Em outras palavras, o preço que se paga por
qualquer vantagem ou vitória na vida é necessariamente grande. É uma
interpretação moral, mas há outras à escolha.
Por longos anos, como se o tempo não mudasse, os Yanomami viviam como se estivessem sós no mundo. Outros povos indígenas que viviam ao seu redor, nos tempos coloniais, mal os viam e raramente se engajavam em disputas ou em trocas de bens com eles. Os Yanomami mal sabiam do mundo dos brancos, nenhum deles tinha ido a um simples vilarejo de mestiços. Tanto que os Yanomami têm só uma palavra para significar qualquer pessoa que não é Yanomami, seja índio, seja mestiço, seja branco, seja inimigo – nabë. Pode ser que num passado mais remoto, ao tempo da colonização ou antes, houvesse mais relacionamento, belicoso e pacífico, dos Yanomami com outros povos indígenas, mas já pelo século XX, quando começaram a ser conhecidos vagamente por viajantes, caucheiros e balateiros que, individualmente ou em pequenos grupos, penetravam seu território, já não havia mais entrelaçamento entre eles e outros povos indígenas. Praticamente todos, menos os Ye’kuana, que fala uma língua Karib, haviam desaparecido. A própria língua Yanomami, em suas três ou quatro variações dialetais, mudou tanto, se afastou tanto de outras línguas matrizes que, hoje em dia, os linguistas não sabem precisar a qual família linguística ela pertence. Seria sua língua talvez longinquamente do tronco Karib? Nada.
Iniciando os anos 1940, alguns poucos agentes
de governo esbarraram com aldeias Yanomami pelos contrafortes da Serra Parima
buscando as cabeceiras do Rio Orinoco, que flui ao norte e depois ao leste, ou
ao sul pelo Rio Uraricoera e outros que descem para o Rio Branco e o Rio Negro.
Aí notaram esse povo que era chamado de Waiká ou Xirianá. Notaram que a maioria
deles não possuía quase nada de ferro, uma panela velha, ou ao menos um pedaço
de facão ou de machado, mas muito os desejavam.
Depois da Segunda Grande Guerra, começaram a
vir os missionários americanos pelo lado da Venezuela; depois salesianos
italianos; mais tarde, agentes do governo. Aí os Yanomami começaram a usufruir
de objetos cortantes de ferro e aço, panelas, espingardas, ampliaram suas
roças, cresceram de população, intensificaram suas guerras internas e emergiram
novos pajés a inalar o pó yãkoana para receber os espíritos xapiri.
Tanto mais desejaram bens de consumo quanto
mais tentaram resistir às prédicas que falavam em Teosi e Jesusi, Santanás e o
fogaréu do Inferno. Depois, de meados dos anos 1960 em diante, vieram os
antropólogos e as ONGs. Poucos Yanomami viraram cristãos na Venezuela.
No Brasil, veio primeiro o Serviço de Proteção
aos Índios (SPI), ainda nos anos 1950; depois os militares, os missionários
protestantes das Missões das Novas Tribos, os missionários da Ordem da
Consolata e, só mais tarde, os antropólogos. Em 1972, os militares apareceram
em grande estilo comandando soldados e peões de obra, trazendo gigantescas
máquinas de derrubar árvores e remover terra, para construir a rodovia
Perimetral Norte, que formaria um arco partindo do Amapá, alcançando o alto da
curva em Roraima, então território federal, e chegando a Tabatinga, no alto Rio
Solimões.
Junto com seu oposto simétrico, a rodovia
Transamazônica, constituíam a grande ambição do regime militar de conquistar de
vez a Amazônia, integrá-la ao resto do Brasil, colonizá-la trazendo gente do
Nordeste e além, desenvolver todo seu potencial – antes que os gringos “dela
lançassem mão”. A Perimetral Norte fracassou redondamente e foi abandonada já
em 1975. Ao pequeno tempo que rasgou matas pelo sudoeste de Roraima, nordeste
do Amazonas, deixou o estrago de muitas mortes de índios Yanomami. Levantou
poeira de mortes e devastações augurando tempos ruins.
O Projeto RADAM, iniciado em 1969 e concluído
poucos anos depois, tratou de mapear as riquezas minerais do Amazonas por meio
de escaneamento aéreo, e chegou à conclusão de que havia muita riqueza mineral
(cassiterita, nióbio, ouro, entre outros; ouro de aluvião, a ser jorrado dos
leitos ou das barrancas dos rios), na região da Serra Parima e seus
contrafortes. Aí foram chegando os garimpeiros de muitas partes do Brasil, de
muitos garimpos já revolvidos e esgotados.
Aos poucos, os garimpeiros foram penetrando,
movimentando ouro e dinheiro na capital Boa Vista, em Manaus, em São Paulo. Os
Yanomami eram atraídos pelo rebuliço imenso, pelo que eles poderiam lhes dar,
pelo que poderiam ofertar.
Contraíram doenças e as mortes foram
acontecendo em muitas aldeias por perto dos garimpos e por longe.
A saída dos militares do poder, a
redemocratização do país, a renovação da Funai, o interesse internacional,
tanto pelos índios, quanto pelo meio ambiente, quanto pelas riquezas de madeira
e minérios, pelo poder geoestratégico, a ampliação de recursos para ONGs e
missões auguraram um tempo em que, talvez, se pudesse lutar contra o que estava
acontecendo. Os Yanomami passaram a ser notados na mídia nacional pelas
reportagens que mostravam a aventura tresloucada da rodovia Perimetral Norte, a
entrada de garimpeiros e a devastação humana por doenças novas e velhas. A malária
se alastrou em novas cepas cada vez mais resistentes, nascidas das infestações entre
renitentes e rudes garimpeiros. Eles mesmos, na maioria, originários da grande mestiçagem
nacional que começara desde 1500. Tanto reconhecem-se quanto recusam-se a
reconhecer-se. A empatia para onde a sobrevivência exige.
Havia esperanças, as ONGs cresceram, os missionários favoráveis obtiveram recursos de suas paróquias europeias, os antropólogos se alvoroçaram para pesquisar e ajudar, a Funai parecia pronta para virar herói. Mas eis que um dos seus presidentes, Romero Jucá que, mais tarde, iria virar governo nomeado para Roraima, depois senador por três longos mandatos, abriu as porteiras da Terra Indígena Yanomami para os garimpeiros, e cerca de 40.000 deles penetraram território adentro, ficando impossível retirá-los na democracia sarneysista. Eis que chega o novo presidente eleito, Fernando Collor de Mello e não somente retira todo mundo como demarca e homologa o território Yanomami do lado brasileiro, em 9 milhões e 600 mil hectares de uma cajadada só, sem divisões, inteiriço, tal como havia proposto a CCPY. Era ministro da Justiça o coronel, senador e ex-governador do Pará, homem do regime militar, Jarbas Passarinho, aquele mesmo que teria dito no fatídico 13 de dezembro de 1968: “Às favas com os escrúpulos”, para assinar o Ato Institucional nº 5.
O Brasil tem dessas coisas. A direita é quem
demarca uma terra gigantesca em nome da humanidade e da glória nacional. Ao
mesmo tempo, expulsa com toda a força 40.000 garimpeiros e os deixa sem
trabalho.
Estrago feito, estrago desfeito, é a sina do
Estado brasileiro, desde sempre. E a vida continua com extrema repetição, com
pequenos passos adiante e logo passadas para trás. Quem não há de cair neste
pântano de intempestividade, depois de relutância, incompetência e desilusão?
A realidade é que, ao longo desse tempo, os
Yanomami vão aos poucos perdendo o controle de suas vidas e de suas culturas.
Ficam avassalados por todas as agências que lhes fazem pressão, dos militares e
garimpeiros aos missionários, ongueiros, funcionários e sanitaristas do Estado;
em breve, quando as estradas melhorarem, os madeireiros e os novos fazendeiros
do agronegócio estarão espiando de perto as riquezas de suas terras.
Um Yanomami pode determinar onde quer viver,
em que beira de rio ou lado, em que parte da floresta baixa ou alta, quão longe
ou perto de alguma agência do Estado, missão ou batalhão militar. Porém, seu
desejo está condicionado pela realidade da vontade do consumo e pela
curiosidade avassaladora pelo mundo envolvente. Dele parecem inclinados a
depender. Resistir é preciso, mas difícil.
O drama e a tragédia dos Yanomami diante dessa avalanche de destruição estão magistralmente registrados no livro A Queda do Céu: palavras de um xamã yanomami, escrito por Bruce Albert, a partir de muitas horas de diálogo com o Yanomami Davi Kopenawa, nascido num xabono no alto Rio Toototobi, que aprendeu a falar e escrever português, que quase morreu de sarampo e depois de tuberculose, que trabalhou no posto da Funai, depois virou seu chefe, e manteve-se fielmente à sua cultura ao ponto de um dia abandonar e tornar-se ele mesmo um xamã, um pajé, para resistir à pressão cultural do mundo envolvente e preservar o que puder da cultura de seu povo.
Davi Kopenawa tornou-se uma figura de grande
importância para os índios Yanomami, para o movimento indígena brasileiro, para
o indigenismo brasileiro e para o Brasil – queiram ou não adversários e
indiferentes. Entretanto, Kopenawa não tem poder sobre os demais Yanomami, que
vivem autonomamente em suas aldeias, mantêm seus chefes e líderes, preservam a
vida em toda sua intensidade cultural e adversidades sociais e políticas. A
reflexão que ele faz nesse livro precisa ser conhecida para que se entenda
melhor o que o governo brasileiro poderia fazer para amenizar as desgraças de que
sofrem os Yanomami. É um começo, mas o caminho é longo e se alarga com o tempo.
*Mércio Pereira Gomes. Antropólogo, professor da UFRJ, ex-presidente da Fundação Nacional do Indio (Funai – 2003-2007), autor de vários livros, em que se destacam Democracia em Convulsão (2020), O Brasil Inevitável: Ética, mestiçagem e borogodó (2019), Para Conhecer e Amar os Indios (2014), Os Indios e o Brasil (1988 e 2012) e Darcy Ribeiro (2000).
2 comentários:
Grato pela Magnífica Aula Magistral, Professor!
Faltou dizer
Quando Collor demarcou e homologou o território indígena ianomâmi, seu Secretário Nacional do Meio Ambiente, que muito se empenhou por tal demarcação e por outras no mandato de Collor, era José Antonio Lutzenberger. Este ecologista gaúcho e seu trabalho reconhecido internacionalmente foi muito mais decisivo para a demarcação que Jarbas Passarinho.
Parabéns ao autor e ao blog por nos trazer trabalho tão rico e informativo!
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