais eficaz para os objetivos buscados. Como uma rápida ilustração, no
início de 1999, como um raio em dia de sol, pois eram extremamente tênues e
mal-intencionados os argumentos, um cacique petista, Tarso Genro, publicou artigo
na Folha de São Paulo, pedindo a
renúncia do presidente. Na época causou algum assombro, mas foi iniciativa, de
fato, destinada apenas a exacerbar a polarização almejada pelo campo petista.
Que fique claro, contudo, que essa construção
binária (o PT contra o PSDB) foi sendo também esmaecida no presente século, até
em função da lenta agonia do partido tucano. Assim, sem um inimigo evidente, o
espaço do PT foi também sendo fragilizado, embora tenha se mantido ainda
substantivo em função da figura exponencial de seu maior líder e a
operacionalidade cotidiana do campo petista. O reconhecimento da relativa
virada (negativa) em sua força pública se deu no ano de 2013. O qual será
registrado como aquele durante o qual o entranhado conservadorismo político da
maioria (ampla) dos brasileiros explodiu publicamente. Foi um terremoto
político e social tão surpreendente que forçou o então presidente do Partido
(Rui Falcão) a afirmar, pateticamente: “o PT não tem medo das ruas!”.
O que veio a seguir, nos anos recentes, todos
sabemos e não é preciso repetir nesse comentário. Inclusive a tentativa, algo
forçada, de promover novas polaridades para manter ativado o espezinhamento de
seus campos opositores e a fricção eleitoral.
Mas talvez seja útil citar um outro fator
relevante, antes de prosseguir e apresentar o objetivo principal e sua
interpretação. Trata-se de um “desfazimento” adicional, desta vez de boa parte
da base social original do campo petista, pois a irrefreável desindustrialização
brasileira foi retirando parte expressiva do operariado industrial que antes
apoiara o PT em suas disputas eleitorais, enfraquecendo os sindicatos e a
“máquina de votos” petista construída ao longo dos anos naqueles âmbitos. Em
seu lugar, foi surgindo paulatinamente outro forte segmento de apoio eleitoral
– os funcionários públicos. Essa inversão é conhecida, mas pouco pesquisada em
suas consequências, incluindo o impacto da partidarização sobre a eficácia da
ação governamental e as políticas públicas. Pois tem forçado o campo petista a
sempre apoiar, incondicionalmente e sob discursos frequentemente acríticos (às
vezes até infantis), tudo o que diz respeito à esfera estatal.
Assim chegamos a 2024, e o Partido dos
Trabalhadores e seus espaços de influência política e eleitoral, além dos seus
discursos dominantes, são quase radicalmente diferentes, quando comparados aos
anos iniciais de sua formação. Sumiu toda e qualquer referência a uma “outra
sociedade” e ninguém sabe o que pretende o Partido. Será que alguém ainda se
recorda do “outro mundo é possível”, bordão repetido aos gritos nos famosos
“fóruns sociais” de Porto Alegre (2001 a 2005)? Recorde-se igualmente que na
eleição presidencial mais recente, o candidato petista não citou uma linha
sequer sobre o que pretenderia realizar, se eleito. Uma candidatura sem
programa algum, para a perplexidade de muitos. E outros reveladores indícios
poderiam ser citados. Quase desapareceu a sua base de apoio “operária”
original, trocada pela burocracia estatal, bastando analisar os votos
oposicionistas em São Paulo, entre outros indicadores. Além do forte
enfraquecimento de seu apoio eleitoral nas grandes cidades e no Sul e Sudeste,
regiões trocadas pelo Nordeste, onde houve a derrama das “transferências
sociais”.
Na realidade, comparados os anos oitenta,
especialmente o período pós-Constituinte, e os anos posteriores, verifica-se
uma caricatural inversão política e geográfica, com os segmentos sociais
conservadores assumindo o Sul e o Sudeste, no lugar do antes imponente PT,
enquanto este migrou para o Nordeste e Norte, assumindo o lugar antes dominado,
no passado, pela Arena do regime militar, depois o PDS e, mais tarde, o PFL.
Antes, teria sido, na visão do campo petista, uma necessária transição entre “o
moderno versus os grotões”. Hoje, o que seria?
Sendo mais eloquente nas palavras, ante
tantas mudanças e fatos, alguns bizarros, reconheça-se à luz das evidências que
o PT se tornou o partido das esmolas e dos favorecimentos, como o Bolsa Família
e as dezenas de outras “bolsas” distribuídas à larga. Somente assim se mantém à
altura das exigências de sua encorpada presença na política brasileira.
Conselhos: a infantaria do exército
petista
Enfatizadas essas rápidas particularidades do
contexto contemporâneo, o ensaio se encaminha para a sua metade final. Pois
embora sejam todos os temas mencionados extremamente atraentes do ponto de
vista analítico e merecedores de pesquisa científica, quando ainda inexistente,
o objetivo dessa breve nota é bem específico. Trata-se, tão somente, de
registrar e descrever um dos diversos mecanismos desenvolvidos pelo campo
petista para ampliar a sua capacidade de influência na sociedade. Enquanto, ao
mesmo tempo, conquista novas partes do aparelho do Estado, contribuindo assim
para o objetivo precípuo, que é permanecer no poder.
Qual o estratagema que foi sendo aperfeiçoado
com o tempo, a partir de diversas experiências anteriores? Esquematicamente,
esse modelo de captura de novas esferas do poder (do municipal ao federal)
apresenta-se como é descrito a seguir.
O ponto inicial é o teste de uma “ideia
nova”, seja uma inovação nacional ou alguma importação de outras sociedades.
Ressaltando que o mais impressionante manancial dessas ideias e propostas nasce
do conjunto de ONGs europeias, cuja criatividade é espantosa. Igualmente
destacando que praticamente todas as novas ideias são defendidas, em suas
manifestações aparentes, em nome da democracia, mais igualitarismo social,
maior transparência, etc. Mas, em sua essência, o que é raramente explicitado,
são caminhos que pretendem desenvolver, em particular, formas de contestação
social e política contra o regime econômico dominante. Por exemplo, “orçamento
participativo”, “economia solidária”, “segurança alimentar”, “agroecologia”,
“saúde inclusiva”, “territorialidade”, “direitos humanos econômicos”,
“sustentabilidade” e até uma inacreditável “participação social na ciência”,
entre numerosos outros exemplos. Cada uma das novidades é analisada,
primeiramente, nos âmbitos internos do Partido, em seus fóruns de discussão. Posteriormente,
o teste é tornado público, para aferir se existiriam espaços favoráveis ao seu
crescimento, a partir da ampliada aceitação por outros segmentos sociais.
Se for esse o caso, entra em cena então o que
poderia ser intitulado de “máquina goebbeliana”.
Ou seja, a exaustiva repetição, nos mais diversos âmbitos, da nova ideia,
proposta ou expressão. O fato acaba enraizando a palavra ou expressão em
diversos espaços sociais, sendo, em alguma crescente proporção, “naturalizado”.
Um exemplo: “territórios da cultura” (um programa oficial já existente).
Explicado em sua simplicidade original, ninguém iria se opor a essa noção, a
qual apenas sugere que em diversas regiões (os “territórios”) existiria algum
tipo de identidade cultural particular e, uma vez sugerida essa identidade,
ainda que socialmente minúscula ou quase irrelevante, seria preciso
“preservá-la”, para ir formando uma “identidade nacional”, até ser concretizado
o mosaico “autenticamente brasileiro”, ou seja, o somatório dessas identidades
únicas ou específicas. Assim, aceita a expressão, basta esperar que a repetição
se amplie e, logo depois, ocorram os passos seguintes, descritos na sequência.
Se são noções objetivas com significado real,
assentadas em lógica empírica razoável, cuja difusão é racional, essas são
premissas descartáveis, sem importância e até irrelevantes. O que realmente
precisa ser avaliado é se a proposta “pegou” e vai sendo repetida e ampliada. O
que significaria, como exemplo, a defesa de uma “economia solidária,
territorial, inclusiva e sustentável”? Ninguém jamais definiria com precisão,
pois nunca existe um debate rigoroso a respeito. Não se trata de uma proposição
a ser analisada qualitativamente, em seu conteúdo e essência, mas apenas sob um
indicador quantitativo. Se vai sendo “naturalizada” e crescentemente repetida
nos variados desvãos da sociedade, em decorrência vale apostar nas etapas
seguintes.
Não é o caso de discuti-la exaustivamente
aqui, mas a citada noção de “território”, por exemplo, não faz o menor sentido
em uma república federativa sob o arranjo político e administrativo que
mantemos. Sob o nosso federalismo, difundir a noção de território tal como
existe no caso europeu é, em especial, a manifestação de profunda e obtusa
incapacidade de análise. Mesmo que existam coerentes territórios sob alguma
similaridade, no Brasil a segmentação que realmente é decisiva é a dos limites
municipais, conforme a tradição política do país. Os quais, raramente, se
superpõem aos limites de eventuais territórios. Mas quem realmente se importa
com esse debate? E já foram contratados mais de 500 agentes para atuar em cada
um dos “territórios de cultura” delimitados pelo Ministério da Cultura, sob
ações em si mesmas absurdas, pois serão incapazes de produzir qualquer
resultado prático em termos “culturais”. Embora, sem nenhuma dúvida, poderão
produzir bons resultados políticos e eleitorais. Junte-se a esses agentes
muitos outros, contratados sob outras esferas (por exemplo, o Ministério da
Saúde pretendendo contratar em torno de mil “agentes populares de saúde”) e
será possível antever resultados – eleitorais, sempre eleitorais, mas não em
outros campos da ação governamental.
São iniciativas que se encaminham para a mais
pura insanidade, o que parece não ter limite algum e pode atingir o infinito.
Uma ilustração adicional: o termo “agroecologia” não encontra definição
objetiva em lugar algum, não é um conceito ou teoria e, menos ainda, não se
trata de um modelo tecnológico reconhecível e que possa ser aplicado na
agricultura. Ninguém, rigorosamente ninguém, será capaz de provar o contrário,
e sua defesa no Brasil é absolutamente religiosa e cega. No entanto, apesar do
puro surrealismo que sua proposição representa, pois acaba sendo a “defesa do
nada”, já que é um ente inexistente, sob qualquer ângulo, o termo, desde o
final da década de 1980, foi se insinuando gradualmente, ganhou delirantes
adeptos e, aos poucos, seguiu o roteiro descrito nesse comentário. Lula 2 até
assinou uma lei instituindo o “plano nacional de agroecologia” e, absurdo dos
absurdos, chegou ao artigo 129 da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO)
relativa ao ano de 2023, sob o qual o Banco do Brasil deveria ter, como uma de
suas prioridades, incentivar programas de agroecologia. Como o banco apoiará o
que concretamente não existe? Assombro é muito pouco para expressar a absoluta
perplexidade ante a crassa ignorância que parece ser o guia geral dos
brasileiros. Estamos condenados a ser um país de idiotas?
Retorne-se ao ordenamento antes apontado como
sendo o propósito central desse breve ensaio. Aceita, em alguma proporção, uma
noção ou proposta que algum grupo social passou a defender, e sua difusão tendo
ocorrido razoavelmente, na forma de eventos, seminários, algumas publicações,
etc., então é preciso concretizar o passo seguinte, o que implica em algum grau
de formalização. O que ocorre, usualmente, em âmbitos inicialmente menores, por
exemplo, em um município.
Aqui, um exemplo espetacular é o caso do
“orçamento participativo” de Porto Alegre. Sob as noções de “participação
social”, “transparência orçamentária” ou, mais genericamente, da “democracia
participativa” então muito debatida internacionalmente, chegou-se à ideia do
“orçamento participativo”, um fascinante mecanismo implantado na cidade durante
quatro mandatos petistas, entre 1989 e 2004, mas logo desativado nas
administrações posteriores não petistas. Existe ampla literatura a respeito e
não se comentará sobre outros detalhes acerca do experimento. Talvez, apenas
para salientar a crueza dos ganhos políticos, é relevante citar que o PDT era,
disparadamente, o partido mais forte na cidade, mas o novo mecanismo, ao
envolver os setores sociais e aos poucos asfixiar os cabos eleitorais
pedetistas, acabou liquidando aquela hegemonia partidária anterior. E, também
gradualmente, o campo petista, como em outras partes do Brasil, acabou
consolidando na cidade a sua tradicional fatia de fidelidade, assegurando sempre
algo em torno dos citados 30-35% dos votos. Independentemente do candidato e
seus méritos, diga-se de passagem.
Dependendo da conjuntura política e das
possibilidades reais, seja no plano federal ou em espaços subnacionais, a etapa
a seguir pode ser ou formar um conselho ou, então, elaborar um “plano”.
Exemplo, um “plano nacional de ciência e tecnologia”. Ou ambos, formar um
conselho e este preparar a seguir algum plano para determinada área setorial.
Dependerá do tema e da conjuntura, mais ou menos favorável, para seguir
adiante. Em alguns casos, não cabe o plano, pois haveria outro pressuposto
(este remonta a Gramsci), já que o objetivo seria, de fato, cooptar setores da
sociedade para o campo petista. Foi (e tem sido) a proposta do chamado
“Conselhão”, uma simplória tentativa de abafar possíveis posicionamentos
críticos à administração petista, operação iniciada em janeiro de 2003. É
inacreditável que os “representantes da sociedade civil” convidados tenham
aceito tão docilmente o convite para integrar esse conselho, o qual jamais
produziu algo concreto e aplicável e nem mesmo discutiu seriamente algum tema.
Um simples mecanismo de neutralização política, que funcionou razoavelmente,
até todos se cansarem da encenação posta em marcha.
Produzindo algum resultado concreto, em
termos de discussões e, novamente, de enraizamento de uma “narrativa” em torno
da emergente ideia ou proposta, como os citados “territórios da cultura”,
organizar um conselho formal, apoiado pelo Governo Federal, se torna algo
imediato. Insere-se o novo conselho em um ministério e, a seguir, são apontados
os militantes para coordená-lo, os quais convocarão, ato contínuo, os
“representantes da sociedade civil”. Na realidade, esses serão, quase sempre,
também militantes petistas ou, quando menos, simpatizantes do partido capazes
de repetir a mesma orwelliana
“novilíngua” instituída nesse âmbito. Formalizado o novo conselho, realiza-se
durante um certo período as audiências públicas, as reuniões periódicas com os
conselheiros e, finalmente, as estridentes “conferências nacionais”, caríssimos
eventos usualmente realizados em Brasília e envolvendo milhares de
participantes (2-3 mil), com todas as despesas pagas, mobilizando pessoas
vindas de todo o país. Mas quase todos ativistas partidários, ressalte-se. Não
é preciso ser cientista social para imaginar a “energização” política produzida
por esses encontros na direção do objetivo principal – difundir regionalmente o
Partido, no retorno dos participantes às suas origens. E, mais adiante,
contribuir para o sucesso de seus candidatos nas refregas eleitorais.
Os conselhos nacionais (sob Lula 3 já foram
formalizados mais de 50 deles) precisam, como o passo seguinte, elaborar um
“plano nacional”, disso ou daquilo. Normalmente, documentos recheados de frases
de efeito típicas de “discursos progressistas”, admiráveis em si mesmas, mas
normalmente sem visível operacionalidade ou aplicação prática. Com o novo
“plano” nas mãos, será preciso então seguir adiante na sequência estratégica. E
esta será aprovar, no âmbito apenas governamental (se viável) ou, idealmente,
na esfera do Congresso Nacional, uma “política nacional”. Parece algo que impõe
grande dificuldade, mas, de fato, não é tarefa tão montanhosa. Basta ter um
deputado para encampar (algo facílimo de se obter, pois todos querem holofotes)
e ir convencendo outros deputados para apoiar a tramitação. Algum tempo depois,
em sonolentas sessões parlamentares nas quais se delibera, muitas vezes, sem
sequer saber o que está sendo votado, é aprovada a nova “política nacional”
disso ou daquilo.
Conclui-se aqui? Claro que não, pois agora
virá o principal. Com uma política governamental aprovada, é possível
formalizar um “sistema”. Sim, um “sistema nacional” relacionado à proposta. Por
exemplo, um “sistema nacional de finanças solidárias”, uma iniciativa ora sendo
encaminhada ao Executivo. E sua aprovação é fundamental porque cria não apenas
fontes de recursos financeiros, mas novos cargos, em todos os níveis, para
serem preenchidos – obviamente, ativistas não necessariamente relacionados ao
tema envolvido, mas militantes partidários. Assim vai crescendo a chamada
“máquina pública” e vai sendo firmemente enlaçado o Estado, federal ou em suas
esferas subnacionais. Além disso, com a formalização do “sistema”, é possível
alocar verbas de outras origens, como emendas parlamentares e, no ano seguinte,
ter mais recursos listados no Orçamento da União. Com o tempo, tudo se
“normaliza” e quase ninguém sequer percebe que o aparato estatal, em diversos
âmbitos, não apenas no Executivo, mas na Justiça e no Legislativo, e também nos
estados e muitos municípios, foi devidamente “capturado” por interesses
específicos ou, então, interesses que convergem a motivação política e
partidária com interesses particularistas de determinadas categorias
profissionais incrustadas em âmbitos específicos do Estado. Por exemplo, os
ambiciosos interesses de setores da advocacia no sistema de Justiça.
Uma curiosidade importante. Quando se atinge
o ambicionado nível de “sistema”, quase assim finalizando a conquista almejada,
frequentemente surge a demanda de ser um “sistema único”. Por exemplo, um sistema único de segurança alimentar ou de
extensão rural. Ou o sistema único de segurança pública. A justificativa não é
sempre afirmada, mas é clara: sua origem está no SUS, formado muitos anos atrás
por setores da esquerda da área de Saúde e inspirado no Sistema Nacional de
Saúde inglês. E por que “único”? Porque necessariamente propõe o controle
absoluto e soberano do Estado, como foi o caso inglês, embora não concretizado
completamente no caso brasileiro. Ou seja, “único” não significa, de fato, a
possibilidade lógica de planejamento, alocação eficaz do total dos recursos ou
alguma racionalidade objetiva. Significa apenas a tentativa de alcançar o
absoluto “controle estatal”, a velhíssima ambição da esquerda do passado, em
suas fantasias ideológicas contra qualquer espaço propriamente privado ou não
estatal.
Outra curta observação, ainda no campo da
linguagem e das “narrativas”, diz respeito ao surgimento da expressão
“políticas públicas”. O autor desse texto é incapaz de indicar algum ponto
preciso de origem da expressão e sua difusão no debate brasileiro, embora
certamente associada à democratização no período contemporâneo, provavelmente
multiplicada a partir do processo constituinte, em meados da década de 1980.
Mas sua função é exatamente a mesma, antes citada. Ou seja, elevar aos píncaros
possíveis o papel do Estado, o demiurgo da salvação da pátria.
Evidentemente, a estratégia comentada nesse
curto ensaio não é a exclusiva, e talvez nem mesmo a mais importante. Outros
mecanismos de captura do Estado estão em marcha e vão sendo concretizados
gradualmente. Mas o que foi aqui descrito vem sendo operado praticamente sem
obstáculo algum, na maior parte dos casos em curso sem nenhuma compreensão da
sociedade. Como são fórmulas fragmentadas, operacionalizadas em setores ou
partes que mobilizam grupos sociais específicos e se conectam com partes do
Estado, os demais pouco percebem o que está em andamento. A consequência sendo
a maior facilitação para concretizar o que foi descrito nessas páginas – ou
seja, a captura do Estado.
Em tempo e crucialmente importante: apenas o
Partido dos Trabalhadores opera esses estratagemas de apropriação do Estado
brasileiro. Os outros partidos, como é evidente, também ambicionam conquistar
espaços de poder para alocar seus apadrinhados políticos. Mas nenhum dos demais
partidos desenvolveu, de forma pensada, esse conjunto de estratégias que visa,
em última análise, permanecer no poder, se possível, para sempre. Os
interesses, nos demais partidos, restringem-se invariavelmente, ao objetivo da
reprodução política “na próxima eleição” apenas, não no prazo médio ou mais
distante. São diferenças de ação dos partidos que garantem a duradoura
persistência do campo petista na política brasileira.
Se o Estado brasileiro foi antes
historicamente saqueado pelos “conservadores espertos”, aqueles do passado,
agora aqueles grupos precisam dividi-lo com “os novos espertos” que foram
chegando. E os demais, a vastíssima maioria, como somos uma sociedade de cegos,
fortemente despreparados para qualquer debate mais rigoroso e consequente,
assim seguiremos sob a mesma iníqua e escandalosamente desigual estruturação
social.
Para manter a minoria de espertos (os antigos
e os novos) bem abastecida, seja em termos de poder, seja, sobretudo, com
recursos financeiros privilegiados, é preciso que alguém pague. Por isso, a
alta proporção de impostos, as desonerações de todos os tipos, as mágicas
fiscais, os incontáveis e inexplicáveis favorecimentos, a metade da riqueza
acumulada que sabemos existir, mas que sequer é conhecida pela Receita Federal,
entre outras espantosas distorções que caracterizam o Brasil, as quais
permanecerão ainda por um longo período histórico.
Afinal, quando as elites à direita e à esquerda se unem, sem nenhum pudor político ou compostura ética, o restante da sociedade que se dane.
(*)Sociólogo, Doutor em Sociologia (Universidade de Sussex, Inglaterra), com pós-doutoramento em Ciência Política (MIT, Estados Unidos). É professor aposentado da UFRGS (Porto Alegre) e foi professor visitante nas universidades de Amsterdam e Toronto. Professor e pesquisador no “Institute of Development Studies” (IDS, Inglaterra), entre 2003 e 2009. Como se trata de um comentário livre, e não rigorosamente científico ou acadêmico, não são citados autores ou elementos bibliográficos de suporte aos argumentos propostos. Os quais, insista-se, são leituras da realidade brasileira, assentadas na vivência do autor, mas não existe aqui nenhuma intenção, sequer remota, de propor “argumentos de autoridade”. É somente a reflexão sobre o nosso cotidiano e o esforço de tentar construir algum tipo de inteligibilidade objetiva e empiricamente comprovável sobre aspectos da vida política brasileira.
(1)Sigo aqui os economistas. Segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI), o chamado “resultado estrutural” calculado sobre os dados da situação fiscal, o qual desconsidera os gastos extraordinários e as variações ocasionais do ciclo econômico, é o indicador adequado para avaliar se o Estado maneja adequadamente suas receitas e seus gastos. Entre 2006 e 2014, essa relação se deteriorou fortemente, saindo de um superávit estrutural de 2,7% do PIB para um déficit de 1,8%.
6 comentários:
Texto bastante crítico, interessante. O autor nos promete uma breve história do PT, mas apresenta várias e longas críticas, em parte fundamentadas, ao partido.
2 grandes BESTEIRAS ficaram evidentes pra mim: a história do MDB (que não começou como PMDB, como o autor tenta contar) que foi absurdamente mencionada num parágrafo inicial, sem qualquer cuidado, e a questão da Agroecologia, num outro parágrafo ainda mais ridículo e mentiroso. Agroecologia é simplesmente um termo que tem sido usado, sem qualquer vinculação direta do PT, para vários tipos de agricultura "alternativa" ou "ecológica" ou outros termos, que são propostas e ações agrícolas que se desenvolvem no Brasil e boa parte do mundo desde a década de 1970. A incompetência do autor de perceber ou entender isto o fez tratar do assunto de forma inaceitável.
No restante, suas críticas e sua análise histórica são razoáveis e têm bastante sentido. Vale a leitura.
Resposta de Zander Navarro:
Caro Daniel, agradeço a sua leitura e o comentário (mais generoso do que crítico). Para não incomodar os leitores sobre o tema "agroecologia", informo apenas que escrevi um artigo, já publicado, a respeito do assunto. Nele ofereço o histórico do termo em nosso país. Pode ser lido no "link" abaixo. Cordialmente, Zander
https://seer.faccat.br/index.php/coloquio/article/view/23
No mais, muito obrigado, novamente, pelo privilégio de estar presente nesse seu importantíssimo serviço. Estou bem orgulhoso!
Cordialmente,
Zander
Agradeço a gentil resposta, Zander. Desconhecia o teu artigo sobre agroecologia. Na segunda parte dele, analisas "o esforço de agroecologistas de revestirem de uma aura científica o que está sendo feito sob tal nome", e concluis que a agroecologia não tem qualquer conteúdo propriamente científico. Eu não posso concordar com isto, e discordo profundamente, pois há vários livros científicos sobre ela, europeus, estadunidenses, espanhóis e também em português, além de centenas de artigos publicados em periódicos científicos das mesmas línguas. Tua tentativa de desqualificar este tema e relacioná-lo ainda negativamente ao PT é ilógica e não acho que contribua para o conhecimento do leitor sobre tuas ideias a respeito do PT e nem para que estas sejam melhor aceitas, acho que é um argumento/exemplo sem ou com pouco sentido.
A questão do MDB/PMDB eu acho interessante, pois é outro partido antigo/tradicional, bem mais que o PT, e acho que comparações dele com o PT têm bastante interesse, mas ignoraste completamente o surgimento e a história dele. Acho que ele pouco contribui neste teu texto, mas já que mencionaste tal partido, acho que deverias tê-lo feito com cuidado.
Mensagem em resposta para o Daniel:
Caro Daniel: poderemos concordar ou não, dependendo do que definirmos por "agroecologia". É algo tão vago que sequer existe uma definição aceita amplamente. Se incluir apenas os diversos esforços para desenvolver uma agricultura não intensiva em "insumos modernos" (sobretudo agroquímicos), ou seja, apenas o formato tecnológico, você terá razão, pois são iniciativas até bem antigas, embora sem nenhum sucesso quantitativo até aqui (em termos de produção e produtividade). No Brasil, contudo, o termo nasceu e tem prosperado em muitos setores, em especial, como um esforço de contestação à chamada "agricultura moderna" e, portanto, primordialmente uma luta política anticapitalista (daí a aproximação com o campo petista e à chamada "esquerda agrária" ). Mas, se for assim, entramos no campo mais sonhador, não? Basta pensarmos no que seria o Brasil sem a produção monumental de riqueza do chamado "agronegócio" do país. A modernização (capitalista) da economia agropecuária brasileira, goste-se ou não, vem há anos salvando economicamente o Brasil, sobretudo nesse século, ainda que sejam evidentes os problemas ambientais e sociais. Basta conhecer o nosso vasto interior para ver. As cadeias produtivas da economia agropecuária produz mais empregos, atualmente, do que qualquer outro setor, incluindo o industrial e o setor de serviços não agrícola. Vamos jogar essa "galinha dos ovos de ouro" no lixo? E o que colocaremos em seu lugar, para produzir riqueza, empregos e receitas públicas? Para não continuar aqui, caso queira "conversar" mais a respeito, deixo o meu e-mail, também à disposição de outros eventuais interessados (z.navarro@uol.com.br). Então poderemos voltar aos anos setenta e recordar sobre as disputas políticas daqueles anos sombrios. Cordialmente, Zander
Concordo em boa parte com teu segundo comentário, Zander, ao qual tb agradeço, inclusive por ser bem explicativo. A agroecologia não tem grande "sucesso quantitativo", pois em termos de produção total e rendimento econômico o agronegócio empresarial é muito mais importante. Mas em termos qualitativos a agroecologia já tem sua importância, pois é muito mais sustentável, sua produção é mais saudável e emprega um volume bem expressivo de pessoas, provavelmente mais que o agronegócio empresarial, que emprega poucas pessoas apesar de ocupar enormes áreas, mas a grande mecanização significa poucos empregos diretos.
A agroecologia é uma alternativa necessária e que mostrou algumas técnicas recomendáveis, como o maior nível de proteção do solo, menor uso de agroquímicos e a necessária proteção de fragmentos florestais e cursos d'água, tradicionalmente desconsiderados nas grandes lavouras.
Não acho que devamos matar a galinha dos ovos de ouro, mas a preocupação ambiental muito mais desenvolvida pela agroecologia DEVERÁ se estender bem mais no agronegócio empresarial, se este quiser se tornar sustentável e continuar a ser aceito pelos importadores europeus e norte-americanos. Isto também traria muitos benefícios para a Natureza brasileira.
Agroecologia - "primordialmente uma luta política anticapitalista"?
Não, Zander, discordamos aqui! Não é assim que a veem dezenas de milhares de pequenos produtores agrícolas e técnicos (agrônomos, etc.) da área agropecuária, a maioria atuando na agricultura familiar (realmente poucos no agronegócio empresarial), mas fundamentais na produção de alimentos para nossa população, alimentos de verdade: feijão, frutas, hortaliças, leite, ovos, etc.
É verdade que alguns têm relação com o PT ou o MST ou outros movimentos de Esquerda. E que tais "campos" políticos apoiam este setor. Mas a MAIORIA destes "agroecologistas" não combate o capitalismo e nem mesmo se filia ideologicamente ao campo político que estás criticando. Muitos nem gostam de "Política" (partidária) e se aproximam muito mais dos ambientalistas, ecologistas e outros movimentos que tentam melhorar a conservação da Natureza ou valorizam muito também as vidas não humanas e as questões relacionadas à sustentabilidade e às mudanças climáticas.
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