O Globo
Na prática, no Brasil de
hoje, o governo 'de esquerda' e o coro dos progressistas clamam pela censura
nas redes
A ordem inusitada partiu
dele, Alexandre de Moraes, na segunda (28/7). Os militares réus no processo da
trama golpista foram obrigados a trocar suas fardas por roupas civis para
participar dos interrogatórios. O evento, em si, tem importância zero, a não
ser como sintoma.
Moraes nutre obsessão censória: na falta de postagens em redes sociais dos réus, resolveu vetar suas indumentárias, o que é uma forma de expressão. O juiz que derruba perfis às dúzias incendiou a bandeira da liberdade de expressão. Uma coisa é repudiar as sanções de Trump, que violam a soberania do Brasil. Outra é aplaudir seus atos de censura, que violam nossa Constituição. Fazendo-o, os “progressistas” (aspas indispensáveis) ajudam a atiçar as chamas de uma fogueira.
A bandeira não queima, mas
troca de mãos. Quem a resgata é a direita extremista: aquela mesma que canta,
dia e noite, as glórias da ditadura militar. A inversão da ordem das coisas
ilumina as profundezas da crise da democracia. O sistema democrático não entra
em crise porque tem inimigos golpistas, mas porque seus defensores tradicionais
renunciam aos princípios que o sustentam.
Trump prende estudantes com
Green Card que exercem o direito de criticar a política externa dos Estados
Unidos. Se pudesse, Bolsonaro fecharia jornais e encarceraria
jornalistas. É verdadeiro, pueril e inútil apontar a hipocrisia dos extremistas
que empunham a bandeira da liberdade de expressão. O ponto relevante: os
críticos a insultam.
Na prática, no Brasil de
hoje, o governo “de esquerda” e o coro dos progressistas clamam pela censura
nas redes. E o fazem sob a alegação pervertida de que, num país capaz de
colocar uma matilha de generais no banco dos réus, postagens de zés-ninguém, autoexilados
bolsonaristas, representariam risco mortal à democracia.
São duas, não uma, as
bandeiras incendiadas. A esquerda substituiu o marxismo pelo dogma identitário.
Os “progressistas”, que nunca se deixaram seduzir pelo primeiro, embarcaram na
nau do segundo. Resultado: uma fogueira destinada a consumir o princípio da
igualdade política e jurídica dos cidadãos.
A cor, a “raça”, o gênero e
a orientação de gênero converteram-se em passaportes para acessos especiais às
universidades e ao serviço público. O estatuto identitário subordina ou anula
as desigualdades de renda. Do ponto de vista das pessoas comuns, isso aparece
como discriminação. Então, numa segunda inversão, é a direita brucutu que passa
a discursar em nome da igualdade perante a lei. É o caminho infalível à vitória
eleitoral.
Quantas eleições perdidas
serão necessárias para que se aprenda uma lição elementar? “Deep state”, Estado
profundo — eis a acusação que reconduziu Trump à Casa Branca. O neonacionalismo
autoritário, antissocial e xenófobo triunfou não porque os americanos que
elegeram Obama transformaram-se em “fascistas” ou “racistas”. A vitória, como
escancaram pesquisas quantitativas e qualitativas, decorreu da indignação da
maioria contra a “elite woke”. Farto de insultos, o povo comum rechaçou os
pregadores chiques da “censura do bem” e das “políticas de diversidade”.
Aqui como lá, com nossas
singularidades. Bolsonaro só não foi reeleito por um triz — a margem de votos
oferecida pelos eleitores que, a contragosto, deram nova chance a Lula.
Contudo, para espanto dos ingênuos, a camarilha golpista derrotada — e
processada, e logo mais condenada! — conserva bases sociais suficientes para
sonhar com 2026. Paga-se o preço da renúncia à coerência democrática.
A razão pura ensina que a
solução para um equívoco monumental começa por uma honesta revisão do discurso
político. Mas, na política, geralmente troca-se a razão por motivações de
prestígio, pela fidelidade à herança, pelas expectativas dos seguidores. No
lugar da revisão, o compromisso renovado com o erro: dobrar a dose do remédio
que envenena. Diante da ascensão da direita radical, os “progressistas”
inclinam-se a clamar por mais censura (nome ilusório: “regulação das redes”) e
mais identitarismo (nome ilusório: “diversidade”).
Por que a direita extremista
triunfa? A resposta encontra-se na fogueira.
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