O Estado de S. Paulo, 24.9.22
Cronista inimitável, Sérgio Porto se alimentou da cultura do asfalto, dos morros e dos subúrbios
O Portal da Crônica Brasileira, relicário
virtual do Instituto Moreira Salles, ganhou uma nova preciosidade: a prosa
jornalística de Sérgio Porto (1923-1968) e seu heterônimo Stanislaw Ponte
Preta. Lalau é o segundo gaiato incorporado àquele acervo; o primeiro foi Ivan
Lessa.
Nenhum outro humorista superou o “filho de
Dona Dulce” em popularidade e ubiquidade nas décadas de 50 e 60. Ativo no
rádio, no teatro e na televisão, parecia estar em todos os jornais e revistas,
a escrever e dizer coisas engraçadas, rindo dos poderosos e levando às últimas
consequências sua precoce vocação para gozar o resto da humanidade. Tinha
apenas 5 anos de idade quando, ao avistar uma mulher de fartos seios, comentou
com a mãe: “Aquela ali tem leite condensado”.
Não livrava a cara de ninguém. As Testemunhas de Jeová, por exemplo, proporcionaram-lhe duas tiradas memoráveis. Uma escrita e publicada: “Se fosse inocente, não precisaria de testemunha”. Outra apenas dita, no meio da rua, a um grupo de incômodos proselitistas: “Como posso ser Testemunha de Jeová se eu nem vi a briga?”.
Cronista inimitável, “de uma ágil
comicidade de raciocínio e uma pronta sensibilidade diante de todas as coisas
que merecem o desgaste do afeto” (apud Paulo Mendes Campos), sua carioquice não
tinha impurezas e se alimentou da cultura do asfalto, dos morros, dos subúrbios
e do ethos moderno e boêmio de Copacabana, onde nasceu e viveu a vida inteira.
Seu estilo coloquial e cheio de ginga fez
dele uma espécie de malandro das letras. Ninguém o resumiu com mais rentura do
que Barbosa Lima Sobrinho: “O sol entrava em suas frases por todos os lados”.
Sintonizado desde jovem com o jazz e a
música popular por seu tio Lúcio Rangel, firmou-se primeiro no jornalismo como
crítico musical e até aventurou-se a responder sobre samba no quiz show de TV O
Céu É o Limite. Um inexplicável “branco” eliminou-o na reta final. “Quem
compôs Flor do Abacate?” Não houve jeito de Sérgio se lembrar de Jacob do
Bandolim, além do mais, seu amigo.
Seu Febeapá (Festival de Besteira Que
Assola o País), que celebrizou no jornal Última Hora, a partir do golpe de
1964, foi o mais rico, divertido e desmoralizante painel diário das insanidades
cometidas nos primeiros quatro anos da ditadura militar, a que ele só se
referia, debochadamente, como “a Redentora”. Que banquete não estaria fazendo
hoje, com os cocorocas do bolsonarismo.
Sérgio morreu na mesma noite (29 de
setembro de 1968) em que Sabiá venceu o Festival Internacional da Canção e Tom
e Chico Buarque saíram vaiados por uma plateia que majoritariamente torcia pelo
engajamento prosaico de Caminhando, de Geraldo Vandré.
Há uma fascinante simetria nessa coincidência, misturando exílio, Gonçalves Dias, uma percepção rombuda da música de protesto e a morte precoce (aos 45 anos) do nosso mais estimado gozador.
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