O Globo
Você foi uma inspiração para todas nós,
mulheres
O texto de hoje não será meu. Mas de Isabel
Salgado. Não a Isabel do vôlei. E sim a carioca passional que se jogou sem medo
em todos os lances da vida. Ela adorava escrever, foi minha colunista uns anos
e sua avó foi jornalista. Isabel era uma inspiração para nós, mulheres. Ela se
posicionava. Por liberdade, igualdade e justiça. Contra o racismo e o machismo.
Aos 27 anos, já era mãe de quatro filhos, de três homens diferentes. Teve cinco
netos, todos meninos. Seu idioma favorito era o francês.
A única coisa que ela me pediu, na entrevista em 2020 para a revista Ela, foi. “Ruth, ao me apresentar não diga que adotei ‘um adolescente negro’ . Diga apenas que adotei um adolescente, o Alison”. Esse cuidado diz muito da Isabel de fora das quadras. Ela tentava não parecer o máximo, mas era. Quando a entrevista saiu, Isabel me mandou vários áudios, que escutei ontem aos prantos, naquela voz potente. “Ruth, você é foda. Encheu minha bola. Valeu. Você é generosa, qualidade rara nos dias de hoje. Minha amiga, foi muito bom dividir um pouco da minha vida com você. Como se batêssemos um papo, diante da praia”.
Como não se apaixonar por você, mulher? Não
é justo, Isabel, que você tenha nos deixado tão cedo, que tenha deixado o
Brasil no momento em que nos tornamos humanos novamente. Porque você era assim:
queria sempre contribuir, muito além do esporte. A morte traiçoeira furou seu
bloqueio. Aqui vai uma homenagem póstuma para uma eterna campeã. Uma força da
natureza. As palavras são todas suas, Isabel, editadas a partir de nossa
conversa.
“Não me sinto militante de nada. Sou uma
pessoa que aprendi na minha casa, graças a Deus, a olhar para a dor do outro.
Não dá pra achar graça na vida quando o Pantanal e a Amazônia estão queimando,
e quando há tanta violência nas comunidades. Olha só o basquete americano, a
NBA. Eles se negaram a jogar. Trouxeram à tona o racismo e a violência policial
contra negros nos EUA. Não estou pleiteando que o esporte seja de esquerda ou
de direita. Mas não respeito quem defende a tortura. Não é uma questão
partidária, mas humana”.
“Odeio covardia desde pequena. Tem um filme
sueco ('Força maior', do diretor Ruben Östlund) em que o sujeito está na
varanda numa estação de esqui com a família clássica, escandinava, tomando café
da manhã e de repente vem uma avalanche de neve que vai matar todo mundo ali. E
o pai pega o celular e deixa os filhos para trás. E a mulher agarra os filhos
para protegê-los. Resumo da ópera: a neve interrompe exatamente antes de
atingir a varanda. E o pai precisa se confrontar com o olhar dos filhos por
tê-los abandonado. Mas ele pegou o celular. No dia seguinte, é aquele
constrangimento. Estou contando isso pra gente pensar. Tem coisas que nos
envergonham”.
“Uma pessoa está apanhando, você precisa
reagir. Mas a gente vive um tempo em que as pessoas se juntam para dar porrada
em alguém e acham bacana. As pessoas nas redes se escondem para falar
barbaridades. Certos comportamentos aviltam a natureza humana. O homem foi
capaz de coisas horrorosas, como a escravidão. E agora, tanta omissão diante
dos refugiados na Europa”.
“Sou filha de professora. Ela valorizava o
ensino. Para seu desgosto, caí fora. Fiz muito mal feito um período de História
na faculdade. Lamento não ter estudado um instrumento musical. Lamento não ter
aproveitado o francês que minha mãe ensinava. Não ter lido os livros que minha
mãe insistia para eu ler. Mas aí eu estava na praia. Eu me arrependo de não ter
namorado mais na juventude. Mas não carrego isso como um fardo, eu olho para a
frente”.
“Éramos uma família estimulada a argumentar
e dialogar. Meu pai era o único homem. Na casa eram minha avó, minha mãe e
quatro filhas. Desde cedo a gente ia no quarto de minha avó, a gente falava,
perguntava, dava pitaco. Minha avó nasceu em 1902, e já era jornalista aos 17
anos com pseudônimo, Leda Rios. Aos 20 já tinha peça de teatro encenada em
Portugal. E eu ouvia falar de dramaturgos, atores e poetas como Procópio
Ferreira, Manuel Bandeira. Só vim a saber mais tarde quem eram. Nunca fui
intelectual.”
“Nunca me assustei com a idade. Quando eu
fiz 30 ou 40, achava que aquela idade combinava comigo. Quando eu fiz 50, tive
a sensação básica de ter entrado no segundo tempo. Não queria jogar mais nada
pra baixo do tapete e fui fazer análise. Para não malocar nada de mim mesma.
Aos 60 anos, as perdas não são só estéticas. Eu estava lendo na cama a
autobiografia da Susan Sontag e o livro é tão pesado que arrumei problema no
pulso (risos). Tendinite. Finitude e vulnerabilidade são da vida, ok. Mas
escutar todo dia que você passou a fazer parte de um grupo de risco é dose”.
“Tristeza não é um sentimento meu. Prefiro
uma taça de vinho para relaxar. Nunca um antidepressivo. Lembro que viajava com
uma caixa de Rivotril na bolsa caso acontecesse algo com o avião e eu ficasse
presa dentro. O remédio acabou perdendo a validade sem eu tomar nenhum”.
“Eu gostaria de viver até o dia em que eu
puder continuar andando para dar um mergulho. Aí alguém vai dizer, mas que
bobagem. Não é. Eu sinto falta. Amo o Rio, mesmo com suas mazelas. Posso morar
fora e sempre volto. A geografia, a maresia, as montanhas. Entrar no mar.
Aquele lance que o Ferreira Gullar falou quando estava morrendo, eu entendi
tanto. Ele disse para a filha algo assim ‘me leva para dar um mergulho no mar
de Ipanema em frente às (Ilhas) Cagarras’...”
“Tenho um lado de avó clássica, adoro
quando o João passa aqui e grita: vó, vou dormir aí hoje. Muito bom ter esses
caras do meu lado, João, José, Francisco, Salvador, Joaquim, todos meninos e
tão divertidos. Um viaja e volta contando histórias. O outro discute o Trump. E
aí lembro como minha avó foi importante para minha formação. Gostaria de viver
para ver crescer meus netos.”
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