José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
Há um cativeiro embutido nas artimanhas do trabalho livre legado pela abolição. E resiste ao tempo
Uma grave pendência da história social brasileira se manifesta com frequência em episódios de violação de direitos nas relações de trabalho. Como o que ocorreu em São Francisco de Itabapoana, no Rio de Janeiro, quando o Grupo Móvel de Fiscalização libertou 105 homens que trabalhavam em cativeiro. O endividamento forçado de trabalhadores para obrigá-los ao trabalho, com práticas de extorsão e, literalmente, de roubo, mediante manipulação de preços dos fornecimentos ou aviamentos, como alimentos, vestuário e até ferramentas, tem constituído técnica de cerceamento da liberdade e dos direitos da pessoa que trabalha. O Brasil já violara a liberdade dos índios escravizados que foram libertados em 1757. Ao deixar pela metade a abolição de 1888, deixou aberto o caminho para a nossa terceira escravidão: a maioria dos trabalhadores libertados agora no Rio, como se vê pelas fotos, é negra e mulata.
É coisa antiga. Desde a revolta dos colonos suíços, no Natal de 1856, trazidos para trabalhar na Fazenda Ibicada, em São Paulo, como substitutos dos negros escravizados, como solução para a escravidão negra que começava a agonizar com o fim do tráfico negreiro em 1850, já se via que a concepção de liberdade dos trabalhadores era restrita e condicionada. Os revoltados foram acusados pelo patrão de serem comunistas, quando o comunismo mal nascia na Europa.
O cativeiro embutido nas artimanhas e falcatruas da modalidade de trabalho livre que o fim da escravidão nos legou tem se manifestado insistentemente ao longo de mais de século e meio.
Euclides da Cunha escreveu sobre o aviamento nos seringais da Amazônia, num relato muito parecido com o do noticiário de agora sobre o caso do Rio. A partir dos anos 1970, os da expansão territorial da economia brasileira para a região amazônica, as denúncias de ocorrência de trabalho escravo se multiplicaram. As jornalistas inglesas Sue Branford e Oriel Glock, longamente familiarizadas com o Brasil, estimaram que naquele período mais de 400 mil pessoas estiveram submetidas à escravidão na derrubada da mata para abertura de novas fazendas naquela região. As violências denunciadas à Polícia Federal, naquele período, e apuradas, eram brutalmente maiores do que as sofridas pelo escravo na escravidão negra.
Havia uma razão para isso: o negro cativo era capital imobilizado de seu senhor. Feri-lo, aleijá-lo ou matá-lo era irracional prejuízo. No caso da escravidão atual, a escravidão é temporária e é mecanismo para reter o cativo enquanto se faz a derrubada, a colheita de um produto ou o corte da cana. Se ele morre, pode ser substituído por outro, sem nenhum prejuízo para quem o explora. Foram encontrados casos que iam desde o tronco, da chibata, da tortura, da humilhação, da mutilação até o assassinato puro e simples. Em julho de 1990, este jornal noticiava o assassinato de quatro trabalhadores escravizados numa fazenda de Paraopebas, no Pará. Um trabalhador fugiu e conseguiu avisar a polícia, que encontrou restos carbonizados de um dos trabalhadores mortos jogados como ração no chiqueiro dos porcos. O circo de horrores se estende pelos casos de trabalhadores feridos, amarrados em árvores, expostos a formigas-de-fogo ou feridos nos testículos e jogados em rios que tem piranha.
Neste caso do Rio, 80 dos trabalhadores eram procedentes da Bahia. No conjunto dos casos que têm ocorrido no Brasil, o Nordeste é majoritariamente a região de recrutamento desses trabalhadores. Não é raro que isso ocorra em famílias de pequenos agricultores, que aceitam o aliciamento dos traficantes pelo mero alívio das despesas de casa durante a entressafra. Bocas a menos na miséria nossa de cada dia.
Nos últimos anos, as ocorrências, antes concentradas na derrubada de matas, disseminou-se por outras regiões, também em atividades agrícolas, como o reflorestamento, o corte de cana ou a colheita, nas quais se tornou comum a sobrexploração do trabalho, o pagamento do trabalho por menos do que vale, do que o trabalhador e sua família necessitam para sobreviver. Esse é, aliás, um padrão disseminado em diferentes atividades econômicas, até mesmo na indústria de confecções na cidade de São Paulo. Essa economia da pobreza não ganhava denúncias nem visibilidade enquanto era, e em muitos casos ainda é, uma atividade sazonal e complementar da atividade agrícola familiar, aquela em que qualquer mísero salário é bem-vindo como complemento de uma agricultura rústica e de uma vida no limiar da economia moderna. Por esse meio, os mais pobres continuam subsidiando, com seu trabalho sazonal barato, a economia rica de setores prósperos da agricultura e mesmo da indústria. É muito provável que o Bolsa-Família, ao entrar na economia com essa mesma função de baratear o trabalho dos pobres, apenas acentue a vulnerabilidade das vítimas dessa exploração.
A economia dual brasileira, que articula dinamicamente a economia da pobreza com a economia da prosperidade, a economia da servidão com a economia moderna, apenas repete o que vem ocorrendo em outros países. Segundo dados apurados pela OIT – Organização Internacional do Trabalho, a escravidão movimenta hoje no mundo milhões de dólares e se tornou um atraente negócio de traficantes de mão de obra e de empresas que atuam aquém das regras do direito.
No Brasil, o governo Fernando Henrique Cardoso, logo no início, criou o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado. E foi no último ano de seu governo que se preparou o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, entregue pronto e definido ao presidente Lula.
Essa terceira abolição da escravatura, no entanto, iniciada no governo anterior, emperrou no atual governo. As medidas sugeridas por uma comissão federal de alto nível, em 2002, foram ignoradas. Enquanto for mais barato pagar a multa do que cumprir a lei, tudo ficará como sempre esteve. Se alguma coisa ainda se faz é o que já vinha fazendo o Grupo Móvel de Fiscalização, que até hoje não recebeu nem medalhas nem elogios.
*Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Autor de Fronteira – A Degradação do Outro nos Confins do Humano (Contexto, 2009)
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
Há um cativeiro embutido nas artimanhas do trabalho livre legado pela abolição. E resiste ao tempo
Uma grave pendência da história social brasileira se manifesta com frequência em episódios de violação de direitos nas relações de trabalho. Como o que ocorreu em São Francisco de Itabapoana, no Rio de Janeiro, quando o Grupo Móvel de Fiscalização libertou 105 homens que trabalhavam em cativeiro. O endividamento forçado de trabalhadores para obrigá-los ao trabalho, com práticas de extorsão e, literalmente, de roubo, mediante manipulação de preços dos fornecimentos ou aviamentos, como alimentos, vestuário e até ferramentas, tem constituído técnica de cerceamento da liberdade e dos direitos da pessoa que trabalha. O Brasil já violara a liberdade dos índios escravizados que foram libertados em 1757. Ao deixar pela metade a abolição de 1888, deixou aberto o caminho para a nossa terceira escravidão: a maioria dos trabalhadores libertados agora no Rio, como se vê pelas fotos, é negra e mulata.
É coisa antiga. Desde a revolta dos colonos suíços, no Natal de 1856, trazidos para trabalhar na Fazenda Ibicada, em São Paulo, como substitutos dos negros escravizados, como solução para a escravidão negra que começava a agonizar com o fim do tráfico negreiro em 1850, já se via que a concepção de liberdade dos trabalhadores era restrita e condicionada. Os revoltados foram acusados pelo patrão de serem comunistas, quando o comunismo mal nascia na Europa.
O cativeiro embutido nas artimanhas e falcatruas da modalidade de trabalho livre que o fim da escravidão nos legou tem se manifestado insistentemente ao longo de mais de século e meio.
Euclides da Cunha escreveu sobre o aviamento nos seringais da Amazônia, num relato muito parecido com o do noticiário de agora sobre o caso do Rio. A partir dos anos 1970, os da expansão territorial da economia brasileira para a região amazônica, as denúncias de ocorrência de trabalho escravo se multiplicaram. As jornalistas inglesas Sue Branford e Oriel Glock, longamente familiarizadas com o Brasil, estimaram que naquele período mais de 400 mil pessoas estiveram submetidas à escravidão na derrubada da mata para abertura de novas fazendas naquela região. As violências denunciadas à Polícia Federal, naquele período, e apuradas, eram brutalmente maiores do que as sofridas pelo escravo na escravidão negra.
Havia uma razão para isso: o negro cativo era capital imobilizado de seu senhor. Feri-lo, aleijá-lo ou matá-lo era irracional prejuízo. No caso da escravidão atual, a escravidão é temporária e é mecanismo para reter o cativo enquanto se faz a derrubada, a colheita de um produto ou o corte da cana. Se ele morre, pode ser substituído por outro, sem nenhum prejuízo para quem o explora. Foram encontrados casos que iam desde o tronco, da chibata, da tortura, da humilhação, da mutilação até o assassinato puro e simples. Em julho de 1990, este jornal noticiava o assassinato de quatro trabalhadores escravizados numa fazenda de Paraopebas, no Pará. Um trabalhador fugiu e conseguiu avisar a polícia, que encontrou restos carbonizados de um dos trabalhadores mortos jogados como ração no chiqueiro dos porcos. O circo de horrores se estende pelos casos de trabalhadores feridos, amarrados em árvores, expostos a formigas-de-fogo ou feridos nos testículos e jogados em rios que tem piranha.
Neste caso do Rio, 80 dos trabalhadores eram procedentes da Bahia. No conjunto dos casos que têm ocorrido no Brasil, o Nordeste é majoritariamente a região de recrutamento desses trabalhadores. Não é raro que isso ocorra em famílias de pequenos agricultores, que aceitam o aliciamento dos traficantes pelo mero alívio das despesas de casa durante a entressafra. Bocas a menos na miséria nossa de cada dia.
Nos últimos anos, as ocorrências, antes concentradas na derrubada de matas, disseminou-se por outras regiões, também em atividades agrícolas, como o reflorestamento, o corte de cana ou a colheita, nas quais se tornou comum a sobrexploração do trabalho, o pagamento do trabalho por menos do que vale, do que o trabalhador e sua família necessitam para sobreviver. Esse é, aliás, um padrão disseminado em diferentes atividades econômicas, até mesmo na indústria de confecções na cidade de São Paulo. Essa economia da pobreza não ganhava denúncias nem visibilidade enquanto era, e em muitos casos ainda é, uma atividade sazonal e complementar da atividade agrícola familiar, aquela em que qualquer mísero salário é bem-vindo como complemento de uma agricultura rústica e de uma vida no limiar da economia moderna. Por esse meio, os mais pobres continuam subsidiando, com seu trabalho sazonal barato, a economia rica de setores prósperos da agricultura e mesmo da indústria. É muito provável que o Bolsa-Família, ao entrar na economia com essa mesma função de baratear o trabalho dos pobres, apenas acentue a vulnerabilidade das vítimas dessa exploração.
A economia dual brasileira, que articula dinamicamente a economia da pobreza com a economia da prosperidade, a economia da servidão com a economia moderna, apenas repete o que vem ocorrendo em outros países. Segundo dados apurados pela OIT – Organização Internacional do Trabalho, a escravidão movimenta hoje no mundo milhões de dólares e se tornou um atraente negócio de traficantes de mão de obra e de empresas que atuam aquém das regras do direito.
No Brasil, o governo Fernando Henrique Cardoso, logo no início, criou o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado. E foi no último ano de seu governo que se preparou o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, entregue pronto e definido ao presidente Lula.
Essa terceira abolição da escravatura, no entanto, iniciada no governo anterior, emperrou no atual governo. As medidas sugeridas por uma comissão federal de alto nível, em 2002, foram ignoradas. Enquanto for mais barato pagar a multa do que cumprir a lei, tudo ficará como sempre esteve. Se alguma coisa ainda se faz é o que já vinha fazendo o Grupo Móvel de Fiscalização, que até hoje não recebeu nem medalhas nem elogios.
*Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Autor de Fronteira – A Degradação do Outro nos Confins do Humano (Contexto, 2009)
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