segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Bandeiras incendiadas - Demétrio Magnoli

O Globo

Na prática, no Brasil de hoje, o governo 'de esquerda' e o coro dos progressistas clamam pela censura nas redes

A ordem inusitada partiu dele, Alexandre de Moraes, na segunda (28/7). Os militares réus no processo da trama golpista foram obrigados a trocar suas fardas por roupas civis para participar dos interrogatórios. O evento, em si, tem importância zero, a não ser como sintoma.

Moraes nutre obsessão censória: na falta de postagens em redes sociais dos réus, resolveu vetar suas indumentárias, o que é uma forma de expressão. O juiz que derruba perfis às dúzias incendiou a bandeira da liberdade de expressão. Uma coisa é repudiar as sanções de Trump, que violam a soberania do Brasil. Outra é aplaudir seus atos de censura, que violam nossa Constituição. Fazendo-o, os “progressistas” (aspas indispensáveis) ajudam a atiçar as chamas de uma fogueira.

A bandeira não queima, mas troca de mãos. Quem a resgata é a direita extremista: aquela mesma que canta, dia e noite, as glórias da ditadura militar. A inversão da ordem das coisas ilumina as profundezas da crise da democracia. O sistema democrático não entra em crise porque tem inimigos golpistas, mas porque seus defensores tradicionais renunciam aos princípios que o sustentam.

Trump prende estudantes com Green Card que exercem o direito de criticar a política externa dos Estados Unidos. Se pudesse, Bolsonaro fecharia jornais e encarceraria jornalistas. É verdadeiro, pueril e inútil apontar a hipocrisia dos extremistas que empunham a bandeira da liberdade de expressão. O ponto relevante: os críticos a insultam.

Na prática, no Brasil de hoje, o governo “de esquerda” e o coro dos progressistas clamam pela censura nas redes. E o fazem sob a alegação pervertida de que, num país capaz de colocar uma matilha de generais no banco dos réus, postagens de zés-ninguém, autoexilados bolsonaristas, representariam risco mortal à democracia.

São duas, não uma, as bandeiras incendiadas. A esquerda substituiu o marxismo pelo dogma identitário. Os “progressistas”, que nunca se deixaram seduzir pelo primeiro, embarcaram na nau do segundo. Resultado: uma fogueira destinada a consumir o princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos.

A cor, a “raça”, o gênero e a orientação de gênero converteram-se em passaportes para acessos especiais às universidades e ao serviço público. O estatuto identitário subordina ou anula as desigualdades de renda. Do ponto de vista das pessoas comuns, isso aparece como discriminação. Então, numa segunda inversão, é a direita brucutu que passa a discursar em nome da igualdade perante a lei. É o caminho infalível à vitória eleitoral.

Quantas eleições perdidas serão necessárias para que se aprenda uma lição elementar? “Deep state”, Estado profundo — eis a acusação que reconduziu Trump à Casa Branca. O neonacionalismo autoritário, antissocial e xenófobo triunfou não porque os americanos que elegeram Obama transformaram-se em “fascistas” ou “racistas”. A vitória, como escancaram pesquisas quantitativas e qualitativas, decorreu da indignação da maioria contra a “elite woke”. Farto de insultos, o povo comum rechaçou os pregadores chiques da “censura do bem” e das “políticas de diversidade”.

Aqui como lá, com nossas singularidades. Bolsonaro só não foi reeleito por um triz — a margem de votos oferecida pelos eleitores que, a contragosto, deram nova chance a Lula. Contudo, para espanto dos ingênuos, a camarilha golpista derrotada — e processada, e logo mais condenada! — conserva bases sociais suficientes para sonhar com 2026. Paga-se o preço da renúncia à coerência democrática.

A razão pura ensina que a solução para um equívoco monumental começa por uma honesta revisão do discurso político. Mas, na política, geralmente troca-se a razão por motivações de prestígio, pela fidelidade à herança, pelas expectativas dos seguidores. No lugar da revisão, o compromisso renovado com o erro: dobrar a dose do remédio que envenena. Diante da ascensão da direita radical, os “progressistas” inclinam-se a clamar por mais censura (nome ilusório: “regulação das redes”) e mais identitarismo (nome ilusório: “diversidade”).

Por que a direita extremista triunfa? A resposta encontra-se na fogueira.

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