Sem dúvida, o convívio com algumas figuras da Cultura e da vida social brasileira das últimas décadas foi fundamental para que eu desenvolvesse a minha noção de cidadania. Eu sabia que meu pai era amigo do escritor Nertan Macedo, homem representativo do conservadorismo e que ajudou muita gente em apuros depois de 1964. Mais: meu velho tinha amigos na União Democrática Nacional (UDN), a começar pelo próprio Carlos Lacerda. O ex-governador do então Estado da Guanabara foi quem salvou, inclusive, a vida de Astrojildo Pereira. Eu fui aprendendo que nós deveríamos combater ideias e não pessoas. E isso ficou dentro de mim, como uma lição para o resto da vida. Afinal, as pessoas mudam e as ideias também. Daí eu ser tão avesso talvez a polarizações. O Silvio Tendler dizia sempre para mim que nós nos relacionamos com pessoas e não com ideologias.
A linha divisória se dá entre a civilização e a barbárie, aprendi com as obras do líder operário búlgaro Georgi Dimitrov. A vida é plural, daí ser fundamental levar sempre em conta os mais diferentes setores de opinião, com exceção dos que mergulham na corrupção, subtraindo recursos da economia popular, e dos que defendem os assassinatos e torturas daqueles que são diferentes deles. Os que assim procedem não defendem opinião alguma, apenas estampam interesses desumanos e mesquinhos. Crápulas não têm ideologia nem lado. A canalhice é a sua própria e real substância. Isso tem que ficar bem claro.
Felizmente, a vida se compõe também de
pessoas decentes. Aquele exemplo de Luiz Carlos Prestes rompendo o cordão de
isolamento para abraçar Cordeiro de Farias, no centro do Rio de Janeiro, durante
as comemorações do fim da Segunda Guerra, em 1945, chega a ser emblemático:
Prestes acabava de sair da cadeia, após nove anos de sofrimento imposto pela
ditadura de Getúlio Vargas, e Cordeiro voltava da campanha da FEB, na Itália,
onde fora combater os fascistas alemães e italianos. A ação da FEB contra o
fascismo internacional seria de extrema importância para o desmoronamento do
Estado Novo entre nós. Os dois homens foram companheiros na epopeia da Coluna,
divergiram depois, mas se respeitavam.
Todas as grandes figuras que conheci na vida – a começar por aquelas citadas acima, desde a minha infância e adolescência – sempre tiveram como características a tolerância e a solidariedade. Ter lado não significa ser sectário ou apostar em polarizações próprias de uma época em que prevalece a mediocridade e o baixo nível cultural e moral dos chamados representantes populares.
A História nada mais é do que transmissão de experiência, onde cada um de nós busca saber com exatidão seu lugar no mundo. Aprendi com o tempo que a História não é boa nem má – ela é, como dizia o romancista e crítico literário nigeriano Chinua Achebe. E isso implica em contradições. Enquanto memória coletiva, a História é uma ferramenta que contribui para compreender o funcionamento da sociedade – uma sociedade posta em movimento por pessoas de carne e osso. Nela, nada desaparece: a História sempre deixa marcas, tanto na paisagem quanto na alma das pessoas e em sua maneira de viver em sociedade. A História é feita de camadas, de estratos, e aí está a Arqueologia para provar isso.
É extremamente preocupante esse envolvimento do mundo subterrâneo com as esferas do poder e das finanças. Formou-se no país uma verdadeira burguesia do crime: não adianta tapar o sol com a peneira. Na verdade, a aliança do lumpesinato, da bandidagem, com a alta burguesia foi o caldo de cultura do nazismo. Adolf Hitler e sua escória foram a materialização mais completa disso. Mas, antes dele, Luís Bonaparte já se valia das camadas excluídas para dar seu golpe de Estado, no final de 1851.
O Brasil tem que voltar a nos interessar, entrar no nosso radar. O sentimento de brasilidade não pode ser abandonado por nós. O fato é que a mudança social saiu do nosso horizonte e tende a ser substituída por uma simples busca de ascensão individual. E a ausência de um projeto de nação reforça esse risco. Organizações sindicais, igrejas e até mesmo partidos políticos que antes se reivindicavam do campo progressista insistem há décadas nessa tecla individualista, na busca da chamada prosperidade, a qualquer preço. Tudo está sendo arrastado para "as águas geladas do cálculo egoísta". E isso nada tem que ver com a legítima procura pela melhoria das condições de vida. É pura e simplesmente fazer do homem uma extensão da mercadoria, alienando-o portanto cada vez mais, já que a sua força de trabalho só existe como fonte de lucros, e não como realização pessoal. E o projeto coletivo, consubstanciado no próprio projeto de nação, vai se perdendo. Desconhecer um país, seu povo e sua cultura, eis o primeiro passo para se desfazer dele.
Hegel escreveu que “a primeira categoria da consciência histórica não é a lembrança: é a notícia, a espera, a promessa”. Isto é, a boa expectativa, a esperança. "O verbo da vida é andar" – e eu não me canso de repetir essa frase do escritor Álvaro Moreyra. E é caminhando sobre essas camadas de terra que cada um de nós escreve a sua história, deixando suas pegadas no chão.
*Ivan Alves Filho, historiador

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