Alta de estelionatos evidencia falha de investigação policial
O Globo
Bandidos migraram para o
meio digital, enquanto polícia se mantém muito analógica. Isso precisa mudar
Qualquer brasileiro
importunado diariamente com irritantes ligações telefônicas como as que alegam
compras indevidas em seus cartões e pedem que clique em algum link obscuro para
“resolver” o problema tem a sensação de que o país vive uma epidemia de golpes.
Não é só sensação. Seguindo tendência mundial, o número de estelionatos no
Brasil explodiu nos últimos anos. Os registros no ano passado atingiram
2.166.552, um aumento de 8,3% em relação a 2023 (2.000.960) e de mais de 400%
ante 2018, quando foram contabilizados 426.799 casos.
São Paulo e Distrito Federal
apresentam as maiores taxas de registros de estelionato (1.744 por 100 mil
habitantes e 1.681,3 por 100 mil, respectivamente), enquanto Paraíba e Maranhão
ostentam as menores (235,4 e 285,3 por 100 mil). A média nacional é de 1.019,2
por 100 mil, segundo a 19ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Esses golpes se materializam de diferentes formas, mas hoje acontecem sobretudo no meio digital. Oficialmente, em torno de 12% apenas foram enquadrados como estelionato por meio eletrônico, mas pesquisadores ponderam que o número pode estar subdimensionado, uma vez que esse tipo penal foi incluído na legislação apenas em 2021, e muitos estados brasileiros (caso de São Paulo, Rio de Janeiro e Ceará) ainda não fazem a diferenciação entre os crimes no meio digital e os outros.
“Essa parece ser uma
tendência que veio para ficar, na medida em que está fortemente correlacionada
com a transformação digital da sociedade brasileira, que ganhou impulso em
2020, primeiro ano da epidemia de Covid-19, quando boa parte das interações da população
passou a ser mediada por meios digitais”, diz Renato Sérgio de Lima, presidente
do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Para as quadrilhas, o
estelionato, além de demandar uma dinâmica relativamente simples e ser
altamente rentável, não envolve os riscos comuns a outros tipos de crime. É
verdade que, também para as vítimas, os golpes, especialmente os digitais,
representam redução da violência física.
Mas isso não diminui o absurdo desses delitos, que podem causar prejuízos
enormes.
Apesar de estarem em franca
expansão, esses crimes ainda são pouco investigados e raramente chegam à
Justiça, o que traduz o despreparo das polícias para lidar com as novas
estratégias dos bandidos. Análise do Anuário com base em dados do Justiça em
Números, do Conselho Nacional de Justiça, mostra que, em 2024, o Judiciário
recebeu 51.793 novos casos, algo em torno de 2,4% dos estelionatos registrados
nas delegacias. “O crime mudou muito nos últimos cinco anos, e talvez a forma
de preveni-lo e enfrentá-lo também precise mudar, sem, no entanto, abrir mão de
estratégias preventivas de policiamento”, afirma Lima.
Ao menos por enquanto, nada
indica que esse tipo de crime arrefecerá, a despeito das bem-vindas campanhas
alertando sobre estratégias de golpistas. Está claro que os bandidos se adaptam
aos novos cenários. É preciso que as polícias civis também se adaptem. Por
envolver quadrilhas com atuação nacional, é necessária uma coordenação também
nacional. Diferentemente do que ocorre em outras modalidades de crime,
investigações de estelionatos demandam investimentos em inteligência. Se os
bandidos operam no modo digital e a polícia no analógico, as chances de sucesso
são reduzidas.
Biodiversidade é
oportunidade para desenvolver economia da Amazônia
O Globo
País conta com bons
pesquisadores e lei avançada. Falta atrair capital privado e aumentar apoio
público
O Brasil tem lei considerada
avançada para o tema da biodiversidade, conta com um número considerável de
cientistas dedicados à área, mas carece de investimento e políticas públicas.
Em área estratégica para a economia brasileira, o governo deveria identificar
que barreiras impedem uma alocação mais eficiente do capital privado, adotar
medidas para mitigar esses problemas e aumentar o financiamento público em
pesquisa.
O avanço dos estudos em
biodiversidade pode ser um eixo de crescimento para os mais de 20 milhões que
vivem na região da Amazônia. O Brasil tem bom histórico no casamento entre
ciência e desenvolvimento econômico. Foi a união entre pesquisadores e empreendedores
que resultou na exploração agrícola do Cerrado, hoje um dos principais polos do
agronegócio no mundo. Na Amazônia, a ênfase precisa ser na sustentabilidade.
O consórcio Genômica da
Biodiversidade Brasileira (GBB), tendo à frente o Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade (ICMBio)
e o Instituto Tecnológico Vale Desenvolvimento Sustentável (ITV), com a
colaboração de 107 instituições, sequenciou em dois anos 23 genomas completos
de animais. Outros 720 de plantas e animais também foram sequenciados em
diversos níveis de resolução. “A bioeconomia se faz como as camadas de um bolo.
Pega-se o conhecimento tradicional e se acrescenta uma outra camada de ciência
de vanguarda. A isso se acrescenta estímulo à indústria local, à formação de
pessoas”, ressalta Alexandre Aleixo, líder do grupo de Genômica Ambiental do
ITV.
Em tom de desabafo, Roberto
Waack, cofundador da Coalizão Brasil, Clima, Floresta e Agricultura, disse
ao GLOBO que o Brasil não faz parte da periferia quando o assunto é
pesquisa. “Há um aumento do valor da natureza. Negócios dependem
de ativos naturais. A alta tecnologia abre uma via de valorização do capital
natural”, diz.
As indústrias farmacêutica e
de cosméticos já utilizam matérias-primas fornecidas por florestas e campos
brasileiros. Da Amazônia, a andiroba produz óleo anti-inflamatório, também
usado como repelente e hidratante; do Cerrado, a cagaita tem propriedades antioxidantes;
da Caatinga, o coco da palmeira licuri fornece óleo para cosméticos; e da Mata
Atlântica a uvaia, presente em doces e sucos, tem sido pesquisada sobre suas
propriedades terapêuticas.
A genômica e a proteômica, estudo das proteínas de cada elemento, se entrelaçam para permitir o entendimento da composição de cada objeto de estudo e o desenvolvimento de técnicas de melhorias das espécies. Um exemplo é o tucupi, retirado da mandioca-brava. Para evitar a variação de qualidade, a análise de suas proteínas indica a seleção ideal de microrganismos para produção de um tucupi homogêneo capaz de atender às exigências do mercado. Explorar a biodiversidade de forma sustentável é uma das melhores estratégias para deixar as florestas em pé e melhorar as condições de vida da população — ao mesmo tempo.
Ordem tarifária de Trump já
eleva preços nos EUA
Valor Econômico
A volta a um mercantilismo tosco
na maior economia do mundo é um retrocesso que custará muito aos EUA e ao mundo
O prazo final da primeira fase da guerra tarifária do presidente Donald
Trump contra o mundo encerrou-se na sexta-feira: 194 países pagarão mais
tarifas, com piso de 10% e com o Brasil na solitária posição de alvo da maior
taxa, de 50%. Ao contrário das apostas iniciais, e do folclore de que Trump
sempre recua, o pedágio para ingresso no mercado americano, ao menos por ora,
subiu. Em relação ao que foi anunciado no “Dia da Liberação”, 2 de abril, 26
países obtiveram taxas menores do que a intenção americana, e 20 foram punidas
com taxas maiores. Os parceiros com que os EUA mais comerciam pagarão taxas bem
acima do piso de 10%, ou seja, o imposto de importação médio ponderado pelo
comércio dos EUA subirá acima dos 17,7% atuais - a proteção crescerá.
Trump pode se regozijar de que conseguiu dobrar o mundo a seus desejos,
mas seus problemas se acentuarão a partir de agora. A inflação americana está
em alta e as tarifas mal começaram a se elevar, o que, com o repasse aos preços
pagos pelos consumidores, trará um viés eleitoral adverso ao governo nas
eleições legislativas de meio do mandato, em 2026.
Os objetivos do governo americano são contraditórios entre si e induzem
à redução do crescimento global. Ao buscar déficit comercial menor do que o
quase US$ 1 trilhão em 2024, e aumentar o imposto de importação do mundo para
isso, as compras dos EUA teriam de cair. Trump, no entanto, conta com esse
imposto para aumentar a arrecadação e com isso contrabalançar o peso do corte
de impostos por ele proposto, que acrescentará liquidamente US$ 3,5 trilhões a
um déficit público já gigantesco, de US$ 37,5 trilhões.
Em junho, a aduana americana arrecadou US$ 25 bilhões, muito acima da
média de US$ 10 bilhões usuais. No entanto, não há como continuar elevando
essas receitas para diminuir o déficit comercial, pois a função da tarifa é
exatamente contrária, reduzir importações, exceto na lógica enviesada da equipe
de Trump. Outra forma de diminuir o déficit americano seria elevar as
exportações. Maiores tarifas de importação, porém, elevam sobremaneira os
custos de produção.
Essa é uma peculiaridade no protecionismo de Trump. Apesar de exigir
reciprocidade no tratamento comercial entre países, ele raramente fala e nada
propõe para aumentar a fatia de exportações americanas globais. Restrições à
venda de produtos e serviços americanos são motivos para defesa comercial com
tarifas, e tarifas são defendidas como estímulos para trazer empresas de volta
para os Estados Unidos. Mas o avanço ou a permanência competitiva das
companhias americanas no resto do mundo não está explicitamente entre as metas
de um time protecionista ao extremo.
A equação tarifária de Trump não fecha por outros motivos. Só faz
sentido elevar tarifas de importação dos maiores parceiros comerciais se as
negociações conduzirem a um recuo significativo consensual. Do contrário, elas
levarão a um aumento de preços rápido e direto aos consumidores e empresas
americanas. Mas os maiores fornecedores do país foram punidos com taxas de
ingresso muito superiores à média de 10% imposta inicialmente a todos os
países. China, México e Canadá somam 40% das importações dos EUA, mas os dois
maiores parceiros americanos ainda estão pendentes de definição. A China,
suposto motivo da guerra comercial, paga 30% hoje, com mais prazo para acordo
do que todos os outros países sob investida americana.
A proteção americana, no final, foi elevada sobre todos os países
relevantes, embora os mercados financeiros desdenhassem dessa hipótese. Isso
significa que a pressão sobre os preços domésticos deverá subir nos próximos
meses. Eles começaram a subir de forma vagarosa em maio, com a taxação de 10%,
e deixaram um rastro claramente visível em junho. O índice de gastos ao
consumidor (PCE), medida preferida pelo Federal Reserve (Fed, o banco central
americano) para rastrear a tendência dos preços, avançou 0,3% em junho, após
aumentar 0,2% em maio. Em 12 meses, o índice atingiu 2,6%, acima da meta de 2%.
O núcleo do índice seguiu a mesma tendência e chega a 2,8% em 12 meses.
O índice de junho do Departamento de Comércio americano mostra que as
tarifas começaram a influir nos indicadores de preços de forma clara.
Mobiliário para residências aumentou 1,3% em junho, maior alta desde 2022. A
variação positiva dos preços de veículos chegou a 0,9%, e a de roupas e
calçados, a 0,4%. Brinquedos, roupas e café seguiram a mesma toada, que deve se
intensificar. Vietnã, Indonésia, Bangladesh e outros países asiáticos,
fornecedores relevantes desses produtos, pagarão a partir de hoje tarifas entre
9% e 40%. A maior pressão, já expressa nos índices de inflação, é a dos bens
duráveis.
Não há como o protecionismo de Trump resultar em maior crescimento
americano e prosperidade global. A volta a um mercantilismo tosco na maior
economia do mundo é um retrocesso que custará muito aos EUA e ao mundo.
Sem ajuda da política
fiscal, resta a cautela ao BC
Folha de S. Paulo
- Com acomodação da inflação, mas
incerteza quanto ao tarifaço de Trump, é correto manter os juros em 15%
- Gestão orçamentária é obstáculo para
reduzir a Selic. Mesmo assim, é provável que haja espaço para corte neste
ano ou no início de 2026
A manutenção pelo Comitê de
Política Monetária (Copom)
do Banco
Central da taxa básica de juros em 15%
ao ano era esperada —e se mostra correta na atual conjuntura. É positivo que a
decisão, unânime no colegiado, tenha sido acompanhada
por uma comunicação firme, que reafirma o compromisso da autoridade
monetária com a estabilidade de preços.
O comunicado manteve o tom
cauteloso, reiterando que o BC "não hesitará em retomar o ciclo de ajuste,
caso julgue necessário".
A esta altura, em que já se
observa alguma desaceleração da atividade e da inflação, a
frase soa como uma ferramenta retórica para conter especulações sobre cortes
antecipados em um momento de transição e maiores incertezas, agora
reforçadas pelo tarifaço do americano Donald Trump contra
o Brasil.
A esse respeito, e quanto ao
cenário externo em geral, o Copom reconheceu o ambiente mais adverso, que
demanda prudência e atenção, mas evitou conclusões quanto aos riscos
inflacionários, o que seria de fato prematuro.
Há impactos baixistas, caso
de alimentos, como carnes, que foram tarifados e podem ser redirecionados para
o consumo interno. Outros setores podem ter de cortar produção. De outro lado,
o risco de agravamento de sanções pode impactar fluxos financeiros, depreciando
o real e pressionando inflação e juros.
No quadro doméstico, o BC
reconheceu alguma perda de ritmo da atividade, mas manteve o diagnóstico de
dinamismo do mercado de trabalho, que tende a demorar mais para refletir os
efeitos do arrocho dos juros.
É uma boa descrição, na
medida em que indicadores de consumo, crédito e produção mostram crescimento
moderado ou mesmo ligeira queda, enquanto a taxa de desemprego atingiu nova
mínima, de 5,8% no trimestre encerrado em junho.
No campo da inflação, há
progressos. A projeção do BC para o IPCA no horizonte relevante (aquele em que
os impactos da política monetária são plenamente incorporados) caiu de 3,6%
para 3,4%, como esperado.
As expectativas de analistas
também têm se reduzido nas últimas semanas. Mas o comunicado evitou celebrar
essa melhora, repetindo o texto anterior sobre a alta de preços de itens mais
estruturais, como serviços, ainda muito acima da meta.
Tudo somado, vão se
alargando as evidências de desaceleração da economia e de convergência da
inflação para as metas. Diante das incertezas e da incompletude do processo,
porém, fez bem o Copom em demonstrar paciência.
A política monetária segue
no rumo certo, mas ainda carece de colaboração da gestão fiscal, hoje o
principal obstáculo para juros mais baixos no país. Mesmo assim, e a custo
muito maior do que seria necessário se houvesse responsabilidade orçamentária
por parte do governo Luiz Inácio Lula da Silva
(PT), é provável
que haja espaço para corte da Selic neste
ano ou no início de 2026.
Todo esforço contra a evasão
escolar é pouco
Folha de S. Paulo
- Em oito anos, mais de 300 mil jovens
voltaram ao ensino, mas quase 1 milhão ainda está longe dele
- Em pesquisa do IBGE, as causas mais
relevantes para largar a escola foram a necessidade de trabalhar (39,1%) e
o desinteresse (29,2%)
Considerando que a evasão é
um dos gargalos históricos da educação brasileira,
é bem-vinda a notícia de que mais de 300 mil crianças e adolescentes que
estavam fora da escola no país voltaram a estudar entre 2017 e 2025.
Tal
resgate foi realizado por meio da Busca Ativa, estratégia desenvolvida
pela Unicef,
em parceria com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação, que
fornece metodologia e ferramentas tecnológicas a governos para identificar e
monitorar jovens que não estão matriculados na rede de ensino ou estão em risco
de deixá-la.
Mesmo com a iniciativa
valorosa, porém, é lamentável constatar que 993,4 mil brasileiros entre 4 e 17
anos seguem longe da escola, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios publicada em 2024 —os matriculados somam 40,4 milhões.
A evasão é um fenômeno
multifatorial que pode envolver desinteresse pelos estudos, violência doméstica
ou na comunidade, necessidade de trabalhar, discriminação e bullying,
gravidez precoce, oferta educacional (falta de vagas, escolas ou transporte
escolar) e questões de saúde, como
problemas de visão e auditivos.
Uma pesquisa do IBGE de 2019
mostrou que, entre pessoas de 14 a 29 anos com nível de instrução inferior ao
ensino médio, os principais motivos alegados para largar os estudos eram a
necessidade de trabalhar (39,1%) e a falta de interesse (29,2%) —no
estrato feminino, também apareceu a gravidez (23,8%.).
Trata-se de um processo
paulatino. Notas baixas produzem o desinteresse, que culmina com as maiores
taxas de evasão no ensino médio. Nesse sentido, o modelo de ensino integral,
que aumenta a carga horária e tem
potencial para melhorar a aprendizagem, precisa ser ampliado no país desde
a etapa fundamental.
Um currículo mais focado nas
aptidões dos alunos e conectado com o mercado
de trabalho por meio do educação profissionalizante, como estipulou a
reforma do ensino médio, cumpre a dupla função de tanto estimular a vontade de
aprender como a de agilizar a capacitação necessária para a obtenção de um
emprego.
O programa Pé-de-Meia, do
Ministério da Educação (MEC), que fornece
ajuda de custo para alunos de baixa renda cursarem e concluírem o ensino médio,
também é iniciativa relevante.
Um problema complexo deve ser enfrentando em diversas frentes e em todas as esferas de governo, para que quase 1 milhão de jovens possam voltar à escola e tantas outros não queiram ou necessitem abandoná-la.
Trump ressuscita ‘frente
ampla’ de Lula
O Estado de S. Paulo
A truculência trumpista e
bolsonarista dá ao presidente a chance de reeditar o discurso que foi decisivo
na eleição de 2022. Aos que pretendem desbancá-lo, urge renegar Trump e
Bolsonaro
Lula da Silva ganhou a
eleição presidencial de 2022 por um triz, embalado pela pregação de união
nacional em defesa da democracia contra o bolsonarismo. A tal “frente ampla”,
contudo, não resistiu a um par de meses de Lula na Presidência: rapidamente, a natureza
lulopetista de concentração de poder e de visão econômica perdulária e
estatista logo se impôs, traindo os eleitores independentes que foram decisivos
para derrotar Jair Bolsonaro. Governando mais do que nunca como petista, Lula
vinha amealhando índices medíocres de popularidade e começou a ver seriamente
ameaçada suas chances de reeleição em 2026, a ponto de se especular se ele
sairia mesmo como candidato. Mas então apareceu Donald Trump.
O presidente americano,
escoltado por sabujos brasileiros sob a liderança da família Bolsonaro,
resolveu interferir diretamente nas eleições do ano que vem, ao punir de modo
draconiano ministros do Supremo Tribunal Federal, com a óbvia intenção de
coagi-los a desistir do julgamento do ex-presidente por tentativa de golpe de
Estado. Foi o bastante para que Lula tirasse de seu baú discursivo a empoeirada
bandeira da defesa da democracia – e agora, também, a da defesa da soberania
nacional.
O presidente do PT, Edinho
Silva, deu o tom: em entrevista recente ao Valor, ele falou em
reedição da “frente ampla” para eleger Lula, dizendo que, sem a vitória do
presidente, “o retrocesso para o Brasil será gravíssimo do ponto de vista da
reconstrução das políticas públicas, de um projeto de país, e do risco de
abrirmos espaço para o avanço do fascismo”.
É preciso reconhecer que
Lula seria um tolo se não aproveitasse a oportunidade de ouro que Trump e os
Bolsonaros lhe ofereceram de bandeja. “Defesa da democracia” havia se tornado
um slogan obsoleto, porque a ameaça de ruptura já foi plenamente neutralizada,
e os principais sediciosos estão à beira de uma dura e merecida condenação. Até
o ataque de Trump ao Brasil, Lula estava tendo que se haver com o duro
cotidiano de um governo com escassez de poder e de ideias, recorrendo até mesmo
à nostalgia da luta de classes para tentar reviver suas chances eleitorais. Mas
eis que, de uma hora para outra, a truculência trumpista e bolsonarista
conseguiu a façanha de dar a Lula ares de líder dos brasileiros contra uma
injustificada agressão externa de caráter evidentemente golpista.
Se esta crise será decisiva
na eleição de 2026, é algo que está no terreno da adivinhação, mas é lícito
supor que, se Trump continuar a apertar o torniquete contra o Brasil a pretexto
de ajudar Jair Bolsonaro, Lula terá plenas condições de se apresentar no
palanque como o campeão da independência brasileira contra os entreguistas
bolsonaristas – com chances razoáveis de convencer disso os eleitores
decisivos, aqueles que rejeitam tanto o PT quanto Bolsonaro.
Aos candidatos que pretendem
desbancar Lula em 2026, portanto, é imperativo afastar-se tanto de Bolsonaro
quanto de Trump, que são crescentemente tóxicos, por razões sobejamente
conhecidas. Conforme atestou recente pesquisa do Datafolha, só 6% dos brasileiros
acham que o governo deveria atender às condições impostas por Trump, e quase
60% consideram que o presidente americano está errado ao exigir a anulação do
julgamento de Bolsonaro.
Compreende-se que alguns dos
possíveis candidatos do campo conservador precisam expressar lealdade a
Bolsonaro, a quem devem seu sucesso eleitoral, mas já está claro que o
ex-presidente não ajudará a conquistar o eleitorado que quase certamente
desempatará a eleição, como ocorreu em 2022. Derrotar Lula, assim, passa
necessariamente por renegar a truculência trumpista e o golpismo bolsonarista.
As urnas não perdoarão quem
hesitar entre os interesses dos Bolsonaros e os interesses do Brasil. E a
História não perdoará quem permitir, por pusilanimidade, que Lula, posando de
super-herói patriota e vingador mascarado da democracia, ganhe mais quatro anos
de poder.
O mau exemplo prospera
O Estado de S. Paulo
O caso paulista de repasses
de emendas parlamentares sem controle ilustra como Estados e prefeituras
reproduzem os vícios do Congresso e institucionalizam o improviso e o
clientelismo
À medida que o modelo das
emendas parlamentares se consolida como um dos principais vetores de
desequilíbrio fiscal e deterioração institucional no Brasil, os casos recentes
de São Paulo oferecem um alerta incontornável. Tanto as contas do governo do
Estado quanto as da capital de 2024 foram aprovadas com ressalvas por seus
respectivos Tribunais de Contas, entre outras razões pela má gestão das
chamadas emendas “Pix”. Essas transferências, desvinculadas de objeto
específico e dispensadas de convênio formal, vêm sendo executadas sem o mínimo
de planejamento ou transparência exigidos pelo princípio republicano.
No governo estadual os
repasses a municípios ocorrem sem a exigência de plano de trabalho prévio, em
desacordo com a diretriz fixada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Já na
capital, as informações disponíveis no Portal da Transparência são parciais, dificultando
qualquer controle social ou análise técnica. A resposta de ambas as
administrações – promessas genéricas de adequação futura – só reforça a
normalização do improviso.
O caso paulista espelha o
vício de origem do modelo nacional das emendas, que sofreu mutações aceleradas
desde 2015 e hoje opera à margem de qualquer padrão internacional de boa
governança. A pretexto de descentralizar decisões e aproximar o Orçamento das
necessidades locais, criou-se um mecanismo institucionalmente pernicioso, no
qual parlamentares exercem controle direto sobre a alocação de bilhões em
recursos públicos, sem filtros técnicos, jurídicos e operacionais nem a
responsabilização política que o Executivo enfrenta.
As emendas Pix são a forma
mais crua dessa perversão. Vendidas como instrumento de agilidade, eliminaram
também os mecanismos de controle, permitindo repasses diretos para governos
subnacionais, sem projeto, sem cronograma, sem contrapartida. O resultado é
previsível: pulverização ineficaz, sobreposição de iniciativas, estímulo ao
clientelismo e opacidade estrutural. O rastreio posterior – quando ocorre – é
reativo, fragmentado e de alcance limitado.
Nos bastidores, criou-se um
mercado paralelo de compra e venda de emendas, com intermediação de agiotas e
cobrança de comissões. Prefeitos passaram a depender das verbas liberadas por
seus “padrinhos” no Legislativo, e parlamentares se transformaram em executores
informais do Orçamento público. Além de esvaziar a autoridade do Executivo e
desorganizar as políticas públicas, esse sistema corrompe a lógica eleitoral,
ao operar como um fundo de campanha travestido de investimento público.
Não se trata de condenar as
emendas parlamentares em si. Em democracias maduras, o Legislativo pode e deve
participar da formulação orçamentária. Mas em nenhum país sério o Parlamento
controla diretamente, sem planejamento central ou prestação de contas robusta,
parcelas tão expressivas do orçamento. Na União, as emendas já respondem por
quase um quarto dos gastos discricionários.
A exemplo de São Paulo,
Estados e municípios reproduzem esses vícios, em geral com ainda menos
capacidade institucional para administrar os recursos recebidos. A ausência de
plano de trabalho – mesmo após decisão do STF – e a falta de transparência
ativa nos portais oficiais revelam não só má gestão, mas desinteresse
deliberado em garantir o controle social.
É urgente estabelecer, por
lei, padrões nacionais obrigatórios de rastreabilidade e prestação de contas,
com regras uniformes para todos os entes federativos. As emendas devem ser
subordinadas a critérios técnicos, metas de resultado e mecanismos automáticos
de bloqueio em caso de descumprimento. A Controladoria-Geral da União, os
Tribunais de Contas e o Ministério Público precisam ser fortalecidos para
fiscalizar com autonomia. Acima de tudo, a sociedade civil precisa se mobilizar
contra a lógica do “dinheiro fácil” que estimula o clientelismo e a corrupção,
e esvazia a política de ideias.
Recursos públicos não são
propriedade privada do parlamentar da vez. São um bem comum, cuja gestão exige
integridade, transparência e eficiência. É hora de fechar o cofre da
improvisação – e abrir as contas para o cidadão.
A guerra das montadoras
O Estado de S. Paulo
Beneficiário de políticas
protecionistas, setor automotivo abre crise por causa de incentivos
A refrega de montadoras de
automóveis que ocupou o noticiário nos últimos dias com ameaças e ofensas
públicas, tendo de um lado as “tradicionais” General Motors, Stellantis (Fiat e
Peugeot, entre outras), Toyota e Volkswagen, e de outro a entrante chinesa BYD,
é o reflexo de uma política que há sete décadas cerca de protecionismo a
indústria automotiva. Desde o Plano de Metas, de Juscelino Kubitschek, nos idos
dos anos 1950, o setor é beneficiário de programas de incentivo que, entra
governo, sai governo, são intocáveis.
O plano da vez, direcionado
a carros elétricos, propiciou a instalação da fábrica da BYD na Bahia em julho
deste ano. Como tradicionalmente ocorre no País, não se trata exatamente de uma
fábrica, mas de um centro de montagem de carros que vêm de fora total ou
parcialmente desmontados. A invasão de carros chineses já havia começado antes,
embalada pela política de tarifa zero para os elétricos, que vigorou até o
final de 2023.
Pelos dados do Ministério do
Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), a China negociou 62.613
carros elétricos com o Brasil no primeiro semestre de 2024, uma alta de
incríveis 717% em relação a igual período de 2023. Mais de 90% dos carros
elétricos que entraram no País eram chineses. Meses antes da inauguração, a BYD
solicitou ao governo a aplicação de tarifa zero, e os concorrentes, que já
falavam em dumping, reagiram.
No mês passado, os
presidentes das quatro grandes montadoras enviaram ao presidente Lula da Silva
uma carta “alertando” para a possibilidade demissões em massa em suas unidades
com o incentivo que, avaliaram, não serviria a um modelo de transição, mas a “um
padrão operacional que tenderá a se consolidar e prevalecer”. Em resposta, a
BYD divulgou uma nota pública acusando-os de “chantagem emocional” e
chamando-os de “dinossauros” e de “barões da indústria”.
Foi um espetáculo
lamentável, que provocou uma reunião de emergência do Comitê Executivo de
Gestão da Câmara de Comércio Exterior. Para debelar o incêndio, a solução
paliativa foi estabelecer cotas de tarifa zero por seis meses e a partir daí
iniciar o cronograma de tarifação que chegará a 35% em janeiro de 2027, um ano
e meio antes do previsto.
Polêmica setorial à parte, o
fato é que o Brasil fracassou na indução de uma indústria moderna e competitiva
no setor automotivo, restando ao consumidor brasileiro pagar caro por modelos
bem piores do que os vendidos no exterior.
A substituição de importações vigorou até o início dos anos 1990 e, ainda assim, em 1995 as alíquotas de importação de carros chegaram a inacreditáveis 70%. Os nomes dos programas protecionistas variaram conforme a criatividade do momento (Mover, Rota 2030, Inovar-Auto e Regime Automotivo), mas o objetivo sempre foi um só: impedir que as montadoras locais enfrentassem de fato a concorrência externa e se modernizassem. É difícil acreditar que, passadas sete décadas, o setor ainda precise de incentivos e proteção – e que se engalfinhe publicamente por isso.
Carga horária no ensino
médio não é questão de número
Correio Braziliense
A ausência dos alunos na
sala de aula aumenta as dificuldades de formação e compromete a qualificação
Etapa de transição entre a
educação básica e a superior, o ensino médio tem papel fundamental na formação
dos estudantes e, consequentemente, no futuro que será traçado pelos
jovens brasileiros. Com duração de três anos, seu principal objetivo é aprimorar
os conhecimentos obtidos durante as fases do fundamental I e II, preparando os
alunos para o mercado de trabalho — seja para ingressar diretamente em uma
profissão, por meio dos cursos técnicos, seja para partir rumo à qualificação
superior, em universidades.
Instituída em 2024 por meio
da Lei nº 14.945, a Política Nacional de Ensino Médio reestruturou essa etapa
da educação, alterando a Lei nº 9.394/1996, de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB), e revogando parcialmente a Lei nº 13.415/17. A nova norma prevê
que, de um total de, no mínimo, 3 mil horas, 2,4 mil devem ser destinadas à
Formação Geral Básica (FGB), que inclui português, inglês, artes, educação
física, matemática, ciências da natureza (biologia, física, química) e ciências
humanas (filosofia, geografia, história, sociologia). O conteúdo da FGB é
definido na Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Com essa implementação, a
expectativa do governo federal e dos especialistas era promover um incremento
da carga horária mínima de formação geral básica ao longo do ensino médio, que
era de 1.800 horas. Mas esse objetivo precisa ser perseguido com mais rigor. Na
última semana, um estudo divulgado pela Rede Escola Pública e Universidade
(Repu), entidade que reúne professores e pesquisadores de universidades
públicas do estado de São Paulo, revelou que unidades da Federação não estão
dentro da lei.
A nota técnica, baseada em
matrizes curriculares de 27 redes estaduais, destaca que Minas Gerais,
Amazonas, Rondônia, Bahia, Pará e Santa Catarina ainda não se adequaram à
exigência legal. A análise aponta que o descumprimento acontece de diferentes
formas, como redução do tempo das aulas (por exemplo, 45 minutos em vez de 50
ou 60), matérias a distância em desacordo e inclusão de atividades
extraescolares como parte da carga horária letiva.
Muito além da quantidade, a
carga horária representa o maior acesso dos estudantes ao conhecimento,
refletindo individual e coletivamente. A ausência dos alunos na sala de aula
aumenta as dificuldades de formação e compromete a qualificação. Fazer cumprir
as horas dentro da escola — de uma forma envolvente — é, também, uma estratégia
para combater o fenômeno da evasão no país, que segue vendo seus jovens abrindo
mão de parte dos estudos para trabalhar.
As instituições precisam ampliar suas ações para a proteção dos adolescentes, e a escola é ambiente essencial para garantir cuidado. Durante o ensino médio, as ferramentas para o sucesso acadêmico e profissional ganham espaço, mas, principalmente, a consciência de cidadania se estabelece. O Brasil precisa manter o foco na educação, cumprindo metas e leis, para que desafios históricos sejam superados em favor do desenvolvimento e da qualidade de vida.
Violência contra a mulher
precisa de punição exemplar
O Povo (CE)
Há diversas tentativas e
pioneirismos, mas em um ritmo de prioridade orçamentária e cultural que não
acompanha os casos reais. A indignação nacional diante das imagens repetidas de
forma exaustiva pela imprensa e redes sociais precisa ser transformada em ação
concreta
O Brasil assistiu
estarrecido, mais uma vez, a cenas de brutalidade onde um homem espanca uma
mulher. Aconteceu dentro de um elevador em Natal (RN), no dia 26 de julho. A
violência de gênero no País é crescente: 257.659 agressões cometidas contra
mulheres em 2024, de acordo com o Anuário da Segurança Pública. Foram 3.870
tentativas de feminicídio, 19% a mais do que no ano anterior. Quatro mulheres
mortas por dia. Com destaque para a subnotificação.
O agressor foi filmado
dentro do elevador de um condomínio no bairro Ponta Negra, zona Sul da capital
potiguar, dando 61 socos no rosto da então namorada. Preso em flagrante logo
após o crime, porque o porteiro viu as imagens e acionou a Polícia, o homem
deverá responder por tentativa de feminicídio. Deverá.
Casos em que homens espancam
parceiras não são isolados. Alguns têm mais repercussão do que outros, e muitos
fatores definem essa realidade, mas a violência doméstica ainda é presente em
muitos e diferentes lares brasileiros.
Ao longo das últimas
décadas, avanços significativos foram concretizados. As denúncias aumentaram,
com a Lei Maria da Penha - que ampliou as penas e os dispositivos de proteção -
o debate tornou-se mais público. Menos privado.
A temática da igualdade de
gênero está mais presente nas escolas, há mais políticas públicas para
prevenção e acolhimento. Legislativo, Executivo e Judiciário têm se apropriado
mais sobre a demanda que a epidemia da violência contra a mulher exibe.
Há diversas tentativas e
pioneirismos, mas em um ritmo de prioridade orçamentária e cultural que não
acompanha os casos reais. As mortes e as agressões não param de acontecer. Os
discursos misóginos também continuam, e são pano de fundo para que as muitas
mudanças não consigam ainda fazer os casos diminuírem.
A indignação nacional diante
das imagens repetidas de forma exaustiva pela imprensa e redes sociais precisa
ser transformada em ação concreta do Estado para que o agressor seja punido de
forma exemplar.
Ele tentou matar uma mulher
por ela ser mulher, a acuou dentro de um local sem possibilidade de fuga ou
defesa, mirou seu rosto por mais de sessenta vezes para bater. Uma violência
com simbologia marcante, numa explícita tentativa de desfigurar a vítima e
deixar sua marca.
Foi preso em flagrante e alegou ter tido um surto claustrofóbico antes da agressão. É preciso repetir, quantas vezes for necessário, que não há justificativa para a violência. O que precisa haver é denúncia eficaz, investigação séria e cumprimento de protocolos que consigam mensurar e qualificar os crimes de forma correta. Para que o julgamento seja sério e consiga mostrar à sociedade que o machismo mata e a violência contra as mulheres precisa parar.
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