Folha de S. Paulo
Evitar abusos e responsabilizar governantes
são valores democráticos em conflito
A explicação canônica para o dilema das
repúblicas independentes da América
Latina no século 19 era que tinham que escolher entre tirania e
anarquia. Escolheram a primeira. Na Bolívia,
em 1826, Simon Bolívar sustentou que "um presidente perpétuo, com o direito de escolher seu sucessor, é a
mais sublime inspiração para uma ordem republicana".
Só mais tarde o dilema assumirá um novo
conteúdo: tirania ou democracia. A ideia de limites aos mandatos de presidentes
é parte do objetivo de assegurar a alternância de poder e impedir presidentes de se perpetuarem no cargo.
Presidentes que buscam reeleição foram vitoriosos 70% das vezes entre 1788 e 2008, em uma base de dados exaustiva de 2.230 casos. Na América Latina, do final dos anos 70 a 2017, os titulares dos cargos buscaram reeleição 27 vezes, e só perderam em 3 delas. A vantagem do incumbente é clara. O potencial de abuso de poder é alto.
Mas os limites minam um componente essencial
da democracia: a responsabilização dos governantes. As eleições têm o propósito
de premiar ou punir o desempenho. Assim, são dois valores democráticos
essenciais em conflito, e a solução não é óbvia.
Os federalistas ao inventarem o
presidencialismo moderno não fixaram limites para a reeleição. A limitação veio
por autocontenção: George Washington declinou de continuar no poder, gerando
uma convenção não escrita de apenas uma reeleição. Só após sua violação por
Roosevelt foi aprovada emenda constitucional (1951) nesse sentido.
Nos últimos 30 anos, 60 países na América
Latina e África impuseram limites. Atualmente há limitações de mandatos em 35
Constituições de países africanos; apenas em 4 eles não existem, e em 28 o
limite é uma reeleição. Na América Latina, há limites em 15, mas não em 4; em
11 deles, o limite é um mandato (com ou sem possibilidade de reeleição não
consecutiva).
A efetividade dos limites depende do sistema
partidário, da força da oposição, da robustez do poder judiciário e da
sociedade civil. A busca da permanência no poder —violando as vedações quantos
aos limites constitucionais— tem sido o objetivo das experiências populistas
autoritárias recentes. O sonho bolivariano quase se realiza, na própria
Bolívia, quando Evo Morales tentou
se reeleger para um quarto mandato mesmo após ter sido derrotado em plebiscito.
A discussão dos limites aos mandatos, no
entanto, não ocorre em um vazio de interesses. E tem se prestado a propósitos
dispares. É o que nos lembra o caso de Porfirio Díaz, no México,
que ascendeu ao poder bradando a bandeira dos limites para se perpetuar no
poder por 27 anos. A questão "a quem interessa alterar os limites?"
merece análise específica.
*Professor da Universidade Federal de
Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)
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