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O movimento do dinheiro e suas formas mudam, mas sempre acabam no mesmo lugar, na preferência pela liquidez
As relações entre dívida pública, gestão monetária e setor financeiro privado não são “externas”. São orgânicas e constitutivas. A dívida do governo é a garantia de última instância das operações financeiras privadas. Nos tempos de “normalidade”, as formas financeiras do poder privado permitem diversificar a riqueza de cada grupo, distribuí-la por vários mercados e assegurar o máximo de ganhos patrimoniais, se possível no curto prazo. Os agentes dessas operações são as instituições da finança privada. São elas que procuram antecipar movimentos de preços e definir os instrumentos de hedge e os riscos de contraparte nos mercados financeiros contemporâneos.
Nas crises financeiras, a dívida pública apresenta
suas credenciais de tábua de salvação diante dos desatinos dos mercados
privados. Em um clima de convenções “otimistas”, bancos e demais instituições
financeiras cuidam de antecipar o “estado de confiança” e estimar as condições
de liquidez dos mercados, em conformidade com a evolução dos balanços de
empresas, famílias, governos e países. Sim, países, porque, na era da
finança global, a integração dos mercados submeteu o processo de “precificação”
dos ativos privados e públicos denominados em moedas distintas às antecipações
acerca dos rendimentos dos ativos “de última instância”, líquidos e seguros,
emitidos pelo Estado gestor da moeda-reserva. Esses títulos são o fundamento do
sistema de criação da moeda fiduciária à escala global, o último refúgio da
confiança.
A incerteza sob Donald Trump provocou
um abalo
sísmico nos mercados de títulos do governo, os ativos de última instância
da economia global. A trumpada desatou um estreitamento no spread entre
os rendimentos dos títulos públicos emitidos pelo Tesouro e os swaps de juros,
provocando perdas substanciais que dispararam uma avalanche de operações de
desalavancagem, ou seja, venda de treasuries no mercado de títulos, levando a
um aumento de rendimentos no papel de dez anos, cujos yields chegaram a 4,5% ao
ano e de 30 anos à máxima de 5%. A venda maciça de títulos provocou uma alta na
taxa de juros norte-americana em apenas dois dias.
Com a perspectiva de possíveis três cortes de
juro pelo Federal Reserve neste ano, os fundos hedge montaram uma operação, na
qual compram treasuries (títulos públicos federais dos EUA) e vendem swap de
juros no mesmo prazo, esperando ganhar na diferença de taxas, ou seja, caso
houvesse os cortes, os preços dos títulos subiriam mais que a diferença na
operação de swap de juros. A operação chama-se casada ou travada. Foram
realizados trilhões de dólares nessas operações, segundo dados do Banco de
Compensações Internacionais (BIS) no seu relatório em 2024. O BIS alertava,
nesse relatório, seu temor caso houvesse um aperto monetário na taxa
norte-americana, poderia criar um efeito manada, saída brusca dessa operação, e
gerar falta de liquidez e inadimplência. Os chamados swap forewards são formas
de crédito-sombra que não aparecem como crédito tradicional, realizados em sua
maior parte por instituições não bancárias não sujeitas a supervisão e
regulação pelas autoridades monetárias. Algumas bastante conhecidas como BlackRock,
Vanguard, Pimco e os fundos hedge. O movimento de saída dessas operações
começou na madrugada da quarta-feira 9, capitaneado pelos fundos hedge.
Bilhões e bilhões de dólares.
A incerteza sob Trump bagunçou o coreto. Os
EUA rezam ao Federal Reserve
Nick Lawson advertiu: “Os fundos de hedge têm
trilhões investidos nesse tipo de estratégia. À medida que as coisas se
agravam, eles estão sendo forçados a vender tudo que podem – até mesmo ativos
bons – só para se manterem à tona… Se o Federal Reserve não intervir logo, isso
pode se transformar em crise generalizada. É sério demais”.
Algumas tesourarias bancárias dentro e fora
de Tio Sam externaram preocupação com esse movimento, pedindo a intervenção do
Federal Reserve na compra dos treasuries, para estabilizar os preços e dar
liquidez no mercado. Situação parecida houve na Covid, e o FED fez intervenção.
“A liquidação pode estar sinalizando uma mudança de regime, na qual os títulos
do Tesouro dos EUA não são mais o porto seguro global de renda fixa”, disse no
Financial Times Ben Wiltshire, estrategista do Citi.
O movimento do dinheiro e suas formas mudam,
porém acabam no mesmo lugar, na preferência pela liquidez. Na hora da
desconfiança e da incerteza, procuram um porto seguro. Até as trumpalhadas da
semana passada, eram os treasuries, os títulos públicos dos EUA.
Isso tem provocado uma desvalorização
acelerada da moeda norte-americana perante o euro, chegou a passar de 1,13
dólar por euro, e uma alta forte do ouro futuro na casa de 3,2 mil dólares a
onça. Uma fuga de dólares. Esse movimento é preocupante, pois são trilhões de
dólares envolvidos nessas operações.
Yanis Varoufakis explica: “Não é que os
banqueiros centrais estrangeiros estejam conspirando contra os Estados Unidos.
É apenas que o dólar é a única reserva internacional segura em que podem
depositar as mãos. É natural que os Bancos Centrais europeus e asiáticos
acumulem os dólares que fluem para a Europa e a Ásia, quando os americanos
importam coisas. Ao não trocarem seus estoques de dólares por suas próprias
moedas, o Banco Central Europeu, o Banco do Japão, o Banco Popular da China e o
Banco da Inglaterra suprimem a demanda (e, portanto, o valor) de suas moedas.
Isso ajuda seus próprios exportadores a aumentar suas vendas para os Estados
Unidos e a ganhar ainda mais dólares. Em um círculo vicioso, esses novos
dólares se acumulam nos cofres dos banqueiros centrais estrangeiros, que, para
obter juros com segurança, os utilizam para comprar títulos da dívida pública
americana”.
O preço do ouro, o euro e os títulos públicos
alemães continuam torcendo para as trumpalhadas. Os norte-americanos rezam não
para Deus, mas para o Federal Reserve.
In God we trust! era o lema do dólar.
Publicado na edição n° 1358 de CartaCapital, em 23 de abril de 2025.
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