A comemoração da presidente Dilma, diretamente da Índia, apontando a aprovação da Lei Geral da Copa como uma prova de que a crise institucional entre o Executivo e o Legislativo só existia "na imprensa", pode ser precipitada.
Há quem veja na rápida reorganização dos partidos da coalizão governamental não o dedo de uma coordenação eficiente com a distribuição de verbas aos parlamentares, mas um recado do Legislativo de que a crise só existe porque a presidente Dilma não sabe lidar com seus aliados.
Nunca a frase "a crise viajou", cunhada pelo então senador Fernando Henrique Cardoso para criticar o presidente José Sarney, foi tão usada pelos parlamentares.
As crises entre o Legislativo e o Executivo brasileiros estão registradas na nossa História, confronto que parece permanente, desde o Império, talvez reforçado pelas características parlamentaristas de nossa Constituição de 1988.
Como temos historicamente um Executivo "imperial" e um Legislativo forte, o choque parece inevitável.
Como exemplos da força do Legislativo, alguns políticos apontam que nunca foi possível ao Executivo impor decisões ao Legislativo, e, sempre que isso foi tentado, um dos dois poderes acabou submetido, ou o presidente caiu (Getulio, Jânio, Collor) ou o Congresso foi fechado, como no regime militar.
O cientista político Sergio Abranches cunhou o termo "presidencialismo de coalização" para caracterizar as necessárias relações entre o Executivo e o Legislativo, e o jurista Pontes de Miranda, no primeiro volume dos "Comentários à Constituição de 1946", já chamava nosso sistema pluripartidário de "presidencialismo de codecisão", que herdáramos da Europa e dos Estados Unidos.
Mas ambos imaginavam negociações políticas em torno de programas partidários, e não fisiológicas como se registram hoje.
O historiador José Murilo de Carvalho, da Academia Brasileira de Letras e professor emérito da UFRJ, acha que, ao longo de nossa História independente, as relações entre Executivo e Legislativo nunca foi unívoca, com alternância entre hegemonia do Executivo, hegemonia do Legislativo e diversos graus intermediários de conflito.
O cientista político da Fundação Getulio Vargas do Rio Octavio Amorim Neto diz que, do ponto de vista histórico, o novo arcabouço institucional estabelecido pela Constituição de 1988 melhorou as condições gerais de efetividade do Executivo, apesar de todos os defeitos da Carta.
Não à toa, diz ele, o que se tem observado desde 2006 - isto é, desde que Lula reorganizou suas relações com os partidos para dar conta da crise do mensalão - são duras fricções entre aliados eventualmente mal coordenados, e não necessariamente crises entre o Executivo e o Legislativo.
O historiador Marco Antonio Villa, professor da Universidade de São Carlos, diz que desde 1985 o Executivo passou a comprar apoios no Legislativo, e por isso ele chama esse "modelo" de "presidencialismo de transação, de negócios, e negócios nada republicanos".
Para José Murilo de Carvalho, o Primeiro Reinado (1822-1831), graças ao Poder Moderador da Constituição e ao caráter autoritário do imperador, foi de predomínio do Executivo.
Na Regência (1831-1840), com governante eleito e sem o Poder Moderador, o Legislativo dominou a cena, a ponto de levar Feijó à renúncia.
No Segundo Reinado (1840-1889), sob Pedro II, caminhou-se lentamente para o parlamentarismo, mas ainda debaixo da sombra do Poder Moderador.
Na Primeira República (1889-1930), o Executivo foi amplamente hegemônico frente ao Legislativo. "O federalismo da nova Constituição conferiu grande poder aos governadores, mas a política dos estados de Campos Sales, substituta do Poder Moderador, fez com que o contrapeso dos estados se reduzisse a uns cinco com os quais o presidente tinha que negociar."
Já Marco Antonio Villa acha que no Império não tivemos esse conflito entre Executivo e Legislativo, pois desde 1847, com a criação da Presidência do Conselho de Ministros, o primeiro-ministro era sempre do partido majoritário.
Quando isso não ocorria, a Câmara era dissolvida, e convocadas novas eleições, que davam, inevitavelmente, maioria ao chefe do governo.
Na Primeira República, na sua opinião, não ocorreu este tipo de confronto entre Executivo e Legislativo, pois os parlamentares estavam submetidos ao chefe de governo via mandatários estaduais.
De 1930 a 1945, na definição de José Murilo de Carvalho, tivemos "tempos revolucionários e autoritários", o Congresso pouco mais fez do que elaborar a Constituição de 1934, de curta vigência.
"Um Executivo forte e centralizador domou até mesmo os governadores, com o auxílio de um terceiro poder moderador, as Forças Armadas."
Marco Antonio Villa chama de "breve período democrático (pero no mucho)" o de 34-37, quando ressalta que Getulio governou como quis, principalmente após a revolta comunista de novembro.
"Aprovou de tudo, até que os parlamentares autorizassem a prisão dos próprios colegas", comenta Villa.
Para José Murilo de Carvalho, as coisas começaram de fato a mudar a partir de 1945, quando a relação entre os dois poderes passou a ser conflituosa e instável até 1964.
A ditadura (1964-1985) reimplantou o predomínio de Executivo, voltando o conflito após a Constituição de 1988. Portanto, analisa José Murilo, com a exceção da Regência e dos períodos democráticos pós-1945, "a regra foi o predomínio do Executivo, com ou sem poder moderador".
O cientista político Octavio Amorim Neto diz que, desde a queda do Estado Novo em 1945, as relações entre Executivo e Legislativo no Brasil foram marcadas, até recentemente, por grandes crises.
"Basta lembrar que quase todos os presidentes que não conseguiram formar ou manter uma maioria parlamentar não lograram terminar seus mandatos".
Lula, em 2003-2006, é a primeira exceção, lembra Amorim Neto. "Ainda assim, o ano de 2005 se caracterizou por uma grave crise política cuja origem se encontra na má organização da base de apoio do chefe de Estado na Câmara dos Deputados e que quase o levou à lona". (Continua amanhã)
FONTE: O GLOBO
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