Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
A frente ampla é a única forma de salvar a nação da doença que cresce no país, e ela será feita de grandes decisões e de pequenos atos
A construção de nações foi uma das tarefas
mais complexas da história da humanidade. O primeiro passo é estabelecer os
limites territoriais dos países, algo ainda inacabado em parte do mundo, tendo
muitas vezes a guerra como solução. Mas o aspecto mais complicado está na
produção da identidade nacional. Constituir um povo que conviva com suas
diferenças não é nada trivial. Mesmo sendo escandalosamente desigual, o Brasil
conseguiu edificar uma sociedade razoavelmente tolerante, com espaços de
convívio e respeito mútuo. Só que o ódio entre brasileiros tem sido alimentado
cotidianamente. Isso pode afetar o destino de curto e longo prazo da nação.
O ódio social nunca foi uma bússola para
construir civilizações. Nos casos mais extremos, produziu-se a barbárie. Assim
foi na Alemanha nazista, com a perseguição de vários grupos sociais,
especialmente os judeus, com 6 milhões de mortos. O Brasil atual está longe
disso, mas o crescimento do neonazismo nas redes sociais e manifestações
declaradamente nazistas em universidades e até em escolas particulares de
educação básica revelam que há sementes totalitárias sendo plantadas em nossa
nação.
Mas o ódio pode ter uma forma mais branda e duradoura, com divisões sociais marcadas pelo rechaço completo entre as forças políticas, transformando a atividade da política em um jogo de mágoas perpétuas. A Argentina tem trilhado essa história desde a Segunda Guerra Mundial, com períodos autoritários muito violentos e com momentos democráticos em que o diálogo tem pouco espaço entre os diferentes. O fato é que o desenvolvimento econômico e social argentino foi barrado por um grau de polarização que dificulta qualquer decisão que resulte da negociação e do respeito mútuo. Esse é o efeito Orloff que o Brasil mais deveria temer.
Nos últimos 15 anos, um novo ciclo
internacional de ódio político foi constituído. Ele é a combinação do avanço de
redes sociais propositadamente polarizadoras com o discurso da nova extrema
direita, caracterizada pela defesa de valores tradicionais, pelo nacionalismo
excludente (nem todos os integrantes da nação são legítimos) e pela crítica às
instituições impulsionadas a partir do Iluminismo ocidental. Por meio desses
dois elementos, construiu-se um movimento baseado na busca da destruição dos
inimigos, como a mídia tradicional, os liberais globalistas, a esquerda em seus
vários matizes, a ciência e os intelectuais, além de grupos sociais
politicamente minoritários (mulheres, negros, LGBTQIA+ etc.), para citar os
principais alvos, realizando uma hiperpolitização de todos os espaços da vida
humana.
A hiperpolitização significa que nenhum
espaço da vida humana pode estar alheio às ideias políticas que norteiam o
grupo que se pretende dominante, ou melhor, que pretende eliminar todos os que
não concordam com ele. É uma noção similar ao conceito de ideologia usado por
Hannah Arendt para descrever os totalitarismos do século XX. Os filmes de
Goebbels muitas vezes falavam da vida cotidiana, da higiene que a raça ariana
deveria cultivar para se tornar superior. Hoje, a hiperpolitização não define
apenas o que se deve fazer na seara política, mas como se comportar na esfera
privada.
A política é a atividade mais nobre entre
os seres humanos, como já pensavam os clássicos como Aristóteles e Maquiavel,
porém, quando tudo vira política, há grandes chances de se criar uma sociedade
incapaz de conversar na padaria, de tomar o mesmo ônibus, de se sentar numa
mesma sala de aula, de entender que o direito de um termina quando afeta a
liberdade do outro - evitar que uma pessoa doente atravesse uma estrada é matar
o sentido de uma nação. Será que a Copa do Mundo nos trará a ideia de
brasileiros, iguais na sua diferença, de volta?
É muito assustador quando uma sociedade
começa a funcionar segundo uma divisão baseada no ódio ao outro, a quem pensa
diferentemente ou tem uma origem social distinta. O clima social geral e em
todas as organizações fica extremamente pesado. Haverá mais conflitos
desnecessários, em algumas situações se chegará à violência, com a
possibilidade da morte de um irmão ou irmã não de sangue, mas de identidade
nacional. As escolas se tornarão menos suscetíveis ao aprendizado como
resultado do diálogo e do compartilhamento de experiências diferentes. As
empresas também sofrerão com esse processo de disseminação do ódio,
provavelmente reduzindo sua produtividade, porque o sucesso organizacional
depende bastante da combinação de talentos e visões de mundo diferentes.
Para exemplificar a que ponto se chegou o
ódio alimentado pelo bolsonarismo, basta lembrar que o Brasil precisa do
Nordeste para a construção de seu imaginário cultural e de seu sucesso
econômico - experimente segregar os estados, e barreiras econômicas nascerão a
seguir, perdendo-se mercado consumidor e capital humano. Os meninos da escola
privada que trataram seus colegas de forma preconceituosa terão enormes
dificuldades de conseguir empregos no futuro, pois as empresas estão demandando
diversidade, e quem for contra isso terá menos espaço na economia do século
XXI. Voltando à Copa do Mundo, tema que vai ser dominante nas próximas semanas,
seria impossível ganhar qualquer um dos cinco títulos que temos se o atual
modelo de ódio definisse as convocações.
Aqui vale diferenciar o conceito de pátria
do sentido da palavra nação. Ficou na moda em certos círculos sociais se
definir como patriota. Gostar da bandeira e do hino nacional unifica as pessoas
de um país. Só que a palavra pátria tem a ver mais com o lado oficial do Estado
nacional, e relaciona-se menos com o que profundamente liga as pessoas em uma
determinada sociedade. A pátria pode ser evocada por ditadores, por gente que
mata seus semelhantes em nome de objetivos políticos - muitos dos
autoproclamados patriotas que estão nas ruas querem destruir seus inimigos,
mesmo que sejam seus vizinhos que um dia os levaram ao hospital ou cuidaram de
seus filhos quando estavam fora de casa.
A nacionalidade, ao contrário, vai além da
estrutura institucional do poder. Ela está lá também, entretanto, sua principal
característica é ser um sentimento profundo e de longo prazo de pertencimento a
uma coletividade. A nação unifica sem que se produza a homogeneidade social. Em
vez disso, deve garantir a unidade na diversidade, alimentando consensos e
gerindo dissensos. O pertencimento a uma nação é a possibilidade de discordar e
conviver, como quem torce para times diferentes, discute quem é a melhor
equipe, xinga o juiz do jogo, mas ao final aceita as regras e acredita que o
futebol só tem graça porque há adversários. O que seria do Corinthians sem o
Palmeiras, e vice-versa?
O ódio político está minando os vínculos
básicos da nação brasileira. Em termos coletivos e intertemporais, ninguém
ganha com isso, a não ser grupos organizados para conquistar o poder por meio
da violência política e social. O problema é que esse tipo de extremismo
convenceu uma parcela relevante da sociedade brasileira que, inebriada pela
hiperpolitização que parece dar respostas a todas as angústias da vida social,
mobiliza-se cegamente para a destruição das bases mais amplas da coletividade,
colocando em risco o seu presente e, sobretudo, o futuro de seus filhos e
netos.
No curto prazo, é preciso construir espaços
públicos de diálogo entre os diferentes, mostrando como é possível conviver com
a divergência, negociar posições e até mudar de opinião. Claro que aqueles que
cometeram crimes contra a democracia, segundo define a lei, podem ser punidos.
Todavia, a maioria que está descontente com o resultado eleitoral e acredita
nas teorias conspiratórias que são alimentadas pela hiperpolitização pode ser
trazida de volta ao debate democrático com suas diferenças em relação ao
presidente eleito.
Para isso, é preciso que as principais
instituições sociais, como a mídia e a universidade, e o novo governo se guiem
pela maior abertura possível para conversar e incorporar demandas de diferentes
setores sociais. No caso da terceira gestão presidencial de Lula, ele terá que
se vigiar constantemente para evitar o hegemonismo que por muitas vezes acomete
o PT. A frente ampla é a única forma de salvar a nação da doença do ódio que
cresce no país, e ela será feita de grandes decisões e de pequenos atos, como o
relativo à discussão da presidência do BID, quando o petismo se esqueceu das
lições recentes e atuou como no passado hegemonista.
A solução estrutural para evitar o
crescimento do ódio político e social está na educação. É preciso fazer da
diversidade a peça central do ensino, da creche à universidade. Há quase 30
anos formo alunos com ideias diferentes, e sempre estimulei o convívio e o
aprendizado entre os divergentes. Já falhei na minha jornada pedagógica, como
num episódio recente em que fui desrespeitoso com quem pensava diferentemente
de mim. Talvez todos estejamos envoltos em muito ódio, quando precisamos de
paciência e de empatia. Por essa razão, dedico este artigo a Danielle Klintowitz,
falecida precocemente há algumas semanas. Ela foi minha orientanda e seu
doutorado mostrava que uma política pública bem-sucedida depende de negociação
e acordos entre os diferentes. E o que vale para ações governamentais, vale
para a convivência de todas as pessoas da nossa nação.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
2 comentários:
Texto muito interessante! Parabéns!
Um artigo brilhante.
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