É hora de celebrar a vitória de Obama e do povo americano com a aprovação da reforma do sistema de saúde
Sei que não é politicamente correto acreditar no progresso, mas estou convencido de que ele existe. Não creio no progresso iluminista identificado com o avanço da razão, mas acredito no progresso enquanto desenvolvimento econômico, social e político; enquanto um processo histórico que começou com a revolução capitalista, cujo desenrolar os filósofos iluministas estavam vivendo. A partir de então, para cada país que a completava, o desenvolvimento econômico se tornou relativamente automático e abriu espaço para as demais formas de desenvolvimento. A partir dessa mudança fundamental na história de cada povo, o alcance dos grandes objetivos políticos modernos -segurança, liberdade, bem-estar econômico, justiça social e proteção do ambiente- passou a ocorrer gradualmente. Não por acidente, mas porque a luta política de cidadãos com espírito republicano passou a produzir resultados cumulativos, em vez de se esgotar com a decadência de um império, como aconteceu com o Império Romano.
Se avaliarmos de 50 em 50 anos os países que já realizaram sua revolução capitalista, verificaremos que, apesar dos retrocessos que sempre acontecem e que podem ser terríveis, houve avanço na realização daqueles objetivos políticos.
Os últimos 60 anos da história dos EUA, entretanto, até certo ponto me desmentiam. Entre 1776 e 1945, experimentaram um progresso inigualável, mas, depois do auge alcançado com a vitória na Segunda Guerra Mundial, esse progresso perdeu momento. Se o compararmos com o dos países do Oeste e do Norte da Europa, está claro que estavam ficando para trás. Continuavam a liderar o desenvolvimento econômico e tecnológico, mas mostraram-se incapazes de reduzir as desigualdades sociais, e não souberam corrigir a influência do dinheiro nas eleições, como fizeram os europeus.
Muitos fatores podem explicar esse atraso. Não é esta, porém, a hora de discutir essa questão, e, sim, de celebrar a grande vitória do presidente Barack Obama e do povo americano com a aprovação da reforma do sistema de saúde. Era incompreensível que um país rico como os EUA continuasse sem um sistema universal de saúde. O direito aos cuidados de saúde é um direito cuja universalidade só se compara ao direito à educação fundamental. Nada, nenhum argumento, nenhum critério justifica que os mais ricos ou os mais poderosos tenham mais acesso a eles. Nos EUA, porém, a desigualdade era absoluta, já que mais de 40 milhões de pessoas não tinham nenhuma proteção. Agora, com a implantação de um sistema quase universal de saúde, houve um avanço. O sistema de saúde americano continuará injusto e ineficiente; as empresas de seguro que se opuseram com todas as suas forças à reforma continuarão a ser fonte de enorme ineficiência. Os EUA continuarão a gastar com saúde o dobro do que gastam os países europeus em relação a seu PIB para terem um resultado em termos de proteção a seus cidadãos que, em média, é equivalente, mas que é muito mais desequilibrado. A reforma está longe de haver resolvido todos os problemas.
Mas agora diminuiu muito o número dos que continuarão sem nenhuma proteção -e isso já é motivo para comemorar. Foi uma vitória do povo americano que confirmou minha crença no progresso. E me fez lembrar que vivemos em um mundo desigual e injusto, mas no qual existe, afinal, uma solidariedade básica. A diminuição da injustiça não é apenas uma vitória dos injustiçados; é de todos os que lutam pela justiça.
Luiz Carlos Bresser-Pereira, 75, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Globalização e Competição".
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