quinta-feira, 20 de novembro de 2025

A História e as suas camadas, por Ivan Alves Filho

Por nossa casa no Rio de Janeiro transitavam, ao longo dos anos, Astrojildo Pereira, Nelson Werneck Sodré, Oscar Niemeyer, Domingos da Guia, Ismael Silva, Gerardo Mello Mourão, João Saldanha, Sílvio Caldas, Ferreira Gullar, Carlos Alberto Caó de Oliveira, Fernando Ferrari, Giocondo Dias e Luiz Carlos Prestes. Outros que eu não me recordo de ter visto lá em casa, mas que eram amigos de meu pai, e que eu também conheci, foram Prudente de Morais, neto, Doutel de Andrade, Benjamin Cabello e Alberto Passos Guimarães. Com o tempo, algumas dessas amizades foram sendo transferidas também para mim. E eu fui criando outras pela vida afora, naturalmente. 

Sem dúvida, o convívio com algumas figuras da Cultura e da vida social brasileira das últimas décadas foi fundamental para que eu desenvolvesse a minha noção de cidadania. Eu sabia que meu pai era amigo do escritor Nertan Macedo, homem representativo do conservadorismo e que ajudou muita gente em apuros depois de 1964. Mais: meu velho tinha amigos na União Democrática Nacional (UDN), a começar pelo próprio Carlos Lacerda. O ex-governador do então Estado da Guanabara foi quem salvou, inclusive, a vida de Astrojildo Pereira. Eu fui aprendendo que nós deveríamos combater ideias e não pessoas. E isso ficou dentro de mim, como uma lição para o resto da vida. Afinal, as pessoas mudam e as ideias também. Daí eu ser tão avesso talvez a polarizações. O Silvio Tendler dizia sempre para mim que nós nos relacionamos com pessoas e não com ideologias. 

A linha divisória se dá entre a civilização e a barbárie, aprendi com as obras do líder operário búlgaro Georgi Dimitrov. A vida é plural, daí ser fundamental levar sempre em conta os mais diferentes setores de opinião, com exceção dos que mergulham na corrupção, subtraindo recursos da economia popular, e dos que defendem os assassinatos e torturas daqueles que são diferentes deles. Os que assim procedem não defendem opinião alguma, apenas estampam interesses desumanos e mesquinhos. Crápulas não têm ideologia nem lado. A canalhice é a sua própria e real substância. Isso tem que ficar bem claro.  

Felizmente, a vida se compõe também de pessoas decentes. Aquele exemplo de Luiz Carlos Prestes rompendo o cordão de isolamento para abraçar Cordeiro de Farias, no centro do Rio de Janeiro, durante as comemorações do fim da Segunda Guerra, em 1945, chega a ser emblemático: Prestes acabava de sair da cadeia, após nove anos de sofrimento imposto pela ditadura de Getúlio Vargas, e Cordeiro voltava da campanha da FEB, na Itália, onde fora combater os fascistas alemães e italianos. A ação da FEB contra o fascismo internacional seria de extrema importância para o desmoronamento do Estado Novo entre nós. Os dois homens foram companheiros na epopeia da Coluna, divergiram depois, mas se respeitavam.  

Todas as grandes figuras que conheci na vida – a começar por aquelas citadas acima, desde a minha infância e adolescência – sempre tiveram como características a tolerância e a solidariedade. Ter lado não significa ser sectário ou apostar em polarizações próprias de uma época em que prevalece a mediocridade e o baixo nível cultural e moral dos chamados representantes populares.  

A História nada mais é do que transmissão de experiência, onde cada um de nós busca saber com exatidão seu lugar no mundo. Aprendi com o tempo que a História não é boa nem má – ela é, como dizia o romancista e crítico literário nigeriano Chinua Achebe. E isso implica em contradições. Enquanto memória coletiva, a História é uma ferramenta que contribui para compreender o funcionamento da sociedade – uma sociedade posta em movimento por pessoas de carne e osso. Nela, nada desaparece: a História sempre deixa marcas, tanto na paisagem quanto na alma das pessoas e em sua maneira de viver em sociedade. A História é feita de camadas, de estratos, e aí está a Arqueologia para provar isso. 

É extremamente preocupante esse envolvimento do mundo subterrâneo com as esferas do poder e das finanças. Formou-se no país uma verdadeira burguesia do crime: não adianta tapar o sol com a peneira. Na verdade, a aliança do lumpesinato, da bandidagem, com a alta burguesia foi o caldo de cultura do nazismo. Adolf Hitler e sua escória foram a materialização mais completa disso. Mas, antes dele, Luís Bonaparte já se valia das camadas excluídas para dar seu golpe de Estado, no final de 1851. 

O Brasil tem que voltar a nos interessar, entrar no nosso radar. O sentimento de brasilidade não pode ser abandonado por nós. O fato é que a mudança social saiu do nosso horizonte e tende a ser substituída por uma simples busca de ascensão individual. E a ausência de um projeto de nação reforça esse risco. Organizações sindicais, igrejas e até mesmo partidos políticos que antes se reivindicavam do campo progressista insistem há décadas nessa tecla individualista, na busca da chamada prosperidade, a qualquer preço. Tudo está sendo arrastado para "as águas geladas do cálculo egoísta". E isso nada tem que ver com a legítima procura pela melhoria das condições de vida. É pura e simplesmente fazer do homem uma extensão da mercadoria, alienando-o portanto cada vez mais, já que a sua força de trabalho só existe como fonte de lucros, e não como realização pessoal. E o projeto coletivo, consubstanciado no próprio projeto de nação, vai se perdendo. Desconhecer um país, seu povo e sua cultura, eis o primeiro passo para se desfazer dele. 

Hegel escreveu que “a primeira categoria da consciência histórica não é a lembrança: é a notícia, a espera, a promessa”. Isto é, a boa expectativa, a esperança. "O verbo da vida é andar" – e eu não me canso de repetir essa frase do escritor Álvaro Moreyra. E é caminhando sobre essas camadas de terra que cada um de nós escreve a sua história, deixando suas pegadas no chão.  

*Ivan Alves Filho, historiador 

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