sábado, 29 de março de 2025

Trump e os capitais em movimento - Luiz Gonzaga Belluzzo

Nas mídias, a enésima temporada da série sobre a construção do dólar como moeda reserva

Exercendo suas peripécias peripatéticas, Donald Trump sugeriu a taxação dos movimentos de capitais. Controles de capitais são apresentados na visão liberal-dominante como uma apostasia que ameaça o sistema monetário-financeiro internacional.

A ideia de Trump está agasalhada nos escaninhos do Make America ­Great Again. Há tempos, os Estados Unidos padecem as dores de um imponente déficit na conta de comércio “financiada” por parrudos ingressos de capitais. Os capitais em movimento buscam os confortos dos mercados financeiros americanos salvaguardados pelos títulos públicos americanos denominados na moeda de reserva.

Trump e seus assessores vislumbram uma correção do déficit comercial ao promover uma desvalorização do dólar que, dizem eles, deve corrigir a perda de “competitividade” americana e conter a destruição dos empregos mais qualificados na indústria de Tio Sam.

Aqui cabem divagações históricas a respeito das peripécias peripatéticas do dólar como moeda de reserva.

O sistema monetário internacional desenhado em Bretton Woods nos idos de 1944 almejava a constituição de um conjunto de regras destinado a prevenir a instabilidade que sacudiu a economia mundial nos anos 20 e 30 do século XX. As novas regras determinavam a conversibilidade da moeda de reserva à razão de 35 dólares por onça troy; adoção de taxas de câmbio fixas, mas ajustáveis; limitada mobilidade de capitais; cobertura de déficits em transações correntes atendida por uma instituição pública multilateral.

Câmbio e juros, nesse sistema, eram preços-âncora, cuja relativa estabilidade e previsibilidade eram vistas como essenciais para a formação das expectativas dos possuidores de riqueza envolvidos nas decisões de produção e investimento. Este “modo de regulação” tinha um duplo objetivo: construir um sistema monetário realmente internacional, favorável à expansão do comércio entre as nações e impedir que condicionantes ou choques externos passassem a comandar a política econômica doméstica, definindo a trajetória das economias nacionais.

Os controles cambiais eram prática corrente: as políticas monetárias e fiscais, bem como os sistemas financeiros nacionais, deveriam estar voltadas para a sustentação de taxas elevadas de crescimento econômico e para a maximização do bem-estar dos cidadãos. Essa etapa terminou em 1971 na decretação unilateral do fim da ancoragem do dólar no ouro à razão de 35 dólares por onça troy.

A estagflação dos anos 70 foi marcada por fortes instabilidades cambiais e monetárias. A continuada desvalorização do dólar foi acompanhada por taxas de inflação de dois dígitos nos Estados Unidos, assim como na Inglaterra e na Itália. O bom comportamento dos preços na Alemanha e no Japão valorizou o marco e o iene e suscitou a redução dos haveres em dólar na composição das reservas internacionais.

A partir de 1973, os regimes cambiais caminharam na direção de um sistema de taxas flutuantes. Tratava-se, diziam, de escapar das aporias da “trindade impossível”, ou seja, da convivência entre taxas fixas, mobilidade de capitais e autonomia da política monetária doméstica.

A elevação da taxa de juro deflagrada por Paul Volcker em 1979 deu impulso ao fortalecimento do dólar. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos e o FMI estimularam a liberalização financeira urbi et orbi. As palavras de ordem do novo consenso proclamavam as virtudes da abertura comercial, da liberalização das contas de capital, da desregulamentação e da “descompressão” dos sistemas financeiros domésticos.

Países como o Brasil promoveram a abertura financeira, funesta para os projetos de desenvolvimento

Um após outro, os países de moeda não conversível alinhados aos Estados Unidos rezaram pela nova cartilha e promoveram a abertura financeira, com consequências indesejáveis para os projetos nacionais de desenvolvimento.

No início dos anos 80 do século passado, eclodiu a crise da dívida externa dos países em desenvolvimento – aquela que o sábio Walter Wriston, então presidente do Citi, garantia que não podia acontecer – foi deflagrada pela elevação dos juros, decidida por Paul Volcker em 1979. O FMI e o governo Reagan salvaram os credores de maior porte. Deixaram a quebradeira para a periferia imprudente. Não conseguiram, no entanto, evitar, em seu próprio quintal, a falência do banco Continental Illinois e de mais 43 bancos americanos.

Depois do choque de Paul Volcker, a valorização do dólar suscitou uma sucessão de acordos entre os Estados Unidos e países beneficiados por aumentos significativos de suas exportações. O Acordo do ­Louvre, firmado em 1985, destinado a mitigar a valorização do dólar e conter o avanço das exportações japonesas, fez o País do Sol Nascente engolir a valorização do iene, a famosa endaka. A partir de então o Japão experimentou 15 anos de estagnação.

Ao mesmo tempo, as empresas manufatureiras americanas e, um tanto mais tarde, as europeias, se deslocaram para regiões onde o custo unitário da mão de obra é sensivelmente mais baixo. A China construiu sua expansão manufatureira nos regaços do dólar forte.

Os programas de crescimento da China estavam amparados na administração cuidadosa da taxa de câmbio, o que incitou a rápida criação de nova capacidade produtiva na indústria manufatureira, com ganhos de produtividade, acirrando a concorrência global entre os produtores de manufaturas.

As políticas de comércio exterior da China e dos emergentes asiáticos em processo de “perseguição” industrial combinam saldos comerciais alentados, acumulação de reservas e políticas de defesa do câmbio.

Na esteira da valorização do dólar os Estados Unidos, beneficiados pela capacidade de atração de seu mercado financeiro amplo e profundo, absorveram um volume de capitais externos muito superior aos déficits em conta corrente.

Peço licença para encerrar essas mal traçadas com a enumeração dos fatores que levaram a economia global ao estágio atual. A caminhada geoeconômica foi comandada pelas relações entre quatro processos complementares: 1) a liberalização financeira que, desde os anos 80, submeteu os países às peripécias da movimentação desimpedida do capital–dinheiro; 2) o movimento da grande empresa manufatureira transnacional para ocupar espaços “competitivos”; 3) a concentração do capital financeiro sob o comando dos oligopólios financeiros; 4) as dificuldades dos países em desenvolvimento açoitados pelas instabilidades das taxas de câmbio. 

Publicado na edição n° 1355 de CartaCapital, em 02 de abril de 2025.

 

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