As comemorações do golpe de 64 ganharam um alento este ano. O patético "parabéns pra você" no 31 de março, data inaugural da ditadura militar, andava quase inaudível na caserna, quando ganhou um reforço de peso. Dessa vez, o Brasil inteiro ouvirá os nostálgicos dos anos de chumbo - graças à ex-guerrilheira Dilma Rousseff.
No final dos anos 70, quando o regime autoritário chegava ao seu último capítulo, o general João Figueiredo assumiu a Presidência da República com um inesquecível brado "democrático": avisou que ia "prender e arrebentar" quem fosse contra a abertura política. Figueiredo fez escola. Na polêmica sobre a Comissão da Verdade, Dilma Rousseff botou para quebrar, em nome da democracia.
A presidente do governo popular mandou amordaçar militares da reserva que criticaram duas de suas ministras. As auxiliares de Dilma haviam defendido a revogação da Lei da Anistia - o pacto nacional para a saída da ditadura. Os militares contrariados publicaram um manifesto de repúdio no site do Clube Militar. Dilma mandou o Exército apagar o texto e enquadrou os militares como insubordinados. Quem for contra a Comissão da Verdade, ela prende e arrebenta (ou pelo menos censura).
Era o que faltava para ressuscitar as almas penadas leais ao golpe de 64. Autoritarismo é vitamina para elas. Mas ser a favor do regime militar também não pode. O governo de esquerda aceita o pensamento de direita, desde que ninguém o manifeste. A democracia popular tem dono: ame-a ou deixe-a.
Foi com esse espírito que um bando de militantes de partidos filiados ao poder central foi para a porta do Clube Militar, no Centro do Rio. Lá dentro ocorria uma homenagem ao movimento de março de 64. Do lado de fora, em defesa dos direitos humanos e da verdade, os manifestantes fecharam a Avenida Rio Branco na marra. Atiraram ovos contra seguranças do prédio, incendiaram cartazes e tentaram agredir militares que saíam do evento, provocando a reação da polícia que tentava protegê-los e transformando a Cinelândia em praça de guerra. Um show de democracia.
A Comissão da Verdade pretende investigar os crimes cometidos pela direita no poder. O país não pode mesmo dormir tranquilo sobre certos disparates, como a versão militar de que Vladimir Herzog se suicidou na cela do DOI-Codi. É um escárnio. O problema dessa revisão é que não se encontrará a verdade no passado sem saber onde ela anda no presente.
Hoje o Brasil é governado pela esquerda. E a esquerda combateu a ditadura, defendendo a democracia, a liberdade e os pobres. Como essa autoridade moral foi usada no poder? De várias formas - algumas delas não contabilizadas. Quando estourou o escândalo do mensalão, Delúbio Soares, então poderoso tesoureiro do PT, negou o flagrante com convicção: "É uma conspiração da direita contra o governo popular." O ex-guerrilheiro José Dirceu, apontado como chefe da quadrilha, caiu em desgraça, mas fez sua sucessora na Casa Civil: a "querida companheira de armas" Dilma Rousseff. Em meio às tramoias, a mística da resistência à ditadura estava intacta.
A virtude de mulher-coragem, ex-refém dos militares, levou Dilma longe. Candidata a presidente, transformou em ministra da Casa Civil a obscura companheira Erenice Guerra, também ungida pela mística da militância de esquerda. Enquanto Erenice caía por tráfico de influência, descobria-se que Dilma se fizera passar pela atriz Norma Bengell numa foto da Passeata dos Cem Mil, em 1968, divulgada por sua campanha. O que seria dela sem a ditadura?
Dilma não teria sido eleita - nem qualquer outro afilhado revolucionário de Lula - se os companheiros do mensalão tivessem sido punidos. Ali estava, para quem quisesse ver, a conversão de um partido e de uma causa "libertária" em sistema de perpetuação no poder, a partir de um planejado assalto ao Estado. Transcorridos quase sete anos, essa fraude política sem precedentes permanece misteriosamente no colo do Supremo Tribunal Federal, prestes a sumir do mapa pela extinção do processo.
Aí a Justiça brasileira terá legalizado as palavras do general Lula: "O mensalão não existiu." Haverá uma Comissão da Verdade para desenterrar o crime dos heróis da resistência?
Enquanto o mito não se desmancha, as vítimas profissionais da ditadura vão fazendo o seu pé de meia. Na série de revoluções ministeriais, os comunistas se destacaram partilhando o dinheiro do Esporte entre as ONGs amigas do PCdoB. A imprensa burguesa bombardeou essa distribuição de renda e o ministro caiu, mas a companheira Dilma manteve o cargo com a agremiação. Em comunismo que está ganhando não se mexe (ainda mais em véspera de Copa do Mundo).
Assim como o ex-guerrilheiro Fernando Pimentel, que uniu forças com a amiga Dilma e se tornou um próspero consultor, muitos companheiros viverão em paz sob a anistia do mensalão. Essa, ninguém revoga.
Guilherme Fiuza é jornalista.
FONTE: O GLOBO
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