O lançamento simultâneo dos quatro primeiros volumes de 'A Comédia Humana' e uma nova tradução de Dom Quixote colocam lado a lado o renovador do romance moderno e seu inventor
Antonio Gonçalves Filho
Ao escrever o prefácio de seu monumento literário A Comédia Humana, lançado em 1842, o escritor francês Honoré de Balzac (1799-1850) atribuiu a origem das 88 obras que compõem a coleção a uma influente lista de autores do passado, destacando particularmente o conterrâneo Rabelais e o espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616), considerado o pai do romance moderno. Por coincidência, ambos ressurgem em grande estilo nas estantes das livrarias brasileiras. A editora Globo lançou na terça-feira, com um debate em São Paulo, os quatro primeiros dos 17 volumes que compõem as Cenas da Vida Privada, primeira parte de A Comédia Humana (selo Biblioteca Azul). E a Penguin Companhia publica uma nova tradução de Dom Quixote, a obra-prima de Cervantes, em dois volumes (selo Clássicos), que exigiu dois anos de trabalho do gaúcho Ernani Ssó.
Nascido na Europa com Cervantes, o romance moderno tem como traço distintivo sua capacidade de desobedecer às leis dos gêneros clássicos da prosa, como definiu o poeta mexicano Octavio Paz. Balzac, contudo, não desprezou as leituras em voga no século 19 - da ficção histórica (do escocês Walter Scott) ao texto místico (do sueco Swedenborg) - para renovar o gênero, europeu por excelência, pelas razões que o tradutor Paulo Rónai (1907-1992) expõe no texto inédito publicado nesta página, escrito em 1945 e localizado pela pesquisadora Zsuzsanna Spiry no sítio da família do intelectual. Húngaro de nascimento e naturalizado brasileiro, Rónai foi o primeiro editor de A Comédia Humana no País - que chega à terceira edição, revista e atualizada -, pela antiga Editora Globo, de Porto Alegre. Simultaneamente, a Globo Livros (subdivisão da atual Editora Globo) lança pelo selo Biblioteca Azul um longo ensaio, Balzac e a Comédia Humana, de Rónai, doutor em literatura com uma tese (defendida em 1930) sobre os romances de mocidade do escritor francês. Ele coordenou uma equipe de 20 tradutores na época da primeira edição, entre 1946 e 1955, estabelecendo padrões seguidos na segunda edição, em 1989.
Negado por quase todos os críticos sérios enquanto vivo, como lembra Rónai nesse ensaio, Balzac, meio século após sua morte, já era objeto de análise de grandes estudiosos. O teórico revolucionário alemão Friedrich Engels (1820-1895), parceiro intelectual de Marx, considerava A Comédia Humana a quintessência do romance social, embora Balzac estivesse longe de comungar de sua ideias - era um monarquista, o que não prejudicou sua capacidade de perceber as condições de vida dos trabalhadores de seu tempo e ser estimado por socialistas. Mas, como escreveu o especialista em sua obra, Fernand Baldensperger, respeitado por Rónai, a distinção entre Napoleão e o homem comum é apenas perceptível socialmente. A natureza não vê diferença entre os dois. Ambos viram pó. Baldensperger sugere que Balzac dividia o mesmo credo.
De fato, O Pai Goriot (1834), uma das obras do quarto volume de A Comédia Humana, não seria possível sem os longos passeios do escritor pelo Museu de História Natural e as caminhadas pelo cemitério Père-Lachaise em Paris (onde seria enterrado). Inspirado no trabalho do naturalista francês Étienne Geoffray Saint-Hilaire (1772-1884), Balzac levou a espécie humana a uma incômoda e estreita relação com o mundo dos animais irracionais. Criou um sistema em que o leitor é levado a participar de um jogo protocubista, fragmentário, de associações, achando graça na descrição de tipos impagáveis como o barão Henrique Montes de Montejanos (o único brasileiro da galeria balzaquiana), que se vinga da senhora Marneffe com a fúria de um nativo vindo da selva tropical em A Prima Bette (1846), de Cenas da Vida Parisiense (volume 9).
A exemplo do Dom Quixote de Cervantes, vários personagens de Balzac abdicam da razão para viver suas fantasias de poder, como o protagonista de Melmoth Apaziguado (1835), sobre um caixa de banco que faz um pacto com o diabo. Ou o divertido caixeiro-viajante de O Ilustre Gaudissart (1833), que tenta vender apólices de seguro para matutos, porém mais espertos que ele. Esse tipo de humor passa por Rabelais, mas vem de Cervantes e de suas paródias de gêneros literários que ajudaram a criar o romance moderno. O Pai Goriot, explorado e desprezado pelas filhas, nesse sentido, é uma espécie de Lear ainda mais patético que o rei de Shakespeare.
Cervantes separa o romance do épico ao contrapor o mundo real e prosaico ao imaginário e poético, como assinalou o argentino Jorge Luis Borges num ensaio sobre Dom Quixote reproduzido na atual edição. Balzac faria o mesmo no futuro, abrindo caminho para Proust, Kafka e Joyce. Uma vez que a literatura reflete a sociedade em que nasce, o herói literário romântico - doente - pode fornecer um bom diagnóstico sobre ela. A intrusão da linguagem cotidiana no universo literário é vista pelo primeiro leitor de Cervantes como um gesto heroico para iniciar um diálogo interclassista, também a proposta de Balzac ao reduzir a linguagem a cacos, contaminando a literatura com a fala das ruas, apressada, coloquial - o que explica a imediata popularidade de Dom Quixote.
O tradutor gaúcho Ernani Só conta que traduzir Cervantes, “famoso pelo estilo desleixado”, nem por isso foi uma tarefa fácil. Pelo contrário. Ele não se meteu a copidescar Cervantes, garante, mas não sucumbiu a uma tradução literal para recuperar em português a história da triste figura que perde o juízo, sonhando com romances de cavalaria numa idade avançada. Pretendendo imitar seus heróis, o fidalgo, como se sabe, entra no reino da fantasia para encontrar seu antípoda, o realista Sancho Pança.
O tradutor leu todas as versões disponíveis em português de Dom Quixote e concluiu que falta “açúcar e afeto” no estilo “apagado” de traduções anteriores para o português, inclusive as dos viscondes de Castilho e Azevedo. Ernani Ssó traiu Cervantes com mais liberdade e menos arcaísmos, embora tenha usado igualmente palavras da época de Cervantes ou anteriores, do século 13. Chegou ao 19, mas não ao 20 (a única palavra desse século é “encrenca”, nascida em 1913). Seu maior trabalho foi traduzir o primeiro volume e os ditados do fiel escudeiro de Dom Quixote, Sancho Pança, buscando uma correspondência analógica com a sabedoria popular dos brasileiros. Como Cervantes brinca com a linguagem e faz paródia do próprio romance - em sua segunda parte, os personagens, também leitores de Dom Quixote, comentam o que o autor escreveu sobre eles -, Ernani Ssó decidiu (sub)verter a retórica pomposa parodiada pelo espanhol, entrando em seu jogo. Porém, com cautela.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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