domingo, 26 de julho de 2009

Eloquência e delinquência

Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

A loquacidade do presidente Lula não é para ser levada a sério. O próprio presidente sabe disso, por isso contraria os assessores mais prudentes e solta o verbo. Suas improvisações retóricas não se destinam à posteridade, servem para uso imediato – no máximo as manchetes do dia seguinte.

Ao contrário de Churchill, não pretende legar uma coletânea de peças retóricas definitivas, tampouco um livrinho de máximas como aquele de Mao Tsé-Tung. O presidente não quer esclarecer, quer confundir, desarmar. Surpreender. Com isso ganha tempo: enquanto os exegetas perdem precioso tempo interpretando os significados do que acabaram de ouvir, Lula preencheu todos os espaços vazios, criou novos fatos políticos e mantém-se no comando do processo.

Na última semana deitou falação sobre biografismo sem se importar que matava Plutarco pela segunda vez. Na cerimônia de posse do novo Procurador Geral da República pretendeu dar um peteleco nos investigadores preocupados tão-somente em abrilhantar suas biografias, desatentos à biografia dos investigados, mas acabou por armar uma tremenda confusão entre currículo funcional e folha corrida criminal.

Richard Nixon mudou o desenho geopolítico mundial e, apesar da façanha, foi obrigado a renunciar porque mentiu e trapaceou. Seu algoz, o ex-diretor do FBI, Mark Felt, não estava interessado em brilhar e manteve em segredo sua identidade durante 30 anos. Para evitar que as proclamações do chefe da Nação sejam tão facilmente contestadas, seria necessária uma reciclagem do seu repertório metafórico. Há sinais evidentes de fadiga do material.

Novo surto oratório no dia seguinte inspirou-se em Cesare Beccaria, o jurista do iluminismo que soube distinguir entre pecado e crime e, principalmente, soube armar uma proporcionalidade entre delitos e penas: "É preciso saber o tamanho do crime. Uma coisa é roubar, matar, outra é pedir emprego e [PRATICAR]o tráfico de influência, o lóbi. O que não se pode é vender tudo como crime de pena de morte" disse o presidente.

Irretorquível, impecável, à primeira vista uma aula de filosofia do direito com amigável entonação de conversa de botequim. A comparação entre o que foi dito e a realidade cotidiana desvenda uma perigosíssima complacência diante da dinâmica da ilicitude. Atrás do tapume pichado por farra geralmente esconde-se crime maior, às vezes hediondo. A delinquência se autoalimenta, degradação contínua, crescente. Também a impunidade: começa microscópica, acaba telescópica.

O presidente é o supremo magistrado, sua jurisprudência, embora baseada no senso comum, não pode conflitar com os estatutos penais em vigor sob pena de degradar o conceito de lei e desnortear a cidadania no tocante ao que é certo e errado, decente e indecente.

Ao providenciar um inocente emprego para o namorado da neta querida, o senador José Sarney cometia uma clara infração – traficava influência – porém ninguém pediu a pena de morte para o generoso avô. O clamor público que domina o país há seis meses não pretende levar o aliado de Lula ao paredón. O que se pretende apenas – inclusive no âmbito do PT – é preservar a lisura da República e recuperar a dignidade da sua mais alta casa legislativa. O suplente do suplente Paulo Duque não tem currículo e não tem biografia para ser o fiscal da ética e do decoro. Tem apenas folha corrida.

Nesta nova fornada de transcrições de telefonemas do clã Sarney, além de empreguinhos e verbinhas que, como no mensalão, são pecadilhos triviais, há uma escancarada inconstitucionalidade: Sarney pai e Sarney filho comemoravam a concessão de uma nova repetidora de TV para o conglomerado de TV da família. Um parlamentar que teoricamente fiscaliza as concessões de serviço público não pode simultaneamente ser concessionário de um serviço público. Tal delito tem nome: prevaricação. E o prevaricador, mesmo com passado impoluto – o que não é o caso –, não pode escapar da punição devida.

Cada vida deve ser continuamente lustrada, não existem biografias definitivas. A do presidente Lula, no auge da sua carreira política, não pode ser maculada com a suspeita de favorecer a impunidade.

» Alberto Dines é jornalista

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