O Globo
A condução coerente da política
macroeconômica deve ser tratada como um valor suprapartidário
“30 anos do Real: crônicas no calor do
momento” é o título do novo livro de Gustavo Franco, Edmar Bacha e Pedro Malan,
publicado pela Intrínseca, em que analisam a economia brasileira nas últimas
décadas, da perspectiva do Plano Real e do programa de estabilização que a ele
se seguiu.
Por reunir artigos escritos a cada
comemoração do Plano nos últimos 30 anos, não é bem do Real que o livro
primordialmente trata, mas da política econômica dos governos que se seguiram
aos dois mandatos de FHC.
Há um fio condutor claro. O foco é no esforço
de décadas, ainda inconcluso, de consolidação da estabilização macroeconômica
como um valor consensual, suprapartidário, enraizado no conjunto de valores
compartilhados pelas principais forças políticas do país, estejam no governo ou
na oposição. Enraizado no que no mundo anglo-saxão se denomina common ground.
O que de melhor aqui posso fazer, para salientar a importância do livro, é ressaltar o quanto o país pôde avançar nesse esforço, desde seu momento mais dramático, na campanha presidencial de 2002, que os autores apenas tangenciam.
Para entender o tumulto econômico-financeiro
que então se estabeleceu, é preciso retroceder às eleições municipais de 2000,
quando o PT determinou que, em paralelo a questões locais, a campanha do
partido teria como carro-chefe a realização, Brasil afora, de um plebiscito
informal que indagaria se a dívida pública deveria ser paga ou não.
Não se tratava de iniciativa das alas mais
radicais do partido. Longe disso. O então presidente do PT, deputado José
Dirceu, chegou a submeter proposta de oficialização do plebiscito informal por
decreto legislativo. E, um a um, os principais economistas então associados ao
PT, alguns já falecidos, assinaram artigos na imprensa dando respaldo pessoal
ao plebiscito.
O leitor interessado poderá conseguir acesso
à maior parte desses artigos, do ano 2000, no excelente acervo da Folha de
S.Paulo, disponível no site do jornal. É no mínimo curioso que, apesar de tão
bem documentado e da importância crucial que acabou tendo, o desastroso
plebiscito da dívida venha sendo solenemente ignorado em grande parte da
historiografia recente do PT.
Como se poderia prever, menos de um ano e
meio após o término das eleições municipais, quando o candidato do PT se firmou
nas pesquisas como claro favorito na eleição presidencial, em meados de 2002, o
temor de um calote da dívida pública deflagrou devastador processo de
desestabilização financeira, à medida que detentores de ativos, em massa,
tentaram se proteger contra perdas patrimoniais.
Para encurtar uma tensa e tortuosa história,
foi em meio a esse turbilhão que Lula da Silva e a cúpula do PT se viram
compelidos a deixar de lado a inconsequência e se comprometer de público com
uma condução responsável da política macroeconômica.
ma assombrosa metamorfose a toque de caixa,
que só se tornou possível graças ao sucesso de dramáticas negociações de Pedro
Malan, Arminio Fraga e do próprio FHC com a cúpula do PT, feitas, em grande
medida, por intermédio de Antonio Palloci, futuro ministro da Fazenda do
primeiro governo Lula.
Tendo afinal conquistado a Presidência da
República, o PT teve de se desfazer às pressas de seu discurso radical, para se
deslocar para o centro do espectro político e adotar como sua a política
econômica do governo anterior. O que parecia ser um abismo intransponível tinha
dado lugar a um amplo conjunto de ideias sensatas compartilhadas por governo e
oposição.
Foi só o início de uma longa saga. Um início
espetacular, é verdade. Mas não levou muito tempo para que ficasse claro que
não seria assim tão fácil. Que haveria idas e vindas. Que a metamorfose talvez
não fosse irreversível. E que poderia haver grandes retrocessos. Como no
mandato e meio de Dilma Rousseff. E agora.
Tudo indica que a saga da consolidação da
ideia de condução coerente da política macroeconômica como um valor
suprapartidário ainda parece bem longe do fim.
Mais oportuno, o livro não poderia ser.
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