DEU NO VALOR ECONÔMICO
Quarenta anos atrás, em plena ditadura, na transição entre os celerados Costa e Silva e Garrastazu Médici, um grupo de professores aposentados compulsoriamente da USP pelo arbítrio, que reinaria ainda por uns 15 anos, fundou um centro de pesquisas em ciências sociais, em vez de tomar o que poderia ser o ínvio, mas menos arriscado, caminho do exílio. Os nomes são conhecidos: Fernando Henrique Cardoso, Paul Singer, Elza Berquó, José Arthur Giannotti, aos quais se juntaram Candido Procópio Ferreira de Camargo, que não era dos quadros da universidade, Francisco Weffort (que permaneceu na USP, carregando bravamente a ausência dos citados), Juarez Rubens Brandão Lopes (que permaneceu na FAU-USP) e outros; uma constelação que iria marcar a história das ciências sociais em São Paulo e no Brasil e, por que não dizer, na América Latina. Apoiando-os, participando dos "mesões", escrevendo para a revista que o centro passou a editar, intelectuais da nova fase das ciências da sociedade e da história no Brasil, incluindo-se aí a crítica literária. Roberto Schwarz e Fernando Novais são os nomes que resumem o todo, demasiado extenso para citarmos cada um.
Era uma iniciativa ousada e quase inédita. A rigor, apenas o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) havia iniciado trajetória semelhante, atenuada pelo fato de que a Faculdade Cândido Mendes, de propriedade privada, lhe dava sustentação financeira e institucional e não se abateu sobre seus formadores o tacão da ditadura militar. Ousada, porque fazer ciência social no Brasil foi quase sempre sinônimo de subversão, no que estava certa a direita, pois as ciências sociais, embora não sejam capazes de derrubar ditaduras, podem iluminar recônditos escusos e tenebrosos das sociedades, e seus processos formadores. Mas enganou-se a ditadura brasileira quando supôs que o Cebrap era um biombo para atividades políticas, um disfarce entre outros que a esquerda utilizou sempre para burlar a pesada censura e repressão. A surpresa foi a inversão: o Cebrap fez política fazendo ciência social, ao invés do caminho mais tradicional de fazer ciência social começando pela política.
A grande façanha do Cebrap, não a contrapelo de suas contribuições científicas, mas muito de acordo com elas, foi sua aposta na democracia como forma política privilegiada. Eu não diria "aposta na democratização", pois esta é um longo processo e, particularmente na sociedade brasileira, a democratização das relações pessoais, das relações capital-trabalho e das relações sociedade-Estado ainda está na infância e um longo caminho faz-se necessário; não para considerá-la realizada, pois a democracia é sempre a fronteira do futuro, mas pelo menos para retirá-la dos patamares primitivos em que permanece no Brasil, 25 anos depois de a sociedade ter escorraçado a ditadura e os ditadores. Ao contrário da interpretação, muitas vezes repetida, de que a ditadura cansou, na verdade tratou-se de um período muito rico de invenções democráticas, que começaram mesmo ainda em pleno terror ditatorial.
A contribuição às ciências da história e da sociedade é notável. Ao compasso das discussões em curso na América Latina, o Cebrap dedicou-se a discutir a marginalização social, o chamado "inchaço" das cidades, a proletarização sem empregos, já então forte, sob a denominação eufemística de "trabalho informal" (deve-se à OIT, num trabalho sobre um dos países da África negra, creio que o Quênia, o batismo do fenômeno). Mas, ao contrário do que se pensava na época, o "informal" não era o produto do atraso, mas do avanço do progresso, não era o produto da falta de empregos industriais, mas a forma de criação de um exército de reserva para prover os quadros do emprego industrial e de serviços. É claro que esse processo conduziria, quase inevitavelmente, à concentração espantosa da renda e da riqueza, tornando-nos um dos campeões mundiais da desigualdade
Decorria daí, não automaticamente, que as escolhas políticas inclinaram-se para regimes que a teoria sociológico-política chamou de "populistas", parentes próximos do fascismo europeu - um equívoco teórico até hoje não corrigido - cuja instabilidade quase intrínseca terminava desaguando em ferozes ditaduras militares. Estávamos no "olho do furacão": Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Venezuela, passaram por períodos longos de ditaduras militares, e quando isso não ocorreu, como no caso do México, uma revolução popular inaugural do século XX transformou-se num regime opressivo e corrupto que, quando cedeu o passo na cena histórica, o fez para a direita mais retrógrada.
O Cebrap iluminou a cena histórica brasileira, ajudou as forças de oposição à ditadura - embora o fizesse no nome de alguns de seus integrantes - redigindo o famoso programa do anticandidato Ulysses Guimarães, em 1974, que se transformou quase numa bíblia da política no Brasil. Este foi um de seus momentos mais altos. Negou o anátema de um marxismo fossilizado da religião como "ópio do povo" e soube reconhecer na Teologia da Libertação o que de fato ela era: uma força de libertação. Através da estreita colaboração com a Arquidiocese de São Paulo, então sob a lúcida, corajosa e apostólica batuta de d. Paulo Evaristo Arns, produziu um vasto repertório de análises e diagnósticos dos problemas da metrópole, começando com o clássico "São Paulo: Crescimento e Pobreza", que abalou até às raízes o alinhamento da Igreja Católica com a ditadura militar, cuja resposta, pela mão das forças sinistras que a apoiavam, foi a bomba largada nas instalações da rua Bahia. Ajudava assim o novo movimento católico a desatar o nó milenar da predestinação entre pobreza e salvação, sem meter-se nas discussões teológicas, mas substancialmente sustentado nas evidências que as ciências sociais forneciam sobre a iniquidade.
Desmentiu a falácia malthusiana de que as altas taxas de reprodução da população, então vigentes, produziam a pobreza, colocando no seu lugar o contrário: as altas taxas eram a própria produção da pobreza, um mecanismo de defesa das camadas mais baixas da estrutura social, que forneciam os quadros do "informal" e sustentavam, assim, a própria industrialização e o crescimento econômico. Hoje, olhando as taxas de crescimento populacional, já extremamente baixas, quase europeias, dá para rir da pobre "aritmética de coelhos" dos malthusianos da época, entre os quais Roberto "Fields" Campos, Glycon de Paiva e seus seguidores. Não apenas se fazia uma discussão acadêmica que divertia alguns poucos, mas era toda a orientação das políticas públicas sociais que estava em jogo.
Pode-se dizer que esses argonautas, se não acharam o Velocino de Ouro, ajudaram a traçar-lhe o caminho, ao lado de outras forças sociais e políticas que lutaram contra a ditadura . Não é pouco na tradição brasileira, principalmente de suas elites, das quais faziam parte, evidentemente, os membros do Cebrap. Mas souberam dizer não às suas origens.
Francisco de Oliveira é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Quarenta anos atrás, em plena ditadura, na transição entre os celerados Costa e Silva e Garrastazu Médici, um grupo de professores aposentados compulsoriamente da USP pelo arbítrio, que reinaria ainda por uns 15 anos, fundou um centro de pesquisas em ciências sociais, em vez de tomar o que poderia ser o ínvio, mas menos arriscado, caminho do exílio. Os nomes são conhecidos: Fernando Henrique Cardoso, Paul Singer, Elza Berquó, José Arthur Giannotti, aos quais se juntaram Candido Procópio Ferreira de Camargo, que não era dos quadros da universidade, Francisco Weffort (que permaneceu na USP, carregando bravamente a ausência dos citados), Juarez Rubens Brandão Lopes (que permaneceu na FAU-USP) e outros; uma constelação que iria marcar a história das ciências sociais em São Paulo e no Brasil e, por que não dizer, na América Latina. Apoiando-os, participando dos "mesões", escrevendo para a revista que o centro passou a editar, intelectuais da nova fase das ciências da sociedade e da história no Brasil, incluindo-se aí a crítica literária. Roberto Schwarz e Fernando Novais são os nomes que resumem o todo, demasiado extenso para citarmos cada um.
Era uma iniciativa ousada e quase inédita. A rigor, apenas o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) havia iniciado trajetória semelhante, atenuada pelo fato de que a Faculdade Cândido Mendes, de propriedade privada, lhe dava sustentação financeira e institucional e não se abateu sobre seus formadores o tacão da ditadura militar. Ousada, porque fazer ciência social no Brasil foi quase sempre sinônimo de subversão, no que estava certa a direita, pois as ciências sociais, embora não sejam capazes de derrubar ditaduras, podem iluminar recônditos escusos e tenebrosos das sociedades, e seus processos formadores. Mas enganou-se a ditadura brasileira quando supôs que o Cebrap era um biombo para atividades políticas, um disfarce entre outros que a esquerda utilizou sempre para burlar a pesada censura e repressão. A surpresa foi a inversão: o Cebrap fez política fazendo ciência social, ao invés do caminho mais tradicional de fazer ciência social começando pela política.
A grande façanha do Cebrap, não a contrapelo de suas contribuições científicas, mas muito de acordo com elas, foi sua aposta na democracia como forma política privilegiada. Eu não diria "aposta na democratização", pois esta é um longo processo e, particularmente na sociedade brasileira, a democratização das relações pessoais, das relações capital-trabalho e das relações sociedade-Estado ainda está na infância e um longo caminho faz-se necessário; não para considerá-la realizada, pois a democracia é sempre a fronteira do futuro, mas pelo menos para retirá-la dos patamares primitivos em que permanece no Brasil, 25 anos depois de a sociedade ter escorraçado a ditadura e os ditadores. Ao contrário da interpretação, muitas vezes repetida, de que a ditadura cansou, na verdade tratou-se de um período muito rico de invenções democráticas, que começaram mesmo ainda em pleno terror ditatorial.
A contribuição às ciências da história e da sociedade é notável. Ao compasso das discussões em curso na América Latina, o Cebrap dedicou-se a discutir a marginalização social, o chamado "inchaço" das cidades, a proletarização sem empregos, já então forte, sob a denominação eufemística de "trabalho informal" (deve-se à OIT, num trabalho sobre um dos países da África negra, creio que o Quênia, o batismo do fenômeno). Mas, ao contrário do que se pensava na época, o "informal" não era o produto do atraso, mas do avanço do progresso, não era o produto da falta de empregos industriais, mas a forma de criação de um exército de reserva para prover os quadros do emprego industrial e de serviços. É claro que esse processo conduziria, quase inevitavelmente, à concentração espantosa da renda e da riqueza, tornando-nos um dos campeões mundiais da desigualdade
Decorria daí, não automaticamente, que as escolhas políticas inclinaram-se para regimes que a teoria sociológico-política chamou de "populistas", parentes próximos do fascismo europeu - um equívoco teórico até hoje não corrigido - cuja instabilidade quase intrínseca terminava desaguando em ferozes ditaduras militares. Estávamos no "olho do furacão": Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Venezuela, passaram por períodos longos de ditaduras militares, e quando isso não ocorreu, como no caso do México, uma revolução popular inaugural do século XX transformou-se num regime opressivo e corrupto que, quando cedeu o passo na cena histórica, o fez para a direita mais retrógrada.
O Cebrap iluminou a cena histórica brasileira, ajudou as forças de oposição à ditadura - embora o fizesse no nome de alguns de seus integrantes - redigindo o famoso programa do anticandidato Ulysses Guimarães, em 1974, que se transformou quase numa bíblia da política no Brasil. Este foi um de seus momentos mais altos. Negou o anátema de um marxismo fossilizado da religião como "ópio do povo" e soube reconhecer na Teologia da Libertação o que de fato ela era: uma força de libertação. Através da estreita colaboração com a Arquidiocese de São Paulo, então sob a lúcida, corajosa e apostólica batuta de d. Paulo Evaristo Arns, produziu um vasto repertório de análises e diagnósticos dos problemas da metrópole, começando com o clássico "São Paulo: Crescimento e Pobreza", que abalou até às raízes o alinhamento da Igreja Católica com a ditadura militar, cuja resposta, pela mão das forças sinistras que a apoiavam, foi a bomba largada nas instalações da rua Bahia. Ajudava assim o novo movimento católico a desatar o nó milenar da predestinação entre pobreza e salvação, sem meter-se nas discussões teológicas, mas substancialmente sustentado nas evidências que as ciências sociais forneciam sobre a iniquidade.
Desmentiu a falácia malthusiana de que as altas taxas de reprodução da população, então vigentes, produziam a pobreza, colocando no seu lugar o contrário: as altas taxas eram a própria produção da pobreza, um mecanismo de defesa das camadas mais baixas da estrutura social, que forneciam os quadros do "informal" e sustentavam, assim, a própria industrialização e o crescimento econômico. Hoje, olhando as taxas de crescimento populacional, já extremamente baixas, quase europeias, dá para rir da pobre "aritmética de coelhos" dos malthusianos da época, entre os quais Roberto "Fields" Campos, Glycon de Paiva e seus seguidores. Não apenas se fazia uma discussão acadêmica que divertia alguns poucos, mas era toda a orientação das políticas públicas sociais que estava em jogo.
Pode-se dizer que esses argonautas, se não acharam o Velocino de Ouro, ajudaram a traçar-lhe o caminho, ao lado de outras forças sociais e políticas que lutaram contra a ditadura . Não é pouco na tradição brasileira, principalmente de suas elites, das quais faziam parte, evidentemente, os membros do Cebrap. Mas souberam dizer não às suas origens.
Francisco de Oliveira é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
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