DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
No meu último artigo nesta página (Sob o prisma da escravidão, 6/2) lembrei frase de Joaquim Nabuco em que ressaltava que "a escravidão passou 300 anos a permear a sociedade brasileira". Assim caberia saber como a lei e a jurisprudência trataram o escravo.
O direito é reflexo da compreensão de vida em determinado momento histórico-cultural, espelhando os valores prevalecentes. O quadro legal e a jurisprudência, reproduzindo essa permeabilidade da escravidão na sociedade, legitimaram a submissão integral do negro, visto como coisa, e não como pessoa.
A Constituição imperial de 1825 silenciou sobre a escravidão. Porém estabelecia no artigo 1º que o Império do Brasil constituía uma associação política de todos os cidadãos brasileiros, ou seja, segundo o artigo 4º, "os que tivessem nascido no Brasil, sejam ingênuos ou libertos". Admitia-se, portanto, que apenas homens livres e os libertados por via da alforria eram cidadãos brasileiros e destinatários dos direitos civis e políticos consagrados no artigo 179 da mesma Constituição. Destarte, implicitamente se admitia existirem escravos, não incluídos como cidadãos.
No referido artigo 179, relativo aos direitos individuais, o inciso XIX estatuía: "Ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as demais penas cruéis."
Até a promulgação da Constituição se aplicavam sevícias graves aos escravos, como mutilações ou marcas no rosto com ferro quente. Após a Constituição, como punição cruel perdurou apenas o açoite, mesmo porque esse castigo, abolido para o homem livre, veio a ser expressamente previsto no Código Criminal do Império com referência aos escravos: "Art. 60. Se o réu for escravo e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condenado na de açoites, e depois de os sofrer será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz o designar. O número de açoites será fixado na sentença, e o escravo não poderá levar por dia mais de cincoenta."
Além da previsão da pena de açoites no artigo 60, o artigo 14, § 6º, do Código Criminal catalogava, dentre as causas de exclusão do crime, como exercício regular de um direito, o poder do senhor de impor, a seu talante, castigo físico moderado ao escravo. Este, moderado ou não, era prática cotidiana, como se via nas fazendas, quando ao fim do dia cabia ao escravo dar contas das tarefas determinadas, cujo descumprimento podia levar à imposição de punições físicas, instaurando-se regime de medo, causa de muitos suicídios.
A violência legal contra os escravos verificou-se de forma mais evidente na draconiana Lei nº 4, de 10 de junho de 1835. O assassinato de família de fazendeiros em 1833 provocou a proposta de projeto de lei contra os escravos que pusessem em perigo ou lesionassem a vida de seus senhores, de seus familiares ou do feitor. O projeto permaneceu sem votação até a Revolta dos Malês, muçulmano em iorubá. Em janeiro de 1835, negros das etnias nagô e hauçá, em Salvador, rebelaram-se para a formação de um califado.
Em vista desses fatos, o rígido projeto de lei de 1833 foi aprovado, tornando-se a Lei nº 4 de 1835, cujo artigo 1º estabelecia: "Serão punidos com pena de morte os escravos que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer ofensa física a seu senhor, a sua mulher, a descendentes, ou ascendentes que em sua companhia morarem e ao administrador, feitor e às suas mulheres, que com eles viverem. Se o ferimento ou ofensa física forem leves a pena será de açoites à proporção das circunstâncias mais ou menos agravantes."
Estipulava-se também, para rapidez do julgamento, que haveria, logo após os fatos, a convocação imediata do júri, para a sentença se dar no calor das paixões. No artigo 4º determinava-se que, se a sentença fosse condenatória, seria ela executada sem recurso algum.
Havia, portanto, uma lei penal e processual para os escravos e outra para os homens livres, com imposição da pena de morte para fatos de gravidade diversa: homicídio ou "outra qualquer ofensa física".
A coisificação do escravo atinge, no entanto, ponto culminante ao se admitir como legítima a exploração da prostituição de escravas em benefício do senhor. A jurisprudência apresenta o caso de duas moças negras autorizadas a sair à noite pelo senhor, pois era proibida a circulação de escravos após as 19 horas, em troca da entrega de soma de dinheiro, na manhã seguinte, como produto da atividade carnal, sendo o seu proprietário pessoa de posses modestas, um funcionário público.
Nessas hipóteses de exploração sexual de escravas, sentenças de primeira instância determinavam, em Ações de Liberdade propostas por advogados abolicionistas, a aplicação de pena civil de perda do domínio por abuso imoral. Encontrava-se fundamento para concessão de liberdade às escravas levadas à prostituição por seu senhor em textos do Direito Romano, segundo o qual, por mais amplo que fosse o direito de propriedade, não poderia vir a constituir ofensa à moral.
O Supremo Tribunal de Justiça, no entanto, considerou que a legislação romana não poderia ter aplicação entre nós, pois a Constituição garantia o direito de propriedade em sua plenitude. A jurisprudência, portanto, reputava legítimo o senhor ter na prostituição de suas escravas uma fonte de rendimento, tido o escravo como mera mercadoria.
Diante desse quadro, apenas cabe lembrar frase de Coetzee em À Espera dos Bárbaros: "Quando alguns homens sofrem injustamente é destino dos que testemunham esse sofrimento envergonhar-se disso."
Essa vergonha não deve ser purgação de culpa, mas via propulsora de se fazer do direito um meio de viabilizar condições para os despossuídos se realizarem como pessoas, mormente graças à educação e ao acesso à Justiça.
Miguel Reale Júnior, advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
No meu último artigo nesta página (Sob o prisma da escravidão, 6/2) lembrei frase de Joaquim Nabuco em que ressaltava que "a escravidão passou 300 anos a permear a sociedade brasileira". Assim caberia saber como a lei e a jurisprudência trataram o escravo.
O direito é reflexo da compreensão de vida em determinado momento histórico-cultural, espelhando os valores prevalecentes. O quadro legal e a jurisprudência, reproduzindo essa permeabilidade da escravidão na sociedade, legitimaram a submissão integral do negro, visto como coisa, e não como pessoa.
A Constituição imperial de 1825 silenciou sobre a escravidão. Porém estabelecia no artigo 1º que o Império do Brasil constituía uma associação política de todos os cidadãos brasileiros, ou seja, segundo o artigo 4º, "os que tivessem nascido no Brasil, sejam ingênuos ou libertos". Admitia-se, portanto, que apenas homens livres e os libertados por via da alforria eram cidadãos brasileiros e destinatários dos direitos civis e políticos consagrados no artigo 179 da mesma Constituição. Destarte, implicitamente se admitia existirem escravos, não incluídos como cidadãos.
No referido artigo 179, relativo aos direitos individuais, o inciso XIX estatuía: "Ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as demais penas cruéis."
Até a promulgação da Constituição se aplicavam sevícias graves aos escravos, como mutilações ou marcas no rosto com ferro quente. Após a Constituição, como punição cruel perdurou apenas o açoite, mesmo porque esse castigo, abolido para o homem livre, veio a ser expressamente previsto no Código Criminal do Império com referência aos escravos: "Art. 60. Se o réu for escravo e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condenado na de açoites, e depois de os sofrer será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz o designar. O número de açoites será fixado na sentença, e o escravo não poderá levar por dia mais de cincoenta."
Além da previsão da pena de açoites no artigo 60, o artigo 14, § 6º, do Código Criminal catalogava, dentre as causas de exclusão do crime, como exercício regular de um direito, o poder do senhor de impor, a seu talante, castigo físico moderado ao escravo. Este, moderado ou não, era prática cotidiana, como se via nas fazendas, quando ao fim do dia cabia ao escravo dar contas das tarefas determinadas, cujo descumprimento podia levar à imposição de punições físicas, instaurando-se regime de medo, causa de muitos suicídios.
A violência legal contra os escravos verificou-se de forma mais evidente na draconiana Lei nº 4, de 10 de junho de 1835. O assassinato de família de fazendeiros em 1833 provocou a proposta de projeto de lei contra os escravos que pusessem em perigo ou lesionassem a vida de seus senhores, de seus familiares ou do feitor. O projeto permaneceu sem votação até a Revolta dos Malês, muçulmano em iorubá. Em janeiro de 1835, negros das etnias nagô e hauçá, em Salvador, rebelaram-se para a formação de um califado.
Em vista desses fatos, o rígido projeto de lei de 1833 foi aprovado, tornando-se a Lei nº 4 de 1835, cujo artigo 1º estabelecia: "Serão punidos com pena de morte os escravos que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer ofensa física a seu senhor, a sua mulher, a descendentes, ou ascendentes que em sua companhia morarem e ao administrador, feitor e às suas mulheres, que com eles viverem. Se o ferimento ou ofensa física forem leves a pena será de açoites à proporção das circunstâncias mais ou menos agravantes."
Estipulava-se também, para rapidez do julgamento, que haveria, logo após os fatos, a convocação imediata do júri, para a sentença se dar no calor das paixões. No artigo 4º determinava-se que, se a sentença fosse condenatória, seria ela executada sem recurso algum.
Havia, portanto, uma lei penal e processual para os escravos e outra para os homens livres, com imposição da pena de morte para fatos de gravidade diversa: homicídio ou "outra qualquer ofensa física".
A coisificação do escravo atinge, no entanto, ponto culminante ao se admitir como legítima a exploração da prostituição de escravas em benefício do senhor. A jurisprudência apresenta o caso de duas moças negras autorizadas a sair à noite pelo senhor, pois era proibida a circulação de escravos após as 19 horas, em troca da entrega de soma de dinheiro, na manhã seguinte, como produto da atividade carnal, sendo o seu proprietário pessoa de posses modestas, um funcionário público.
Nessas hipóteses de exploração sexual de escravas, sentenças de primeira instância determinavam, em Ações de Liberdade propostas por advogados abolicionistas, a aplicação de pena civil de perda do domínio por abuso imoral. Encontrava-se fundamento para concessão de liberdade às escravas levadas à prostituição por seu senhor em textos do Direito Romano, segundo o qual, por mais amplo que fosse o direito de propriedade, não poderia vir a constituir ofensa à moral.
O Supremo Tribunal de Justiça, no entanto, considerou que a legislação romana não poderia ter aplicação entre nós, pois a Constituição garantia o direito de propriedade em sua plenitude. A jurisprudência, portanto, reputava legítimo o senhor ter na prostituição de suas escravas uma fonte de rendimento, tido o escravo como mera mercadoria.
Diante desse quadro, apenas cabe lembrar frase de Coetzee em À Espera dos Bárbaros: "Quando alguns homens sofrem injustamente é destino dos que testemunham esse sofrimento envergonhar-se disso."
Essa vergonha não deve ser purgação de culpa, mas via propulsora de se fazer do direito um meio de viabilizar condições para os despossuídos se realizarem como pessoas, mormente graças à educação e ao acesso à Justiça.
Miguel Reale Júnior, advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
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