Folha de S. Paulo
Convivemos com elevados níveis de violência,
mas as eleições continuam orbitando outros fatores
Enquanto polícias permanecerem estaduais, e a arquitetura federativa estimular a dispersão de culpas, a segurança seguirá como tema politicamente ruidoso
A afirmação pode soar paradoxal para um país
que figura entre os que mais temem a violência no
mundo. No entanto, ela busca explicar por que a segurança pública, apesar
de ocupar
lugar constante no debate nacional, dificilmente se converte em eixo
determinante do voto para
presidente.
A razão é estrutural: ao contrário dos demais
países latino-americanos, que adotam forças policiais nacionais, o Brasil
fragmenta sua segurança entre 27 corporações estaduais. É um modelo singular,
que dilui a percepção de responsabilidade e reconfigura o peso do tema no
processo eleitoral.
Nossa Polícia
Federal conta com 15 mil agentes, ao passo que as Polícias Civil e
Militar somam mais de 500 mil, e Guardas
Municipais, em crescimento acelerado, em torno dos 100 mil.
Na maioria das democracias vizinhas, a equação é simples: se o policiamento é nacional, o presidente responde diretamente pelos resultados. Da Colômbia ao Chile, passando por Peru, Equador e El Salvador, a segurança tende a dominar as campanhas, impulsionar outsiders e organizar a disputa política.
No Brasil, a dinâmica é inversa. A
fragmentação federativa cria um sistema de múltiplos culpados: violência na
Bahia? Falha estadual. Crise no Ceará? Problema local. Avanço do crime
organizado nas fronteiras? Atribuição federal. Cada ente dispõe de um álibi
institucional para deslocar a responsabilidade ou, como na polêmica megaoperação
carioca, de um troféu para chamar de seu.
Esse arranjo produz um efeito duradouro. A
segurança mobiliza e desgasta, mas não estrutura. Atua como um corrosivo
silencioso sobre a avaliação do governo, sem se transformar em força condutora
das preferências nacionais. Daí a razão pela qual 2026 não será uma eleição
"à la Bukele", e sim uma disputa em que o tema aparecerá de forma
intermitente, associado a eventos locais e picos de atenção midiática, mas sem
capacidade de reorganizar a agenda nacional.
A comparação com outros países da região é
instrutiva: onde a polícia é
centralizada, a segurança pauta a política; onde é fragmentada, como aqui, ela
a perturba, mas não a define.
Isso não significa que o tema seja
irrelevante. O impacto existe e favorece, em geral, a oposição. Em momentos de
deterioração do ambiente urbano, governos tendem a perder apoio, sobretudo
entre segmentos de classe média. Mas, para que a segurança se convertesse em
eixo dominante, seria necessário que o eleitor percebesse o presidente como
responsável direto pelo policiamento cotidiano — algo que o desenho
institucional brasileiro impede. Em vez disso, o voto presidencial, afora as
identidades cristalizadas, segue ancorado em economia, renda, programas
sociais, previdência e avaliação do desempenho geral do governo.
O paradoxo brasileiro permanece: convivemos
com elevados níveis de violência, mas as eleições presidenciais continuam orbitando
outros fatores. Não por falta de preocupação da sociedade, mas pela
inexistência de um centro claro de comando e responsabilidade. O duelo
legislativo atual entre oposição e governo não mudará isso. Enquanto
as polícias permanecerem estaduais e a arquitetura federativa estimular a
dispersão de culpas, a segurança seguirá sendo um tema politicamente ruidoso,
capaz de influenciar a disputa, mas insuficiente para determiná-la.
*Cientista político, é sociólogo do Ipespe e presidente de honra da Abrapel (Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais)

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