Em vez de gastar mais, Estado precisa saber
gastar melhor
O Globo
Orçamento é aprovado com a preocupação de
elevar a despesa, e não a eficiência da máquina pública
Mesmo sustentado por uma carga tributária
muito além da razoável para um país emergente, o Estado brasileiro é conhecido
por prestar serviços públicos de baixa qualidade. Gasta muito e gasta mal. Para
o ano que vem, o Orçamento prevê uma despesa primária da União — sem considerar
o pagamento de juros da dívida pública — de R$ 2,1 trilhões. Ainda assim, a
meta de déficit zero orçada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não é
considerada viável dentro do próprio governo. Para não falar nos gastos de estados
e municípios.
Chama a atenção que, mesmo com tanto
dinheiro, o Estado não preste serviço de qualidade à população. A série de
reportagens “Estado
eficiente”, publicada pelo GLOBO, expôs alguns aspectos que
tornam o Estado disfuncional. Ele gera burocracia quando deveria facilitar a
vida de cidadãos e empresas. Atua de forma débil na ajuda à Federação em áreas
essenciais como saúde, segurança e educação. Ao tentar fazer de tudo — há até
estatais para hemoderivados e semicondutores —, paradoxalmente deixa o
brasileiro desamparado naquilo de que mais precisa. E, sem avaliação
consistente das políticas públicas, cria um sem-número de ralos por onde o
dinheiro público escorre sem controle.
Tome-se o exemplo dos investimentos em obras públicas. De 21 mil contratos com alguma participação de recursos federais, 40% estão parados. Há uma escalada nas paralisações. A proporção de canteiros abandonados cresceu de 29% em 2020 para 38,5% em 2023. Obras sem continuidade representam um investimento de R$ 32,2 bilhões, R$ 8,2 bilhões dos quais já pagos. O resto são recursos públicos congelados, que deixam de gerar empregos, renda e melhoria nos serviços. Puro desperdício.
As causas das paralisações são várias, a
maioria ligada à falta de coordenação entre União, estados e municípios. Nas
obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a União arca com 80% do
investimento e o resto fica com estados e municípios. Quando o governador ou o
prefeito não têm recursos, a obra para. Muitas vezes, o empreiteiro oferece o
preço mais baixo para vencer o leilão, mas não consegue fazer a obra por aquele
valor. A esperança é conseguir aditivos mais à frente. Na falta deles, a obra também
para. Alterações simples na contratação gerariam resultados positivos
rapidamente, segundo o vice-presidente de Infraestrutura da Câmara Brasileira
da Indústria da Construção, Carlos Eduardo de Lima Jorge. Outra mudança sensata
é obrigar que os licenciamentos sejam obtidos antes das licitações.
Um caso típico aconteceu nos investimentos em
saneamento a partir de 2006, estimulados pelos PACs anteriores das gestões
petistas. Nove anos depois, os indicadores de cobertura da rede de saneamento
básico continuavam idênticos, diz Rafael Martins de Souza, do Centro de Estudos
em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas. O dinheiro fora
gasto, mas quilômetros de tubulações não se conectavam com estações de
tratamento, nem às casas.
Outra distorção é a importância crescente das
emendas parlamentares no financiamento das obras. É legítimo que representantes
do povo busquem destinar recursos públicos a suas regiões. Mas no Brasil a
prática ultrapassou qualquer medida razoável. O valor das emendas foi
multiplicado por dez desde 2015 e está, no Orçamento de 2024, em R$ 53 bilhões.
Elas equivalem a algo como um quarto dos gastos discricionários do Executivo e
a quase todo o PAC.
O maior problema das emendas é destinar
recursos segundo interesses políticos, não necessidades urgentes ou critérios
técnicos. Todos os municípios demandam investimentos. Mas, ao tirar do
Executivo a prerrogativa de decidir onde são mais prementes, as emendas tornam
a ação do Estado mais injusta e mais cara. O país ganha mais com políticas
públicas elaboradas por equipes técnicas dos ministérios. Distribuir dinheiro a
esmo aumenta gastos sem resultados.
Também falta fiscalização. O Tribunal de
Contas da União (TCU) teria de exercê-la de forma sistemática e não pontual,
sugere a cientista política e pesquisadora Beatriz Rey. Ela conta que, quando
assessorava um deputado em Washington, ele queria incluir no orçamento uma
emenda para reformar um hospital em sua base eleitoral. Antes de remeter o
pedido à comissão de orçamento, era preciso saber se o gasto se encaixava em
algum programa federal. Há, nos Estados Unidos, uma ligação entre emendas e
políticas públicas. No Brasil, não existe nada semelhante.
O Estado também precisa com urgência de uma
reforma administrativa, com destaque para a modernização das carreiras do
funcionalismo. De um lado, há uma massa de funcionários públicos de remuneração
mais baixa, de outro existem elites usufruindo as mais variadas benesses e
privilégios, sobretudo no Judiciário, no Ministério Público, nas Forças Armadas
e em altos escalões de ministérios. O teto salarial, hoje em R$ 41.650,92, é
sistematicamente burlado por gratificações, indenizações e outras manobras legais.
Em 2016, numa tentativa de enquadrar os supersalários, um projeto tentou acabar
com 39 tipos de rendimentos extras, os penduricalhos. A proposta está
engavetada.
Em 2020, o funcionalismo custou ao país 13,5%
do PIB, ante média de 9,3% nos países da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em 2021, a despesa caiu para 11,9% do PIB com
o congelamento salarial da pandemia. Mesmo assim, é um valor alto para a
qualidade do serviço prestado. Hoje, o piso da despesa com servidores é
estimado em 13% do PIB pela pesquisadora Cibele Franzese, da Fundação Getulio
Vargas.
A gestão da máquina estatal requer inúmeros ajustes para melhorar sua eficiência. Muito pode ser feito. Infelizmente o governo resiste a encarar o tema como prioridade. Prefere acreditar na fantasia de que há dinheiro sobrando.
Brasil polarizado
Folha de S. Paulo
Açulados, lulistas e bolsonaristas não se
arrependem do voto, mostra Datafolha
A polarização foi a grande vitoriosa do
pleito de 2022. Assim o demonstra a pesquisa do Datafolha segundo a qual 90% dos
eleitores dizem não se arrepender do voto depositado na urna no
ano passado.
Mais, 38% dos entrevistados afirmam confiar
mais em seu candidato hoje do que no dia da eleição; para 43%, o grau de
confiança é o mesmo, e apenas 18% desenvolveram maior ceticismo. Os números são
similares aos de setembro, quando o instituto testou pela primeira vez essa
bateria de perguntas.
Os blocos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e
Jair Bolsonaro (PL) têm dimensões comparáveis: 30% dos eleitores se declaram
petistas, e 25%, bolsonaristas, o que parece compatível com o resultado do
pleito, no qual Lula venceu seu adversário por margem mínima.
Nem toda polarização é má. A chamada
polarização partidária, compreendida como distinções programáticas entre
diferentes agremiações, é importante para atrair atenção ao processo eleitoral
e dar-lhe sentido.
Nos anos 90, não eram poucos os cientistas
políticos e analistas de mídia que se queixavam da indiferenciação entre os
principais grupos. A piada que se contava, na versão americana, é que tanto
fazia escolher um presidente democrata ou republicano, desde que Alan Greenspan
continuasse no comando do Fed, o banco central.
A polarização partidária não só retornou —aos
EUA, ao Brasil e a vários outros países— como ainda trouxe consigo a
polarização afetiva, caracterizada por mobilizar os sentimentos dos eleitores,
notadamente os negativos em relação aos adversários.
O fenômeno se faz acompanhar de uma lista de
efeitos adversos. Ele dificulta o diálogo e a formação de consensos, a alma da
política, e cria sensação generalizada de mal-estar, na medida em que afasta
pessoas de amigos e familiares.
Pior, a polarização afetiva também tende a
radicalizar as posições de cada um dos grupos, o que pode levar a extremismos.
Essa dinâmica não é das mais estáveis. Se é
verdade que interessa aos líderes dos dois principais blocos estimular a
divisão, uma vez que ela dificulta o surgimento de candidatos da terceira via,
também se verifica que os resultados de pleitos passam a depender cada vez mais
da fatia de eleitores mais moderados.
Uma alternativa é que candidatos busquem cortejar esses estratos, abraçando posições mais ao centro. Mas o que se vê à direita e à esquerda, no governo, é a preocupação em manter a mobilização dos apoiadores mais inflamados.
Melhor que o esperado
Folha de S. Paulo
Na economia global, ano termina com inflação
em queda sem a temida recessão
A principal notícia positiva do ano na
economia mundial foi o declínio rápido da inflação sem correspondente aumento
do desemprego. A combinação auspiciosa agora abre espaço para alívio nos
juros nos principais centros financeiros, os EUA e a zona do euro, e
reduz os riscos de uma recessão.
Nos Estados Unidos, a alta dos preços ao
consumidor passou de 6,4% em 2022 para esperados 3,1% neste ano. Índices que
excluem itens mais voláteis, como alimentos e energia, já correm em torno de
2%, compatíveis com a meta.
Enquanto isso, a economia americana mantém
vigor. Mesmo com juros em 5,5% anuais, patamar elevado para os padrões das
últimas duas décadas, o PIB deve crescer perto de 2,5% em 2023, impulsionado
pelo consumo das famílias e por aceleração de investimentos.
O desemprego se mantém em 3,7%, patamar muito
próximo do mínimo histórico, com forte criação de novas vagas e expansão da
população ativa. Mesmo assim, os aumentos salariais estão em nível que não
pressiona a inflação.
Os bons resultados não deixam de surpreender,
por destoarem de ajustes anteriores —que em geral implicaram alta da
desocupação como mal necessário para conter o avanço dos preços.
Desta vez, ao menos até agora, tal padrão não
se repetiu. As razões ainda são debatidas, mas podem derivar da configuração
única que foi legada pela crise sanitária.
Os choques em vários setores até 2022,
causados pela interrupção de cadeias logísticas e pela mudança no padrão de
demanda, agora retrocedem naturalmente.
O mesmo ocorre na Europa, que sofreu ainda
com elevados custos de energia, em razão da Guerra da Ucrânia, que agora se
normalizam.
Já a Ásia está em outro momento do ciclo
econômico, com quadro de fraqueza de demanda e risco deflacionário, caso da
China, mas sem que se vislumbre uma recessão.
As expectativas para 2024 são em geral
positivas, com o alívio monetário e a atividade em crescimento. Um ano de
transição em que se vislumbra a possibilidade de um novo ciclo de expansão de
produtividade, desta vez impulsionada por aplicações de inteligência
artificial.
Os maiores riscos parecem ser geopolíticos,
com eleições nos
EUA que poderão amplificar tendências isolacionistas, além de
conflitos na Europa e no Oriente Médio.
O Brasil pode se beneficiar desse contexto internacional. A aprovação da reforma tributária é um passo positivo que pode colocar o país novamente no mapa de investimentos, desde que haja solidez na gestão da economia.
O problema da liberdade nas universidades
O Estado de S. Paulo
Antissemitismo expõe intolerância às
divergências à direita
Se Israel é ou não a “luz das nações”, como
diz a Bíblia, ao menos está ajudando a lançar luz em uma zona densamente
obscurecida da cultura moderna: a liberdade de expressão nas universidades,
especialmente nas norte-americanas, epicentro de uma epidemia de intolerância e
segregação que se alastra pelo ambiente acadêmico das nações democráticas, e de
lá para suas instituições e corporações.
Após uma onda de virulentos protestos
antissemistas e pró-jihadistas nos campi americanos, as presidentes de Harvard,
MIT e Pensilvânia – três das oito universidades do clube de elite da Ivy League
– foram convocadas a depor no Congresso. Perguntadas se conclamar o genocídio
de judeus é permitido por seus códigos de conduta, as três responderam: depende
do contexto.
A resposta está em linha com o direito
americano. Por mais incômodo que seja a muitas pessoas, a liberdade de
expressão nos EUA é um direito quase absoluto. Ao contrário de várias outras
democracias, “discursos de ódio” são protegidos pela Constituição. As exceções
não só dependem do contexto, como este contexto é extremamente limitado: apenas
se o discurso em questão for “dirigido a incitar ou produzir uma ação
iminentemente ilegal” ou se representar um “perigo claro e imediato”, como
gritar “fogo!” no cinema. Isso vale até para o pior dos crimes: o genocídio.
Num caso clássico, a Suprema Corte autorizou passeatas neonazistas.
Universidades públicas não podem se desviar
dos parâmetros maximalistas da Constituição. As privadas podem estabelecer seus
códigos de conduta. O problema é que, dada a hiper-representação de esquerda
nos quadros universitários, esses códigos têm sido empregados para reprimir
dissidências da ortodoxia progressista.
Nove em dez acadêmicos americanos são de
esquerda. Nas faculdades de humanas a desproporção é muito maior. A maioria dos
alunos também é progressista.
Poucas coisas contribuíram mais para a
associação nos EUA do termo liberal ao progressismo que os protestos estudantis
pela liberdade de expressão nos anos 70. Hoje é o inverso. Esquerdistas
iliberais exigem das diretorias cursos compulsórios de teorias identitárias, a
exclusão do currículo de livros que supostamente ferem sensibilidades de
minorias, a seleção de alunos condicionada a confissões de fé no credo da
“Diversidade e Inclusão” e a contratação de professores não brancos ou
homossexuais. Discursos ofensivos ou só incômodos são equiparados à
“violência”. Essa cultura tóxica não só está asfixiando a livre investigação,
como está gestando jovens autoritários e paranoicos. Transtornos de ansiedade e
depressão estão escalando na Geração Z.
Qualquer discordância dos dogmas
sacramentados pelos cardeais das teorias críticas de raça, gênero e sexualidade
é anatematizada como “racismo”, “misoginia” ou “homofobia”. De 250
universidades avaliadas pela Fundação para os Direitos Individuais e de Expressão,
Harvard e Pensilvânia foram consideradas as mais hostis à liberdade de
expressão, com base em casos de palestras canceladas e professores castigados
ou expulsos.
A prevaricação das presidentes das
universidades da Ivy League no Congresso expôs sua hipocrisia e seu padrão de
dois pesos e duas medidas. Se um discurso contraria o mandarinato progressista
(digamos, criticando critérios de seleção raciais, afirmando que o sexo é
binário ou, pior, errando um pronome), deve ser imediatamente combatido, mas se
pede o extermínio de “brancos”, “opressores” e “colonizadores”, que é como os
fanáticos entendem os israelenses, então a liberdade de expressão passa a ser
absoluta.
A cultura do cancelamento é o cancelamento da
cultura, ao menos da cultura democrática, alicerçada no pluralismo de ideias e
dinamizada pelo livre debate. As universidades deveriam ser os santuários
desses princípios e laboratórios para experimentá-los até seus limites. Mas se
tornaram o oposto. Que nas usinas do autoritarismo da “nova esquerda” tenha se
instalado uma controvérsia sobre a politização acadêmica é um sinal dos tempos
de que a sociedade talvez esteja madura para superar a cultura do cancelamento.
Vergonhoso desrespeito à vida
O Estado de S. Paulo
Apenas um terço dos homicídios no País é
esclarecido. Não há segurança pública, nem proteção ao direito à vida, com esse
índice escandaloso. Investigação estatal precisa melhorar muito
Nos últimos sete anos, o Brasil esclareceu
apenas um terço dos homicídios, aponta recente levantamento do Instituto Sou da
Paz. Trata-se de uma das mais graves faces da insegurança pública. Com a
terceira maior população carcerária do mundo, os presídios do País estão
repletos de presos por crimes de menor potencial ofensivo – em muitos casos,
presos provisórios –, enquanto o crime contra a vida permanece largamente
impune.
Coletando dados desde 2015, a pesquisa Onde
Mora a Impunidade? mostra que, no período, o País se manteve praticamente
estagnado na resolução dos homicídios. Em 2021, último ano com dados
disponíveis, a taxa nacional de esclarecimento foi de 35%. Em 2015, havia sido
de 32%. A média global é de 63%. Na Europa, a taxa de resolução é de 92%; na
Oceania, de 74%; na Ásia, de 72%; na África, de 52%; e nas Américas, de 43%.
Como se vê, o Brasil tem muito a melhorar, não havendo nenhum motivo para
condescender com os resultados sofríveis obtidos até aqui.
O estudo destaca as distorções do sistema
carcerário brasileiro, que refletem, entre outras causas, as deficiências da
investigação policial. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen),
40% dos presos estão na cadeia por crimes patrimoniais; 28%, por crimes
relacionados a drogas; e 11%, por homicídios. Ao mesmo tempo, o País apresenta
uma taxa altíssima de homicídios: anualmente, cerca de 40 mil pessoas são
assassinadas, e em 70% dos casos há emprego de armas de fogo.
“É preciso dirigir os esforços e
investimentos do sistema de Justiça brasileiro para aumentar a investigação e o
esclarecimento dos crimes contra a vida, em vez de lotar prisões de presos
provisórios por crimes patrimoniais e por tráfico de drogas”, afirma o estudo.
No sistema atual, prende-se muito por crimes que demandam baixa investigação, e
crimes graves, como os homicídios, ficam impunes.
Trata-se de aspecto fundamental da soberania
estatal e do respeito aos cidadãos: o Estado tem de ser capaz de esclarecer os
homicídios cometidos em território nacional. Se o poder público se omite nessa
tarefa, a população fica privada da proteção ao seu direito mais básico, o
direito à vida. “Quando o Estado não dá resposta, a sociedade perde a confiança
nas instituições, lançando mão, muitas vezes, de formas não republicanas de
resolução de conflitos”, lembrou Carolina Ricardo, diretora executiva do
Instituto Sou da Paz.
O estudo adverte para a discrepância entre as
taxas de esclarecimento de homicídio nos diferentes Estados da Federação. Em
2021, Bahia e Rio Grande do Norte esclareceram apenas 9% dos homicídios: um
verdadeiro escândalo. Em Minas Gerais e no Paraná, a taxa foi de 76%. Com isso,
fica evidente que a baixa taxa de resolução não é causada por eventuais
deficiências na legislação penal e processual penal, como às vezes se afirma.
As leis são as mesmas para todo o País. Ou seja, sob idêntico marco jurídico, há
governos estaduais que desempenham suas funções de maneira muito mais eficiente
do que outros.
Isso tudo joga luzes sobre a
disfuncionalidade de muitas discussões sobre a falta de segurança pública que
atribuem o problema a supostas penas brandas. Não adianta nada aumentar as
penas se os crimes não são esclarecidos. Para que se possa analisar e debater
seriamente a eficiência das punições atuais, o primeiro passo é aplicá-las
corretamente. Alterar a lei para elevar as penas, mas continuar sem esclarecer
os crimes – no caso, os homicídios – é uma cabal inutilidade, que reforça a
percepção de impunidade. “Quando o Estado não investiga de forma correta e não
responsabiliza os autores, dá-se um recado de que esses crimes não são
importantes. E isso é um incentivo para que a prática continue acontecendo”,
disse Carolina Ricardo.
Os números do Instituto Sou da Paz evidenciam
a necessidade de uma nova atitude do Estado, em suas várias esferas, em relação
aos homicídios. Não cabe tolerância com o crime contra a vida. Não cabe
complacência com tamanha ineficiência do poder estatal.
Urgência humanitária
O Estado de S. Paulo
Conselho de Segurança afinal se pronuncia
sobre a guerra em Gaza, ante a intolerável situação
O Conselho de Segurança da ONU finalmente
aprovou uma resolução sobre a guerra entre o Hamas e Israel. Ela demanda a
expansão da ajuda humanitária. Essa é a parte mais urgente e factível, com
agentes da ONU coordenando o processo. A resolução pede ainda a criação de
“condições para uma cessação sustentável das hostilidades”. Essa é a parte
nebulosa.
A crise humanitária tornou-se intolerável. A
votação coincidiu com o marco de 20 mil palestinos mortos. Segundo a ONU, 90%
da população de Gaza fica regularmente sem comida por um dia. A batalha no sul
tem sido a maior em intensidade, com algumas das piores taxas de violência no
século 21. O número de crianças mortas no conflito ultrapassa o total global
dos últimos três anos.
Os EUA têm bloqueado tentativas do Conselho
de aprovar a demanda por um cessar-fogo, mas sua paciência está se esgotando.
Sabendo disso, é provável que o governo israelense intensifique os ataques
antes de iniciar uma inevitável desaceleração. A missão urgente para a
diplomacia é buscar uma nova trégua para liberar mais reféns. Mas o Hamas tem
feito exigências inaceitáveis para Israel: cessar-fogo e a libertação de todos
os prisioneiros palestinos.
Focos de violência na região seguem voláteis.
Crescem os temores de levante numa Cisjordânia pressionada por colonos
israelenses. As hostilidades de milícias apoiadas pelo Irã no Líbano e Iêmen
agravam o quadro.
O plano de médio e longo prazos de Israel
para Gaza é uma incógnita. Três arranjos têm sido aventados: um prolongamento
indefinido das forças de Israel por terra; a criação de uma força multinacional
incluindo Estados árabes; ou o restabelecimento da Autoridade Palestina.
Publicamente, o primeiro, e mais provável a médio prazo, sofre resistência nos
EUA; os dois últimos são tratados com cautela pelos países árabes e a
Autoridade Palestina – ambos são rechaçados por Israel.
Há um vácuo de autoridades interessadas na
paz dos dois lados. Mesmo que Benjamim Netanyahu caia, a posição das
alternativas mais prováveis não é muito diferente: uma manutenção coercitiva do
status quo. Do lado palestino, há pessoas e lideranças interessadas num caminho
novo. Mas sua capacidade de mobilização foi erodida por anos de tirania: a
violenta do Hamas em Gaza e a corrupta da Autoridade Palestina na Cisjordânia.
A comunidade internacional precisaria moderar
os dois povos, pressionar Israel a aceitar que o status quo é insustentável e
garantir a incorporação da sociedade palestina num processo de construção de
novos caminhos. Mas, olhando para os países com mais alavancagem, os EUA e os
árabes, é incerto até onde há clareza e disposição sobre isso.
Em resumo, a atuação da ONU deve aliviar a
crise humanitária já. A intensidade do conflito armado deve ser reduzida
proximamente, mas antes deve piorar. Quanto ao processo político de
conciliação, é incerto como, quando e, logo, se será viabilizado. A dura
verdade é que as “condições para uma cessação sustentável das hostilidades”
existem em teoria, mas não estão visíveis no horizonte.
Por um mundo mais solidário e justo
Correio Braziliense
Enquanto parte da população passará esta
noite de Natal com a mesa farta, milhões de pessoas estarão transitando pelas
ruas, sem abrigo, num frio extremo ou num calor infernal, em busca de algo para
comer, revirando lixos ou estendendo a mão em busca de ajuda
A Declaração Universal dos Direitos Humanos
completou 75 anos no último 10 de dezembro, mas há pouco a comemorar neste
momento, em que o mundo vê as desigualdades sociais se acentuarem, com guerras
espalhadas por vários países e a intolerância predominando. Enquanto parte da
população passará esta noite de Natal com a mesa farta, milhões de pessoas
estarão transitando pelas ruas, sem abrigo, num frio extremo ou num calor
infernal, em busca de algo para comer, revirando lixos ou estendendo a mão em
busca de ajuda. Não se trata de um fenômeno de países pobres ou em
desenvolvimento, como o Brasil. É uma ferida aberta mesmo nas economias mais
desenvolvidas, que não têm sabido lidar com políticas inclusivas efetivas.
Dados do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea) apontam que, no Brasil, há quase 300 mil pessoas em situação de
rua, um recorde. Essa situação se agravou depois da pandemia do novo
coronavírus, sem que os governos reagissem com a rapidez necessária para conter
esse quadro desolador. Nos Estados Unidos, a maior economia do planeta, o
número de sem-tetos, de 653 mil, é o maior desde que as estatísticas oficiais
começaram a ser feitas, em 2007. Tal contingente representa aumento de 12% em
relação a 2022, ou seja, mais 70 mil pessoas ficaram sem abrigo em apenas um
ano, muitas delas passando por esse martírio pela primeira vez na vida.
Na Europa, onde a política de bem-estar
social implantada depois da Segunda Guerra Mundial conseguiu reduzir
significativamente o fosso que separa ricos e pobres, a situação também é
alarmante. Mais de 700 mil pessoas não têm onde morar. Nos países ibéricos, a
gravidade do problema está escancarada. Portugal, com quase 11 mil cidadãos
vivendo nas ruas, sendo muitos estrangeiros, teme ver a miséria explodir. Não
sem razão. Esse exército de sem-teto cresceu 117% em quatro anos. Na Espanha,
as estatísticas indicam cerca de 30 mil pessoas em situação de rua, um salto de
25% ante 2012. Itália e Grécia seguem na mesma direção, com o problema agravado
por uma crise migratória.
Em meio a esse cenário devastador, em que a
dignidade humana inexiste, há um fenômeno recente que amplia os desafios de
governos e sociedade civil para proteger a população mais vulnerável: os
elevados preços dos imóveis. Na Europa e nos Estados Unidos, principalmente, os
preços dos aluguéis atingiram níveis inaceitáveis. Famílias inteiras, muitas
com crianças, estão sendo despejadas por não terem renda suficiente para bancar
uma moradia digna. As grandes cidades vivem um processo de gentrificação, em que
áreas populares estão sendo ocupadas por pessoas de mais alta renda, expulsando
moradores locais. O turismo de massa reforça esse processo e acende o sinal de
alerta.
O governo brasileiro lançou, recentemente, o
programa Ruas Visíveis, com investimentos previstos de R$ 1 bilhão, para tentar
minimizar a penúria de quem não tem onde morar. Mas é preciso mais, muito mais.
Em todas as grandes cidades, que concentram o grosso dos sem-abrigo, há
centenas, milhares de prédios abandonados que poderiam ser transformados em
moradias. O engajamento de governadores e prefeitos num movimento como esse
certamente tornaria as cidades mais amigáveis e, sobretudo, tiraria muitas pessoas
da miséria absoluta, à qual elas parecem estar condenadas. Nesse tipo de ação
não deve imperar a ideologia, sob o risco de prevalecer o fracasso.
O Natal deste ano será o primeiro depois de, efetivamente, o planeta ter superado a pandemia da covid-19. Que os aprendizados dos últimos anos sirvam para a construção de um mundo melhor, de mais compreensão e menos ódio, de mais solidariedade em vez do individualismo, de mais amor ao próximo. A complexidade do quadro atual exige reflexão e foco no que realmente importa, em especial, para a população mais desassistida. Todos têm o direito a uma vida digna, e cabe a cada um construir um futuro de oportunidades, de paz e sem miséria, com preservação ambiental e avanços da ciência. Que assim seja. Feliz Natal!
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