domingo, 24 de dezembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Em vez de gastar mais, Estado precisa saber gastar melhor

O Globo

Orçamento é aprovado com a preocupação de elevar a despesa, e não a eficiência da máquina pública

Mesmo sustentado por uma carga tributária muito além da razoável para um país emergente, o Estado brasileiro é conhecido por prestar serviços públicos de baixa qualidade. Gasta muito e gasta mal. Para o ano que vem, o Orçamento prevê uma despesa primária da União — sem considerar o pagamento de juros da dívida pública — de R$ 2,1 trilhões. Ainda assim, a meta de déficit zero orçada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não é considerada viável dentro do próprio governo. Para não falar nos gastos de estados e municípios.

Chama a atenção que, mesmo com tanto dinheiro, o Estado não preste serviço de qualidade à população. A série de reportagens “Estado eficiente”, publicada pelo GLOBO, expôs alguns aspectos que tornam o Estado disfuncional. Ele gera burocracia quando deveria facilitar a vida de cidadãos e empresas. Atua de forma débil na ajuda à Federação em áreas essenciais como saúde, segurança e educação. Ao tentar fazer de tudo — há até estatais para hemoderivados e semicondutores —, paradoxalmente deixa o brasileiro desamparado naquilo de que mais precisa. E, sem avaliação consistente das políticas públicas, cria um sem-número de ralos por onde o dinheiro público escorre sem controle.

Tome-se o exemplo dos investimentos em obras públicas. De 21 mil contratos com alguma participação de recursos federais, 40% estão parados. Há uma escalada nas paralisações. A proporção de canteiros abandonados cresceu de 29% em 2020 para 38,5% em 2023. Obras sem continuidade representam um investimento de R$ 32,2 bilhões, R$ 8,2 bilhões dos quais já pagos. O resto são recursos públicos congelados, que deixam de gerar empregos, renda e melhoria nos serviços. Puro desperdício.

As causas das paralisações são várias, a maioria ligada à falta de coordenação entre União, estados e municípios. Nas obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a União arca com 80% do investimento e o resto fica com estados e municípios. Quando o governador ou o prefeito não têm recursos, a obra para. Muitas vezes, o empreiteiro oferece o preço mais baixo para vencer o leilão, mas não consegue fazer a obra por aquele valor. A esperança é conseguir aditivos mais à frente. Na falta deles, a obra também para. Alterações simples na contratação gerariam resultados positivos rapidamente, segundo o vice-presidente de Infraestrutura da Câmara Brasileira da Indústria da Construção, Carlos Eduardo de Lima Jorge. Outra mudança sensata é obrigar que os licenciamentos sejam obtidos antes das licitações.

Um caso típico aconteceu nos investimentos em saneamento a partir de 2006, estimulados pelos PACs anteriores das gestões petistas. Nove anos depois, os indicadores de cobertura da rede de saneamento básico continuavam idênticos, diz Rafael Martins de Souza, do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas. O dinheiro fora gasto, mas quilômetros de tubulações não se conectavam com estações de tratamento, nem às casas.

Outra distorção é a importância crescente das emendas parlamentares no financiamento das obras. É legítimo que representantes do povo busquem destinar recursos públicos a suas regiões. Mas no Brasil a prática ultrapassou qualquer medida razoável. O valor das emendas foi multiplicado por dez desde 2015 e está, no Orçamento de 2024, em R$ 53 bilhões. Elas equivalem a algo como um quarto dos gastos discricionários do Executivo e a quase todo o PAC.

O maior problema das emendas é destinar recursos segundo interesses políticos, não necessidades urgentes ou critérios técnicos. Todos os municípios demandam investimentos. Mas, ao tirar do Executivo a prerrogativa de decidir onde são mais prementes, as emendas tornam a ação do Estado mais injusta e mais cara. O país ganha mais com políticas públicas elaboradas por equipes técnicas dos ministérios. Distribuir dinheiro a esmo aumenta gastos sem resultados.

Também falta fiscalização. O Tribunal de Contas da União (TCU) teria de exercê-la de forma sistemática e não pontual, sugere a cientista política e pesquisadora Beatriz Rey. Ela conta que, quando assessorava um deputado em Washington, ele queria incluir no orçamento uma emenda para reformar um hospital em sua base eleitoral. Antes de remeter o pedido à comissão de orçamento, era preciso saber se o gasto se encaixava em algum programa federal. Há, nos Estados Unidos, uma ligação entre emendas e políticas públicas. No Brasil, não existe nada semelhante.

O Estado também precisa com urgência de uma reforma administrativa, com destaque para a modernização das carreiras do funcionalismo. De um lado, há uma massa de funcionários públicos de remuneração mais baixa, de outro existem elites usufruindo as mais variadas benesses e privilégios, sobretudo no Judiciário, no Ministério Público, nas Forças Armadas e em altos escalões de ministérios. O teto salarial, hoje em R$ 41.650,92, é sistematicamente burlado por gratificações, indenizações e outras manobras legais. Em 2016, numa tentativa de enquadrar os supersalários, um projeto tentou acabar com 39 tipos de rendimentos extras, os penduricalhos. A proposta está engavetada.

Em 2020, o funcionalismo custou ao país 13,5% do PIB, ante média de 9,3% nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em 2021, a despesa caiu para 11,9% do PIB com o congelamento salarial da pandemia. Mesmo assim, é um valor alto para a qualidade do serviço prestado. Hoje, o piso da despesa com servidores é estimado em 13% do PIB pela pesquisadora Cibele Franzese, da Fundação Getulio Vargas.

A gestão da máquina estatal requer inúmeros ajustes para melhorar sua eficiência. Muito pode ser feito. Infelizmente o governo resiste a encarar o tema como prioridade. Prefere acreditar na fantasia de que há dinheiro sobrando.

Brasil polarizado

Folha de S. Paulo

Açulados, lulistas e bolsonaristas não se arrependem do voto, mostra Datafolha

A polarização foi a grande vitoriosa do pleito de 2022. Assim o demonstra a pesquisa do Datafolha segundo a qual 90% dos eleitores dizem não se arrepender do voto depositado na urna no ano passado.

Mais, 38% dos entrevistados afirmam confiar mais em seu candidato hoje do que no dia da eleição; para 43%, o grau de confiança é o mesmo, e apenas 18% desenvolveram maior ceticismo. Os números são similares aos de setembro, quando o instituto testou pela primeira vez essa bateria de perguntas.

Os blocos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL) têm dimensões comparáveis: 30% dos eleitores se declaram petistas, e 25%, bolsonaristas, o que parece compatível com o resultado do pleito, no qual Lula venceu seu adversário por margem mínima.

Nem toda polarização é má. A chamada polarização partidária, compreendida como distinções programáticas entre diferentes agremiações, é importante para atrair atenção ao processo eleitoral e dar-lhe sentido.

Nos anos 90, não eram poucos os cientistas políticos e analistas de mídia que se queixavam da indiferenciação entre os principais grupos. A piada que se contava, na versão americana, é que tanto fazia escolher um presidente democrata ou republicano, desde que Alan Greenspan continuasse no comando do Fed, o banco central.

A polarização partidária não só retornou —aos EUA, ao Brasil e a vários outros países— como ainda trouxe consigo a polarização afetiva, caracterizada por mobilizar os sentimentos dos eleitores, notadamente os negativos em relação aos adversários.

O fenômeno se faz acompanhar de uma lista de efeitos adversos. Ele dificulta o diálogo e a formação de consensos, a alma da política, e cria sensação generalizada de mal-estar, na medida em que afasta pessoas de amigos e familiares.

Pior, a polarização afetiva também tende a radicalizar as posições de cada um dos grupos, o que pode levar a extremismos.

Essa dinâmica não é das mais estáveis. Se é verdade que interessa aos líderes dos dois principais blocos estimular a divisão, uma vez que ela dificulta o surgimento de candidatos da terceira via, também se verifica que os resultados de pleitos passam a depender cada vez mais da fatia de eleitores mais moderados.

Uma alternativa é que candidatos busquem cortejar esses estratos, abraçando posições mais ao centro. Mas o que se vê à direita e à esquerda, no governo, é a preocupação em manter a mobilização dos apoiadores mais inflamados.

Melhor que o esperado

Folha de S. Paulo

Na economia global, ano termina com inflação em queda sem a temida recessão

A principal notícia positiva do ano na economia mundial foi o declínio rápido da inflação sem correspondente aumento do desemprego. A combinação auspiciosa agora abre espaço para alívio nos juros nos principais centros financeiros, os EUA e a zona do euro, e reduz os riscos de uma recessão.

Nos Estados Unidos, a alta dos preços ao consumidor passou de 6,4% em 2022 para esperados 3,1% neste ano. Índices que excluem itens mais voláteis, como alimentos e energia, já correm em torno de 2%, compatíveis com a meta.

Enquanto isso, a economia americana mantém vigor. Mesmo com juros em 5,5% anuais, patamar elevado para os padrões das últimas duas décadas, o PIB deve crescer perto de 2,5% em 2023, impulsionado pelo consumo das famílias e por aceleração de investimentos.

O desemprego se mantém em 3,7%, patamar muito próximo do mínimo histórico, com forte criação de novas vagas e expansão da população ativa. Mesmo assim, os aumentos salariais estão em nível que não pressiona a inflação.

Os bons resultados não deixam de surpreender, por destoarem de ajustes anteriores —que em geral implicaram alta da desocupação como mal necessário para conter o avanço dos preços.

Desta vez, ao menos até agora, tal padrão não se repetiu. As razões ainda são debatidas, mas podem derivar da configuração única que foi legada pela crise sanitária.

Os choques em vários setores até 2022, causados pela interrupção de cadeias logísticas e pela mudança no padrão de demanda, agora retrocedem naturalmente.

O mesmo ocorre na Europa, que sofreu ainda com elevados custos de energia, em razão da Guerra da Ucrânia, que agora se normalizam.

Já a Ásia está em outro momento do ciclo econômico, com quadro de fraqueza de demanda e risco deflacionário, caso da China, mas sem que se vislumbre uma recessão.

As expectativas para 2024 são em geral positivas, com o alívio monetário e a atividade em crescimento. Um ano de transição em que se vislumbra a possibilidade de um novo ciclo de expansão de produtividade, desta vez impulsionada por aplicações de inteligência artificial.

Os maiores riscos parecem ser geopolíticos, com eleições nos EUA que poderão amplificar tendências isolacionistas, além de conflitos na Europa e no Oriente Médio.

O Brasil pode se beneficiar desse contexto internacional. A aprovação da reforma tributária é um passo positivo que pode colocar o país novamente no mapa de investimentos, desde que haja solidez na gestão da economia.

O problema da liberdade nas universidades

O Estado de S. Paulo

Antissemitismo expõe intolerância às divergências à direita

Se Israel é ou não a “luz das nações”, como diz a Bíblia, ao menos está ajudando a lançar luz em uma zona densamente obscurecida da cultura moderna: a liberdade de expressão nas universidades, especialmente nas norte-americanas, epicentro de uma epidemia de intolerância e segregação que se alastra pelo ambiente acadêmico das nações democráticas, e de lá para suas instituições e corporações.

Após uma onda de virulentos protestos antissemistas e pró-jihadistas nos campi americanos, as presidentes de Harvard, MIT e Pensilvânia – três das oito universidades do clube de elite da Ivy League – foram convocadas a depor no Congresso. Perguntadas se conclamar o genocídio de judeus é permitido por seus códigos de conduta, as três responderam: depende do contexto.

A resposta está em linha com o direito americano. Por mais incômodo que seja a muitas pessoas, a liberdade de expressão nos EUA é um direito quase absoluto. Ao contrário de várias outras democracias, “discursos de ódio” são protegidos pela Constituição. As exceções não só dependem do contexto, como este contexto é extremamente limitado: apenas se o discurso em questão for “dirigido a incitar ou produzir uma ação iminentemente ilegal” ou se representar um “perigo claro e imediato”, como gritar “fogo!” no cinema. Isso vale até para o pior dos crimes: o genocídio. Num caso clássico, a Suprema Corte autorizou passeatas neonazistas.

Universidades públicas não podem se desviar dos parâmetros maximalistas da Constituição. As privadas podem estabelecer seus códigos de conduta. O problema é que, dada a hiper-representação de esquerda nos quadros universitários, esses códigos têm sido empregados para reprimir dissidências da ortodoxia progressista.

Nove em dez acadêmicos americanos são de esquerda. Nas faculdades de humanas a desproporção é muito maior. A maioria dos alunos também é progressista.

Poucas coisas contribuíram mais para a associação nos EUA do termo liberal ao progressismo que os protestos estudantis pela liberdade de expressão nos anos 70. Hoje é o inverso. Esquerdistas iliberais exigem das diretorias cursos compulsórios de teorias identitárias, a exclusão do currículo de livros que supostamente ferem sensibilidades de minorias, a seleção de alunos condicionada a confissões de fé no credo da “Diversidade e Inclusão” e a contratação de professores não brancos ou homossexuais. Discursos ofensivos ou só incômodos são equiparados à “violência”. Essa cultura tóxica não só está asfixiando a livre investigação, como está gestando jovens autoritários e paranoicos. Transtornos de ansiedade e depressão estão escalando na Geração Z.

Qualquer discordância dos dogmas sacramentados pelos cardeais das teorias críticas de raça, gênero e sexualidade é anatematizada como “racismo”, “misoginia” ou “homofobia”. De 250 universidades avaliadas pela Fundação para os Direitos Individuais e de Expressão, Harvard e Pensilvânia foram consideradas as mais hostis à liberdade de expressão, com base em casos de palestras canceladas e professores castigados ou expulsos.

A prevaricação das presidentes das universidades da Ivy League no Congresso expôs sua hipocrisia e seu padrão de dois pesos e duas medidas. Se um discurso contraria o mandarinato progressista (digamos, criticando critérios de seleção raciais, afirmando que o sexo é binário ou, pior, errando um pronome), deve ser imediatamente combatido, mas se pede o extermínio de “brancos”, “opressores” e “colonizadores”, que é como os fanáticos entendem os israelenses, então a liberdade de expressão passa a ser absoluta.

A cultura do cancelamento é o cancelamento da cultura, ao menos da cultura democrática, alicerçada no pluralismo de ideias e dinamizada pelo livre debate. As universidades deveriam ser os santuários desses princípios e laboratórios para experimentá-los até seus limites. Mas se tornaram o oposto. Que nas usinas do autoritarismo da “nova esquerda” tenha se instalado uma controvérsia sobre a politização acadêmica é um sinal dos tempos de que a sociedade talvez esteja madura para superar a cultura do cancelamento.

Vergonhoso desrespeito à vida

O Estado de S. Paulo

Apenas um terço dos homicídios no País é esclarecido. Não há segurança pública, nem proteção ao direito à vida, com esse índice escandaloso. Investigação estatal precisa melhorar muito

Nos últimos sete anos, o Brasil esclareceu apenas um terço dos homicídios, aponta recente levantamento do Instituto Sou da Paz. Trata-se de uma das mais graves faces da insegurança pública. Com a terceira maior população carcerária do mundo, os presídios do País estão repletos de presos por crimes de menor potencial ofensivo – em muitos casos, presos provisórios –, enquanto o crime contra a vida permanece largamente impune.

Coletando dados desde 2015, a pesquisa Onde Mora a Impunidade? mostra que, no período, o País se manteve praticamente estagnado na resolução dos homicídios. Em 2021, último ano com dados disponíveis, a taxa nacional de esclarecimento foi de 35%. Em 2015, havia sido de 32%. A média global é de 63%. Na Europa, a taxa de resolução é de 92%; na Oceania, de 74%; na Ásia, de 72%; na África, de 52%; e nas Américas, de 43%. Como se vê, o Brasil tem muito a melhorar, não havendo nenhum motivo para condescender com os resultados sofríveis obtidos até aqui.

O estudo destaca as distorções do sistema carcerário brasileiro, que refletem, entre outras causas, as deficiências da investigação policial. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), 40% dos presos estão na cadeia por crimes patrimoniais; 28%, por crimes relacionados a drogas; e 11%, por homicídios. Ao mesmo tempo, o País apresenta uma taxa altíssima de homicídios: anualmente, cerca de 40 mil pessoas são assassinadas, e em 70% dos casos há emprego de armas de fogo.

“É preciso dirigir os esforços e investimentos do sistema de Justiça brasileiro para aumentar a investigação e o esclarecimento dos crimes contra a vida, em vez de lotar prisões de presos provisórios por crimes patrimoniais e por tráfico de drogas”, afirma o estudo. No sistema atual, prende-se muito por crimes que demandam baixa investigação, e crimes graves, como os homicídios, ficam impunes.

Trata-se de aspecto fundamental da soberania estatal e do respeito aos cidadãos: o Estado tem de ser capaz de esclarecer os homicídios cometidos em território nacional. Se o poder público se omite nessa tarefa, a população fica privada da proteção ao seu direito mais básico, o direito à vida. “Quando o Estado não dá resposta, a sociedade perde a confiança nas instituições, lançando mão, muitas vezes, de formas não republicanas de resolução de conflitos”, lembrou Carolina Ricardo, diretora executiva do Instituto Sou da Paz.

O estudo adverte para a discrepância entre as taxas de esclarecimento de homicídio nos diferentes Estados da Federação. Em 2021, Bahia e Rio Grande do Norte esclareceram apenas 9% dos homicídios: um verdadeiro escândalo. Em Minas Gerais e no Paraná, a taxa foi de 76%. Com isso, fica evidente que a baixa taxa de resolução não é causada por eventuais deficiências na legislação penal e processual penal, como às vezes se afirma. As leis são as mesmas para todo o País. Ou seja, sob idêntico marco jurídico, há governos estaduais que desempenham suas funções de maneira muito mais eficiente do que outros.

Isso tudo joga luzes sobre a disfuncionalidade de muitas discussões sobre a falta de segurança pública que atribuem o problema a supostas penas brandas. Não adianta nada aumentar as penas se os crimes não são esclarecidos. Para que se possa analisar e debater seriamente a eficiência das punições atuais, o primeiro passo é aplicá-las corretamente. Alterar a lei para elevar as penas, mas continuar sem esclarecer os crimes – no caso, os homicídios – é uma cabal inutilidade, que reforça a percepção de impunidade. “Quando o Estado não investiga de forma correta e não responsabiliza os autores, dá-se um recado de que esses crimes não são importantes. E isso é um incentivo para que a prática continue acontecendo”, disse Carolina Ricardo.

Os números do Instituto Sou da Paz evidenciam a necessidade de uma nova atitude do Estado, em suas várias esferas, em relação aos homicídios. Não cabe tolerância com o crime contra a vida. Não cabe complacência com tamanha ineficiência do poder estatal.

Urgência humanitária

O Estado de S. Paulo

Conselho de Segurança afinal se pronuncia sobre a guerra em Gaza, ante a intolerável situação

O Conselho de Segurança da ONU finalmente aprovou uma resolução sobre a guerra entre o Hamas e Israel. Ela demanda a expansão da ajuda humanitária. Essa é a parte mais urgente e factível, com agentes da ONU coordenando o processo. A resolução pede ainda a criação de “condições para uma cessação sustentável das hostilidades”. Essa é a parte nebulosa.

A crise humanitária tornou-se intolerável. A votação coincidiu com o marco de 20 mil palestinos mortos. Segundo a ONU, 90% da população de Gaza fica regularmente sem comida por um dia. A batalha no sul tem sido a maior em intensidade, com algumas das piores taxas de violência no século 21. O número de crianças mortas no conflito ultrapassa o total global dos últimos três anos.

Os EUA têm bloqueado tentativas do Conselho de aprovar a demanda por um cessar-fogo, mas sua paciência está se esgotando. Sabendo disso, é provável que o governo israelense intensifique os ataques antes de iniciar uma inevitável desaceleração. A missão urgente para a diplomacia é buscar uma nova trégua para liberar mais reféns. Mas o Hamas tem feito exigências inaceitáveis para Israel: cessar-fogo e a libertação de todos os prisioneiros palestinos.

Focos de violência na região seguem voláteis. Crescem os temores de levante numa Cisjordânia pressionada por colonos israelenses. As hostilidades de milícias apoiadas pelo Irã no Líbano e Iêmen agravam o quadro.

O plano de médio e longo prazos de Israel para Gaza é uma incógnita. Três arranjos têm sido aventados: um prolongamento indefinido das forças de Israel por terra; a criação de uma força multinacional incluindo Estados árabes; ou o restabelecimento da Autoridade Palestina. Publicamente, o primeiro, e mais provável a médio prazo, sofre resistência nos EUA; os dois últimos são tratados com cautela pelos países árabes e a Autoridade Palestina – ambos são rechaçados por Israel.

Há um vácuo de autoridades interessadas na paz dos dois lados. Mesmo que Benjamim Netanyahu caia, a posição das alternativas mais prováveis não é muito diferente: uma manutenção coercitiva do status quo. Do lado palestino, há pessoas e lideranças interessadas num caminho novo. Mas sua capacidade de mobilização foi erodida por anos de tirania: a violenta do Hamas em Gaza e a corrupta da Autoridade Palestina na Cisjordânia.

A comunidade internacional precisaria moderar os dois povos, pressionar Israel a aceitar que o status quo é insustentável e garantir a incorporação da sociedade palestina num processo de construção de novos caminhos. Mas, olhando para os países com mais alavancagem, os EUA e os árabes, é incerto até onde há clareza e disposição sobre isso.

Em resumo, a atuação da ONU deve aliviar a crise humanitária já. A intensidade do conflito armado deve ser reduzida proximamente, mas antes deve piorar. Quanto ao processo político de conciliação, é incerto como, quando e, logo, se será viabilizado. A dura verdade é que as “condições para uma cessação sustentável das hostilidades” existem em teoria, mas não estão visíveis no horizonte.

Por um mundo mais solidário e justo

Correio Braziliense

Enquanto parte da população passará esta noite de Natal com a mesa farta, milhões de pessoas estarão transitando pelas ruas, sem abrigo, num frio extremo ou num calor infernal, em busca de algo para comer, revirando lixos ou estendendo a mão em busca de ajuda

A Declaração Universal dos Direitos Humanos completou 75 anos no último 10 de dezembro, mas há pouco a comemorar neste momento, em que o mundo vê as desigualdades sociais se acentuarem, com guerras espalhadas por vários países e a intolerância predominando. Enquanto parte da população passará esta noite de Natal com a mesa farta, milhões de pessoas estarão transitando pelas ruas, sem abrigo, num frio extremo ou num calor infernal, em busca de algo para comer, revirando lixos ou estendendo a mão em busca de ajuda. Não se trata de um fenômeno de países pobres ou em desenvolvimento, como o Brasil. É uma ferida aberta mesmo nas economias mais desenvolvidas, que não têm sabido lidar com políticas inclusivas efetivas.

Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontam que, no Brasil, há quase 300 mil pessoas em situação de rua, um recorde. Essa situação se agravou depois da pandemia do novo coronavírus, sem que os governos reagissem com a rapidez necessária para conter esse quadro desolador. Nos Estados Unidos, a maior economia do planeta, o número de sem-tetos, de 653 mil, é o maior desde que as estatísticas oficiais começaram a ser feitas, em 2007. Tal contingente representa aumento de 12% em relação a 2022, ou seja, mais 70 mil pessoas ficaram sem abrigo em apenas um ano, muitas delas passando por esse martírio pela primeira vez na vida.

Na Europa, onde a política de bem-estar social implantada depois da Segunda Guerra Mundial conseguiu reduzir significativamente o fosso que separa ricos e pobres, a situação também é alarmante. Mais de 700 mil pessoas não têm onde morar. Nos países ibéricos, a gravidade do problema está escancarada. Portugal, com quase 11 mil cidadãos vivendo nas ruas, sendo muitos estrangeiros, teme ver a miséria explodir. Não sem razão. Esse exército de sem-teto cresceu 117% em quatro anos. Na Espanha, as estatísticas indicam cerca de 30 mil pessoas em situação de rua, um salto de 25% ante 2012. Itália e Grécia seguem na mesma direção, com o problema agravado por uma crise migratória.

Em meio a esse cenário devastador, em que a dignidade humana inexiste, há um fenômeno recente que amplia os desafios de governos e sociedade civil para proteger a população mais vulnerável: os elevados preços dos imóveis. Na Europa e nos Estados Unidos, principalmente, os preços dos aluguéis atingiram níveis inaceitáveis. Famílias inteiras, muitas com crianças, estão sendo despejadas por não terem renda suficiente para bancar uma moradia digna. As grandes cidades vivem um processo de gentrificação, em que áreas populares estão sendo ocupadas por pessoas de mais alta renda, expulsando moradores locais. O turismo de massa reforça esse processo e acende o sinal de alerta.

O governo brasileiro lançou, recentemente, o programa Ruas Visíveis, com investimentos previstos de R$ 1 bilhão, para tentar minimizar a penúria de quem não tem onde morar. Mas é preciso mais, muito mais. Em todas as grandes cidades, que concentram o grosso dos sem-abrigo, há centenas, milhares de prédios abandonados que poderiam ser transformados em moradias. O engajamento de governadores e prefeitos num movimento como esse certamente tornaria as cidades mais amigáveis e, sobretudo, tiraria muitas pessoas da miséria absoluta, à qual elas parecem estar condenadas. Nesse tipo de ação não deve imperar a ideologia, sob o risco de prevalecer o fracasso.

O Natal deste ano será o primeiro depois de, efetivamente, o planeta ter superado a pandemia da covid-19. Que os aprendizados dos últimos anos sirvam para a construção de um mundo melhor, de mais compreensão e menos ódio, de mais solidariedade em vez do individualismo, de mais amor ao próximo. A complexidade do quadro atual exige reflexão e foco no que realmente importa, em especial, para a população mais desassistida. Todos têm o direito a uma vida digna, e cabe a cada um construir um futuro de oportunidades, de paz e sem miséria, com preservação ambiental e avanços da ciência. Que assim seja. Feliz Natal!

 

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