Argentina sob Milei trará risco para o Brasil
O Globo
Força brasileira no mundo depende da
estabilidade regional, ameaçada pelo favorito a chegar à Casa Rosada
Uma Argentina em apuros será sempre sinônimo de problema para o Brasil. Os vizinhos são nosso terceiro maior parceiro comercial e principal sócio no Mercosul. Os dois países dividem 1.260 quilômetros de fronteira. Dezenas de milhares de brasileiros vivem lá, dezenas de milhares de argentinos aqui. Laços históricos nos unem. Na geopolítica, a força do Brasil depende da estabilidade da região que lidera. Por isso a eleição presidencial de hoje é a mais preocupante em décadas. O favorito é Javier Milei, do partido A Liberdade Avança, um populista que se define como libertário. Não está descartada a hipótese de que ganhe no primeiro turno.
A revolta do eleitorado é compreensível.
Quatro de dez argentinos vivem abaixo da linha da pobreza, a inflação deverá
fechar o ano acima de 200%, e a política cambial, com variedades de dólar para
todos os gostos, é motivo de piada. A inépcia dos governantes desde a
redemocratização — de todos os matizes do peronismo até o fracasso do projeto
liberal de Mauricio Macri — causou recessões em série e a sensação de que o
país precisa de mudança radical. Na cabeça de muitos argentinos, em particular
os eleitores de Milei, pior não pode ficar. É um engano. Se esse demagogo
irresponsável ganhar hoje ou no segundo turno em novembro, a Argentina, no
melhor cenário, desperdiçará quatro anos. No mais provável, acelerará o rumo da
degradação.
Milei segue à risca o figurino de Jair
Bolsonaro e Donald Trump. Em comum, vende a imagem de ser
contra o sistema político — para ele, “a casta” — e transmite a ilusão de ter
soluções simples para questões complexas. Suas ideias são uma caricatura do
liberalismo, e sua plataforma é cheia de contradições. Promete dolarizar uma
economia que sofre de baixa oferta de dólar (causa da desvalorização do peso).
Diz que cortará subsídios de energia, mas afirma que isso não afetará “os
bolsos dos argentinos”. Quer reduzir os ministérios de 18 para oito, mas manter
o emprego dos funcionários públicos.
A postura contraditória tem como meta agradar
a todos para chegar ao poder. Caso consiga, provavelmente continuará a espalhar
confusão para justificar seus erros. É pouco provável que Milei consiga eleger
uma maioria sólida no Congresso. Se tal quadro for confirmado, garantir a
governabilidade será um desafio. Vale lembrar que Milei jamais teve cargo no
Executivo. Sua experiência no Congresso se resume a dois anos como deputado.
Antes de depositar o voto na urna, os
argentinos deveriam lembrar o que aconteceu no Brasil entre 2019 e 2022.
Bolsonaro foi responsável pelo maior ataque ao Estado Democrático de Direito
desde a redemocratização. Instituições e seus representantes foram
esculachados. Mentiras repetidas incansavelmente erodiram a credibilidade do sistema
eleitoral. Fanáticos invadiram as sedes dos três Poderes numa tentativa de dar
um golpe de Estado.
Milei e Bolsonaro têm suas diferenças, e
Argentina e Brasil têm históricos distintos nas relações entre os poderes civil
e militar. Buenos Aires com
Milei na Casa Rosada não seria uma cópia de Brasília com Bolsonaro no Planalto.
No Brasil, a equipe econômica evitou desarranjos no governo passado. Ainda
assim, a lição brasileira mostra que um populista na Presidência não costuma
sair sem deixar um rastro de destruição. O caos da Argentina de hoje poderá ser
uma fração do provocado por um eventual presidente Milei.
Falta de gestão prejudica metas de desenvolvimento
da ONU para 2030
O Globo
Dificuldade de medir avanço faz despencar
crença no cumprimento dos objetivos entre as empresas
Em setembro de 2015, as Nações Unidas
lançaram a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, um plano ambicioso
com 17 metas voltadas a toda sorte de mazela humana. Na área social, o documento
prevê erradicar a pobreza e a fome, fornecer água, saneamento ou educação de
qualidade a todos. Na ambiental, defende o combate ao aquecimento global, a
proteção de ecossistemas e a conservação de oceanos. Na econômica, estabelece
como metas crescimento, construção de infraestrutura e fomento à inovação. O
prazo de tudo é 2030.
Os objetivos parecem utópicos, mas isso não
quer dizer que não deva haver esforços para alcançá-los. Embora o trabalho
principal caiba a governos, a iniciativa privada é imprescindível. Por isso
preocupam os resultados de uma pesquisa da ONU em parceria com a consultoria
Accenture. Menos da metade (49%) de mais de 2.800 líderes empresariais ouvidos
em 137 países, Brasil inclusive, acredita que o mundo alcançará as 17 metas até
o final desta década. Há apenas um ano, eram 92%. Pelo visto, está claro para a
maior parte que a agenda ficará no sonho.
A queda pronunciada é atribuída a fatores
cíclicos e estruturais. A piora da conjuntura — com alta da inflação e guerras
— parece ter desviado a atenção do setor privado para prioridades de curto
prazo. Ao mesmo tempo, persistem dificuldades históricas, como a ausência de
políticas públicas que incentivem mudanças nas empresas.O levantamento
evidencia o descasamento na avaliação dos líderes empresariais. Oito de cada
dez acreditam que a própria companhia contribui de forma positiva para os
objetivos, mas apenas 62% pensam o mesmo a respeito do setor em que atuam e 48%
sobre o setor privado como um todo. A diferença revela a estratégia de fazer
pouco e jogar a culpa no vizinho. Nas reuniões de apresentação de resultados
para acionistas em 2022, menções às metas aconteceram 175 vezes no grupo
pesquisado, ante 277 no ano anterior.
Em larga medida, a Agenda 2030 padece do
mesmo problema que as pautas ESG (sigla em inglês
para governança ambiental, social e corporativa). Por falta de métricas
confiáveis para medir o impacto de medidas, avanços e retrocessos, tudo fica
suscetível a tentativas de maquiagem da realidade. Há até um termo para
designar as declarações infundadas ou exageradas sobre os benefícios ambientais
de medidas promovidas por empresas: greenwashing.
Para o setor privado, objetivos como o
combate ao aquecimento global representam um desafio. Uma empresa pode adotar
uma estratégia ambientalmente responsável, mesmo que isso represente perda
financeira de curto prazo. Mas, se seus competidores não seguirem o mesmo
caminho, a mudança de rumo representará perda de competitividade ou um risco
para o negócio. Essa é uma das razões para governos criarem regras homogêneas
para relatórios de impacto ambiental e outros correlatos. As metas de
desenvolvimento da ONU estão sujeitas à deficiência mais trivial em gestão:
faltam critérios objetivos consensuais para medi-las, portanto para cobrá-las.
Dois Estados
Folha de S. Paulo
Estratégia deve mirar solução perene do
conflito entre israelenses e palestinos
"Um lar nacional para os judeus, no modo
como em geral é entendido, era incompatível com as exigências dos nacionalistas
árabes, enquanto as demandas do nacionalismo árabe, se admitidas, teriam
tornado impossível cumprir o pleito dos judeus."
Não poderia
ser mais atual a observação da chamada comissão Shaw, que em
março de 1930 relatou ao monarca do Reino Unido as conclusões de investigação
sobre uma revolta árabe na Palestina, em agosto do ano anterior.
Aquela porção de território, que se estendia
do mar Mediterrâneo à margem ocidental do rio Jordão e do Egito ao Líbano, era
um espólio do Império Otomano, esfacelado com a Primeira Guerra. Os britânicos
governavam a região sob um mandato provisório da Liga das Nações, antecessora
da ONU.
Desde o fim do século 19, o movimento
sionista promovia a migração de famílias judias para a Palestina mediante
aquisição de terras. A pressão populacional nutria o nacionalismo dos
residentes árabes.
Como resposta a uma grande revolta árabe, os
britânicos delinearam, no final da década de 1930, o primeiro plano de partição
da Palestina em dois Estados soberanos.
A proposta decorria da conclusão, de resto
óbvia, de que a melhor solução para estabilizar a região seria reconhecer o
direito de árabes e judeus de estabelecerem as suas respectivas nações sem, no
entanto, ceder às demandas maximalistas de cada lado.
Com base no mesmo diagnóstico, dez anos
depois a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a resolução que dividia a
Palestina em duas nações.
A porção sob controle judaico crescera em
relação ao plano britânico. O Holocausto de 6 milhões de judeus tornou ainda
mais premente a obrigação do conjunto das nações para com a comunidade judaica
e acelerou a migração de judeus para a região.
Os árabes da Palestina não aceitaram a
partilha e, associados a exércitos de Egito, Jordânia e Síria, foram à guerra
contra Israel tão logo a nação judaica declarou-se independente, em 1948.
Os israelenses rechaçaram a agressão, como
também ocorreu em 1967 e 1973. Como espólio, Israel ocupa e coloniza
territórios que não lhe pertencem pelo direito internacional, e centenas de
milhares de palestinos viram-se compelidos a migrar, o que ajudou a sobrepovoar
a Faixa de Gaza.
Uma nova janela promissora para a paz só se
abriria no início dos anos 1990. Os acordos de Oslo retomaram os princípios da
bipartição e proporcionaram aos árabes a fundação de sua primeira organização
governamental, a Autoridade Nacional Palestina.
Dissidências radicalizadas de parte a parte,
que se opõem à pacificação, puseram-se a dinamitar o processo. Não tiveram
dificuldade de alcançar seu objetivo num contexto em que o dogmatismo religioso
ganhava espaço na política.
Os massacres, estupros e sequestros promovidos
pelos terroristas do Hamas em 7 de outubro deste 2023 e a
retaliação assoberbante de Israel representam o ápice desse ciclo de
radicalização.
A via do terror não levará os palestinos a
desfecho além da destruição, da miséria e da falta de perspectivas de futuro.
Israel não vai sumir do mapa como pregam os celerados do islamismo suicida. Vai
continuar forte e vai reagir.
A marcha do governo israelense para a extrema
direita também mostra seu limite. O prodigioso aparato de segurança não manterá
protegida a população. Sem engajamento diplomático e político com o lado
palestino, viver em Israel será mais arriscado.
Neste momento de urgência, a comunidade
internacional deveria zelar para que os reféns não combatentes tomados pelo
Hamas sejam devolvidos e para que Israel respeite as leis de guerra, poupe os
civis e assegure o abastecimento de itens básicos em Gaza.
Mas as atenções estratégicas dos países
comprometidos com a paz, como defende
esta Folha, precisam estar voltadas para o restabelecimento
tempestivo de canais de negociação que possam concretizar a solução de dois
Estados.
O Brasil, que ora preside o Conselho de Segurança
da ONU, dispõe de um ativo intangível, mas valoroso, para exibir aos
contendores. Aqui as comunidades árabe e judaica convivem harmoniosamente e
cooperam desde sempre.
Essa característica não apenas recomenda à diplomacia brasileira que adote a equidistância no conflito. Exige que condene a violência e apele à retomada do diálogo rumo à conciliação perene entre palestinos e israelenses.
A nova desordem mundial
O Estado de S. Paulo
Novos conflitos sinalizam que a ordem do pós-guerra morreu, mas a nova ainda não nasceu: ante a escalada da competição entre potências, mundo precisa de um novo modelo de cooperação
O pesadelo em Israel deveria ser um momento
de clareza moral. Ele reacendeu debates sobre as ambivalências no Oriente
Médio, especialmente sobre as ações e omissões de israelenses e palestinos. Mas
as centenas de civis, sobretudo mulheres e crianças, executados, mutilados ou
estuprados são um alerta de que, além dos matizes geopolíticos e “choques de
civilizações”, há uma luta do bem contra o mal, da civilização contra a
barbárie. Ainda assim, dias após a carnificina, o Conselho de Segurança da ONU
– que deveria ser a polícia do mundo – foi incapaz de emitir uma manifestação –
muito menos uma resolução – que deveria ter saído em minutos.
Em 1945, após a catástrofe das guerras
mundiais, a clareza moral resplandeceu na forja das Nações Unidas “em uma
unidade indestrutível de determinação – para encontrar um fim a todas as
guerras”. Por quase 80 anos a ordem baseada em regras, supervisionada pela ONU,
ajudou a evitar uma terceira guerra.
O secretário-geral da ONU, António Guterres,
dividiu essa história em três períodos. Primeiro, o mundo “bipolar” da
rivalidade entre EUA e URSS. Depois, um breve período “unipolar”, com a
hegemonia americana. O Conselho de Segurança lançou missões de paz para proteger
populações contra atrocidades em massa e a globalização promoveu um período
inaudito de prosperidade. Mas no século 21 sucederam-se os sinais do fim da
ordem pós-guerra: o 11 de Setembro, a crise financeira, a anexação da Crimeia
pela Rússia. Os malogros dos EUA no Iraque e no Afeganistão precipitaram uma
retração isolacionista, enquanto uma Rússia revanchista e uma China
expansionista desafiavam sua supremacia. O retorno da guerra à Europa lançou a
pá de cal. Vivemos a terceira fase na periodização de Guterres: “O mundo ainda
não é multipolar, é essencialmente caótico”.
A ideia de uma “nova guerra fria” não dá
conta da interdependência econômica entre a China e o Ocidente. E mesmo no que
há de similar, a rivalidade entre uma superpotência democrática e uma
autocrática, os papéis se inverteram: a primeira se mostra errática na defesa
da ordem liberal da qual foi artífice e a segunda busca dobrar essa ordem às
suas conveniências despóticas.
Mas reduzir a nova ordem a uma “batalha entre
a autocracia e a democracia” é simplista. Ela depende de um equilíbrio entre os
vértices de um triângulo: o Ocidente global, o Oriente global e o Sul global. O
Ocidente – EUA, Europa e seus aliados – quer preservar a ordem liberal que o
Oriente – China, Rússia, Irã e seus aliados – quer desmantelar, revivendo o
modelo que põe o Estado e a soberania nacional em primeiro lugar, à custa das
liberdades individuais, direitos humanos e valores ditos universais, que
denuncia como sendo armas retóricas do Ocidente para perpetuar seu imperialismo
e a supremacia branca. O Sul global tenta se manter neutro, enquanto busca
influência e representação para criar condições ao seu desenvolvimento.
Entre essas incertezas, “temos um
multilateralismo sem dentes”, disse Guterres, “e quando tem dentes, como no
Conselho de Segurança, não tem apetite para morder”.
Por ora, o que se vê é a coalescência de
ordens “plurilaterais” ou “minilaterais” que buscam acomodar interesses,
valores e poder. Mas esta década, na qual a Rússia busca asseverar sua força na
Europa; o Irã, no Oriente Médio; e a China, na Ásia, provavelmente definirá a
fisionomia do século 21. “Como em 1919, com a malograda criação da Liga das
Nações, 1945 e o estabelecimento da ONU e 1989, quando muitos de nós
acreditamos que o resto do mundo iria finalmente aceitar os três pilares de uma
sociedade bem-sucedida (democracia liberal, economia de mercado e abertura à
globalização), podemos errar, acertar ou ficar em algum lugar no meio”, avaliou
o ex-premiê da Finlândia Alexander Stubb. “Devemos evitar os erros de 1919,
aprender com o equilíbrio de poder estabelecido em 1945 e tornar a ordem
liberal de 1989 universalmente atraente.” O sucesso ou fracasso nesse desafio
determinará se o “caos” de que fala Guterres é a dor do parto de um novo corpo
para a governança global ou o seu aborto.
Argentina leva sua crise às urnas
O Estado de S. Paulo
Seja qual for, o resultado das eleições não
superará com um passe de mágica a debacle econômica nem aliviará a raiva da
população sujeita à hiperinflação e dependente de benefícios sociais
A única certeza sobre as eleições
presidenciais na Argentina, hoje, é que não haverá solução mágica para o
colossal desmonte de sua economia nem um novo governo ileso a índices de
baixíssima popularidade. A definição do eleitorado, seja neste domingo ou no segundo
turno, em 19 de novembro, não alterará de imediato a exaustão dos argentinos
com os sucessivos fracassos na condução do país pelo peronismo e pela
centro-direita nos últimos 40 anos. A raiva expressa em votos de protesto nas
primárias de agosto, sob os gritos de bordões destemperados, prenuncia mais
desalento e aprofunda as incertezas que nem os cambistas conseguiam disfarçar
na véspera do pleito.
A questão de fundo não se limita a quem será
o escolhido pelo eleitorado, cuja decisão soberana há de ser devidamente
respeitada. Envolve, sobretudo, a análise de como a Argentina chegou a ponto de
ter como favoritos à Casa Rosada um peronista, Sergio Massa, que, com toda a
pesada máquina assistencial do governo, se via dias antes do primeiro turno
ameaçado por Javier Milei, um aventureiro que soube colher a insatisfação
popular, sobretudo de jovens que jamais vivenciaram um período sem crise, para
alavancar uma plataforma econômica tresloucada. A avaliação deve ir além e
sopesar também a razão pela qual a centro-direita desvaneceu, sem encontrar
meios para se apresentar como uma terceira via razoável ao eleitor.
Esses temas certamente terão sido remexidos
em intermináveis conversas nos cafés de Buenos Aires e nos boliches das
periferias. Há razões para crer que nenhum desses debates tenha sido concluído
sem perspectivas sombrias. Da mesma forma avaliam empresários, analistas
econômicos argentinos e estrangeiros e governos vizinhos, particularmente
aturdidos com o potencial agravamento da crise quando as primeiras medidas
forem anunciadas por quem se sentar no “sillón de Rivadávia” em 10 de dezembro.
A crise da Argentina figura entre as mais
desafiadoras do mundo. Já era assim quando o Nobel de Economia Simon Kuznets
alcunhou uma célebre frase nos anos 1970: “Há quatro tipos de países: os
desenvolvidos, os subdesenvolvidos, o Japão e a Argentina”. Políticas
equivocadas dizimaram o parque industrial, sem reconstruí-lo em outras bases, e
elevaram o desemprego e o desalento. A equiparação do peso ao dólar nos anos 1990,
uma alucinação adotada por lei, deixou como legado um rastro de destruição que
ameaçou a própria ordem institucional. Medidas extemporâneas anunciadas por
governos peronistas e radicais (centro-direita) circundaram o cerne da debacle,
sem enfrentá-lo: a inflação e, consequentemente, o adequado ajuste nas contas
públicas e a gestão eficaz das políticas monetária e cambial.
Não causa surpresa a astronômica insatisfação
dos que arcam no cotidiano com uma inflação de mais de 100% ao ano e mais de 16
taxas de câmbio, sem esperança de melhoria de suas condições de renda nem
perspectivas para o futuro. Muito menos dos que estão mergulhados entre os 40%
mais pobres, dos excluídos do mercado formal de trabalho aos que dependem de
subsídios do governo para comprar alimentos. O contexto econômico-social
argentino muito explica a ascensão de uma liderança doidivanas contrária ao
sistema e à classe política tradicional, como a história vem registrando há
mais de um século. A surpresa surge quando os eleitores se deixam entorpecer
por propostas falidas de antemão e chegam a aceitar, talvez sem se darem conta,
o fim dos benefícios sociais que fazem diferença nos seus bolsos.
As eleições argentinas preocupam o governo
brasileiro, como reconheceu o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. É natural,
dado o grau de interconexão das economias e os compromissos de ambos os países
em diferentes esferas, inclusive a do respeito ao Estado Democrático de
Direito, sob os guarda-chuvas do Mercosul e de acordos bilaterais. Qualquer que
seja a escolha dos eleitores, será de interesse do Brasil manter o diálogo
fluido com as autoridades de Buenos Aires e contribuir para que a crise na
porta vizinha não se aprofunde ainda mais. Por mais lamentável que possa ser, a
resposta das urnas é soberana.
Prêmio a quem desrespeita a lei
O Estado de S. Paulo
Anistia para quem não pagou multa por violar
normas sanitárias na pandemia pune quem seguiu a lei
Numa próxima situação de emergência que
imponha ao governo de São Paulo a necessidade de editar normas de comportamento
para toda a população em prol do interesse coletivo – e novas crises virão,
cedo ou tarde –, muitos paulistas sentir-se-ão desestimulados a cumpri-las,
pois aqueles que o fizeram durante a pandemia de covid-19 acabam de ser
tratados como otários pelo Palácio dos Bandeirantes e pela Assembleia
Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp).
Na quarta-feira passada, a Alesp aprovou o
Projeto de Lei (PL) 1.245/2023, que, entre outras providências, concede anistia
total das multas aplicadas aos cidadãos que violaram a legislação sanitária
durante a pandemia. Ao chancelar a iniciativa do governador Tarcísio de Freitas
de cancelar todas as multas, a Casa se posicionou frontalmente contra o
interesse público. Uma lástima.
Pouco importam as motivações pessoais do
governador ao propor essa anistia absurda e a dinâmica das relações entre o
Executivo e o Legislativo em São Paulo. O fato é que ambos os Poderes passaram
uma péssima mensagem para a sociedade ao premiarem o individualismo
irresponsável. A mais nefasta dessas mensagens é que, a partir de agora, resta
claro que comportamentos lesivos ao interesse coletivo não são repreensíveis
pela administração pública em momentos de crise – ou, se são, decerto poderão
ser relevados adiante.
Em defesa da anistia, o governo estadual
argumentou que a aplicação das multas “não contribuiu para o desenvolvimento
social e econômico do Estado”. Ora, não há multa no mundo que se preste a isso.
Esse tipo de multa é uma sanção administrativa de caráter dissuasório, que,
portanto, não visa à arrecadação. Basta dizer que se está falando de um
montante de R$ 73 milhões em multas aplicadas, praticamente nada diante do
orçamento de São Paulo.
Malgrado o PL 1.245 ter sido aprovado pela
Alesp e, muito provavelmente, venha a ser sancionado pelo governador Tarcísio
de Freitas, talvez seja cedo para os anistiados comemorarem. A questão decerto
irá parar no Judiciário. Em primeiro lugar, porque a anistia foi concedida por
meio de um “jabuti” convenientemente inserido num projeto de lei que versava
sobre outra matéria. Em segundo lugar, e principalmente, porque se trata de um
dispositivo inconstitucional.
A anistia, como dissemos neste espaço à época
do envio do PL 1.245 à Alesp, “fere de morte o princípio da igualdade de todos
perante a lei, viga mestra da República, ao dividir os cidadãos em duas
classes: os anistiados e o resto, sobre os quais recai todo o peso do Estado
sancionador” (ver Anistia absurda em São Paulo, de 18/8/2023).
Em meio a tanta confusão sobre os papéis e responsabilidades de cada um dos Poderes nestes tempos esquisitos por que passa o País, eis uma oportunidade de ouro para o Judiciário corrigir, sem receio de extrapolar seus limites constitucionais, um erro crasso cometido simultaneamente pelo Executivo e pelo Legislativo. É em situações como essa que o sistema de freios e contrapesos deve mostrar seu valor para a democracia.
A democracia na Argentina
Correio Braziliense
A Argentina tem enfrentado crises severas em
mais de duas décadas e as consequências dos desastres econômicos e políticos
têm pesado muito nesta eleição
Mais de 40 milhões de argentinos vão às urnas
neste domingo, em meio a uma das mais graves crises econômicas enfrentadas pelo
país. A inflação nos 12 meses terminados em setembro atingiu 138,3% e 40% da
população estão na pobreza. Diante da possibilidade de o candidato de
ultradireita Javier Milei vencer as eleições presidenciais, a atividade
produtiva praticamente parou, pois, com a onda de incertezas, os agentes
econômicos ficaram sem parâmetro para a formação dos preços de seus produtos.
Nas últimas duas semanas, o dólar no mercado paralelo saltou de menos de 700
pesos para mais de 1.000 pesos, numa corrida da população por proteção. Além de
Milei, estão bem posicionados nas pesquisas o peronista e atual ministro da
Fazenda, Sérgio Massa, e Patrícia Bullrich, de direita, representante do Juntos
pela Mudança.
A Argentina tem enfrentado crises severas em
mais de duas décadas e as consequências dos desastres econômicos e políticos
têm pesado muito nesta eleição. Em vez do bom senso, tem prevalecido a raiva e
a revolta. Não serão esses sentimentos, porém, que resolverão todos os
problemas que afligem os cidadãos. Optar pelo radicalismo, seja de que lado
for, pode agravar o quadro já muito preocupante. O candidato de extrema-direita
à Presidência da República, que se autointitula um anarcocapitalista, defende a
dolarização da economia, o fechamento do Banco Central, a saída dos argentinos
do Mercosul e o rompimento dos laços com a China.
Para que a dolarização da economia da
Argentina fosse viável, seriam necessários, ao menos, US$ 60 bilhões, o que
está longe de acontecer. O fechamento do BC e o desligamento do Mercosul
dependem de apoio no Congresso. Tais limitações reforçam que o discurso radical
que tem encantado, sobretudo, os jovens argentinos não passa de arroubos
inconsistentes, que, se levados adiante, num movimento autoritário, só
empurrariam o país para o precipício. É verdade que a desesperança, quando se
olha o futuro e não se vê perspectivas, tende a falar alto. Mas os argentinos,
em sua maioria, sabem da importância de se reconstruir a nação em bases
sólidas, não por meio de promessas vazias e inconsequentes.
O Brasil tem enorme interesse que a Argentina
escolha o caminho sem rupturas. Os dois países têm relações de mais de 200
anos, com momentos de rivalidade e de união. Foram adversários em guerras como
a da Prata, aliados na Tríplice Aliança (Guerra do Paraguai), medem o tamanho
da influência na América do Sul e são sócios no Mercosul. Do ponto de vista
comercial, a Argentina é o terceiro mercado para os produtos brasileiros e o
Brasil, o primeiro para as exportações argentinas. As transações entre as duas
nações envolvem produtos industrializados, com média e alta tecnologia. A
complementariedade das suas indústrias é enorme.
Mesmo com toda a crise enfrentada pela
Argentina, a corrente de comércio com o Brasil somou US$ 13,6 bilhões no
acumulado de janeiro a setembro deste ano. O saldo comercial, em favor dos
brasileiros, atingiu US$ 4,5 bilhões, o dobro do observado em todo o ano de
2022 (US$ 2,2 bilhões). O comércio bilateral vem se recuperando depois de
acumular queda de 60% entre 2011 e 2020, por causa dos problemas econômicos do
país vizinho e da diminuição da ênfase do Brasil na integração regional. Não há
como se falar em neoindustrialização sem que os dois países caminhem juntos e
avancem no fortalecimento da América do Sul.
Portanto, que os argentinos façam uma boa escolha, que seja um espelho para a consolidação da democracia latino-americana. A região, em vários momentos, se rendeu ao autoritarismo e a experiências esdrúxulas de governo. O mundo vive um contexto muito complexo, em que o descompromisso com a liberdade de escolha e o desrespeito aos direitos humanos e aos avanços sociais e institucionais estão sendo normalizados. A Argentina deve dizer não aos retrocessos.
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