- Folha de S. Paulo
Sociedades habitualmente reescrevem o passado conforme as vicissitudes do presente. Na Revolução Francesa, até o calendário foi subvertido na tentativa de apagar vestígios clericais e aristocráticos. A coisa não pegou e sucumbiu ao rumo ordenado quase 2.000 anos antes –e depois ajustado no papado de Gregório 13– por outro rompedor, Júlio César.
No centro de São Paulo, a República rebatizou de 15 de Novembro a rua que antes era Da Imperatriz. Mais de um século depois, o elevado Costa e Silva passou a ser João Goulart.
Grupelhos na capital paulista alvejam monumentos, como o Às Bandeiras, no Ibirapuera, e a avolumada estátua de Borba Gato, na zona sul. Imitam, sem impacto comparável, a marcha de movimentos iconoclastas de inclinação identitária nos EUA.
Charlottesville seria só mais uma das páginas dessa história, não tivesse sido iluminada pela reação fascistoide e pelo desfecho homicida. Por todo o território americano, comunidades locais vinham retirando de lugares públicos estátuas e homenagens aos comandantes e aos soldados sulistas da Guerra de Secessão (1861-1865). O episódio na Virgínia apenas acelerou essa tendência.
O viés de recepção negativa das intervenções de Donald Trump deixou passar quase batido um elemento crítico não trivial desse debate. Até que ponto se deveria caminhar com as revisões do passado estimuladas pelas convicções do presente?
Os heróis da independência George Washington e Thomas Jefferson deveriam descer do pedestal por terem sido senhores de escravos? Woodrow Wilson, campeão do princípio da autodeterminação dos povos, deveria ser apagado dos memoriais por ter favorecido a segregação racial?
A questão é que peso dar ao contexto em que as escolhas ocorrem e ao balanço, sempre imperfeito, entre perdas e ganhos. É indagação que se faça aos humanos, não às estátuas a pretexto das quais se engalfinham.
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