domingo, 25 de setembro de 2022

Sérgio Augusto - O malandro das letras

O Estado de S. Paulo, 24.9.22

Cronista inimitável, Sérgio Porto se alimentou da cultura do asfalto, dos morros e dos subúrbios

O Portal da Crônica Brasileira, relicário virtual do Instituto Moreira Salles, ganhou uma nova preciosidade: a prosa jornalística de Sérgio Porto (1923-1968) e seu heterônimo Stanislaw Ponte Preta. Lalau é o segundo gaiato incorporado àquele acervo; o primeiro foi Ivan Lessa.

Nenhum outro humorista superou o “filho de Dona Dulce” em popularidade e ubiquidade nas décadas de 50 e 60. Ativo no rádio, no teatro e na televisão, parecia estar em todos os jornais e revistas, a escrever e dizer coisas engraçadas, rindo dos poderosos e levando às últimas consequências sua precoce vocação para gozar o resto da humanidade. Tinha apenas 5 anos de idade quando, ao avistar uma mulher de fartos seios, comentou com a mãe: “Aquela ali tem leite condensado”.

Não livrava a cara de ninguém. As Testemunhas de Jeová, por exemplo, proporcionaram-lhe duas tiradas memoráveis. Uma escrita e publicada: “Se fosse inocente, não precisaria de testemunha”. Outra apenas dita, no meio da rua, a um grupo de incômodos proselitistas: “Como posso ser Testemunha de Jeová se eu nem vi a briga?”.

Cronista inimitável, “de uma ágil comicidade de raciocínio e uma pronta sensibilidade diante de todas as coisas que merecem o desgaste do afeto” (apud Paulo Mendes Campos), sua carioquice não tinha impurezas e se alimentou da cultura do asfalto, dos morros, dos subúrbios e do ethos moderno e boêmio de Copacabana, onde nasceu e viveu a vida inteira.

Seu estilo coloquial e cheio de ginga fez dele uma espécie de malandro das letras. Ninguém o resumiu com mais rentura do que Barbosa Lima Sobrinho: “O sol entrava em suas frases por todos os lados”.

Sintonizado desde jovem com o jazz e a música popular por seu tio Lúcio Rangel, firmou-se primeiro no jornalismo como crítico musical e até aventurou-se a responder sobre samba no quiz show de TV O Céu É o Limite. Um inexplicável “branco” eliminou-o na reta final. “Quem compôs Flor do Abacate?” Não houve jeito de Sérgio se lembrar de Jacob do Bandolim, além do mais, seu amigo.

Seu Febeapá (Festival de Besteira Que Assola o País), que celebrizou no jornal Última Hora, a partir do golpe de 1964, foi o mais rico, divertido e desmoralizante painel diário das insanidades cometidas nos primeiros quatro anos da ditadura militar, a que ele só se referia, debochadamente, como “a Redentora”. Que banquete não estaria fazendo hoje, com os cocorocas do bolsonarismo.

Sérgio morreu na mesma noite (29 de setembro de 1968) em que Sabiá venceu o Festival Internacional da Canção e Tom e Chico Buarque saíram vaiados por uma plateia que majoritariamente torcia pelo engajamento prosaico de Caminhando, de Geraldo Vandré.

Há uma fascinante simetria nessa coincidência, misturando exílio, Gonçalves Dias, uma percepção rombuda da música de protesto e a morte precoce (aos 45 anos) do nosso mais estimado gozador.

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