Nas mídias, a enésima temporada da série sobre a construção do dólar como moeda reserva
Exercendo suas peripécias
peripatéticas, Donald Trump sugeriu
a taxação dos
movimentos de capitais. Controles de capitais são apresentados na
visão liberal-dominante como uma apostasia que ameaça o sistema
monetário-financeiro internacional.
A ideia de Trump está agasalhada nos
escaninhos do Make America Great Again. Há tempos, os Estados Unidos padecem
as dores de um imponente déficit na conta de comércio “financiada” por parrudos
ingressos de capitais. Os capitais em movimento buscam os confortos dos
mercados financeiros americanos salvaguardados pelos títulos públicos
americanos denominados na moeda de reserva.
Trump e seus assessores vislumbram uma
correção do déficit comercial ao promover uma desvalorização do dólar que,
dizem eles, deve corrigir a perda de “competitividade” americana e conter a
destruição dos empregos mais qualificados na indústria de Tio Sam.
Aqui cabem divagações históricas a respeito das peripécias peripatéticas do dólar como moeda de reserva.
O sistema monetário internacional desenhado
em Bretton Woods nos idos de 1944 almejava a constituição de um conjunto de
regras destinado a prevenir a instabilidade que sacudiu a economia mundial nos
anos 20 e 30 do século XX. As novas regras determinavam a conversibilidade da
moeda de reserva à razão de 35 dólares por onça troy; adoção de taxas de câmbio
fixas, mas ajustáveis; limitada mobilidade de capitais; cobertura de déficits
em transações correntes atendida por uma instituição pública multilateral.
Câmbio e juros, nesse sistema, eram
preços-âncora, cuja relativa estabilidade e previsibilidade eram vistas como
essenciais para a formação das expectativas dos possuidores de riqueza
envolvidos nas decisões de produção e investimento. Este “modo de regulação”
tinha um duplo objetivo: construir um sistema monetário realmente
internacional, favorável à expansão do comércio entre as nações e impedir que
condicionantes ou choques externos passassem a comandar a política econômica
doméstica, definindo a trajetória das economias nacionais.
Os controles cambiais eram prática corrente:
as políticas monetárias e fiscais, bem como os sistemas financeiros nacionais,
deveriam estar voltadas para a sustentação de taxas elevadas de crescimento
econômico e para a maximização do bem-estar dos cidadãos. Essa etapa terminou
em 1971 na decretação unilateral do fim da ancoragem do dólar no ouro à razão
de 35 dólares por onça troy.
A estagflação dos anos 70 foi marcada por
fortes instabilidades cambiais e monetárias. A continuada desvalorização do
dólar foi acompanhada por taxas de inflação de dois dígitos nos Estados Unidos,
assim como na Inglaterra e na Itália. O bom comportamento dos preços na
Alemanha e no Japão valorizou o marco e o iene e suscitou a redução dos haveres
em dólar na composição das reservas internacionais.
A partir de 1973, os regimes cambiais
caminharam na direção de um sistema de taxas flutuantes. Tratava-se, diziam, de
escapar das aporias da “trindade impossível”, ou seja, da convivência entre
taxas fixas, mobilidade de capitais e autonomia da política monetária
doméstica.
A elevação da taxa de juro deflagrada por
Paul Volcker em 1979 deu impulso ao fortalecimento do dólar. Ao mesmo tempo, os
Estados Unidos e o FMI estimularam
a liberalização financeira urbi et orbi. As palavras de ordem do novo consenso
proclamavam as virtudes da abertura comercial, da liberalização das contas de
capital, da desregulamentação e da “descompressão” dos sistemas financeiros domésticos.
Países como o Brasil promoveram a abertura
financeira, funesta para os projetos de desenvolvimento
Um após outro, os países de moeda não
conversível alinhados aos Estados Unidos rezaram pela nova cartilha e
promoveram a abertura financeira, com consequências indesejáveis para os
projetos nacionais de desenvolvimento.
No início dos anos 80 do século passado,
eclodiu a crise da dívida externa dos países em desenvolvimento – aquela que o
sábio Walter Wriston, então presidente do Citi, garantia que não podia
acontecer – foi deflagrada pela elevação dos juros, decidida por Paul Volcker
em 1979. O FMI e o governo Reagan salvaram os credores de maior porte. Deixaram
a quebradeira para a periferia imprudente. Não conseguiram, no entanto, evitar,
em seu próprio quintal, a falência do banco Continental Illinois e de mais 43 bancos
americanos.
Depois do choque de Paul Volcker, a
valorização do dólar suscitou uma sucessão de acordos entre os Estados Unidos e
países beneficiados por aumentos significativos de suas exportações. O Acordo
do Louvre, firmado em 1985, destinado a mitigar a valorização do dólar e
conter o avanço das exportações japonesas, fez o País do Sol Nascente engolir a
valorização do iene, a famosa endaka. A partir de então o Japão experimentou 15
anos de estagnação.
Ao mesmo tempo, as empresas manufatureiras
americanas e, um tanto mais tarde, as europeias, se deslocaram para regiões
onde o custo unitário da mão de obra é sensivelmente mais baixo. A China
construiu sua expansão manufatureira nos regaços do dólar forte.
Os programas de crescimento da China estavam
amparados na administração cuidadosa da taxa de câmbio, o que incitou a rápida
criação de nova capacidade produtiva na indústria manufatureira, com ganhos de
produtividade, acirrando a concorrência global entre os produtores de
manufaturas.
As políticas de comércio exterior da China e
dos emergentes asiáticos em processo de “perseguição” industrial combinam
saldos comerciais alentados, acumulação de reservas e políticas de defesa do
câmbio.
Na esteira da valorização do dólar os Estados
Unidos, beneficiados pela capacidade de atração de seu mercado financeiro amplo
e profundo, absorveram um volume de capitais externos muito superior aos
déficits em conta corrente.
Peço licença para encerrar essas mal traçadas com a enumeração dos fatores que levaram a economia global ao estágio atual. A caminhada geoeconômica foi comandada pelas relações entre quatro processos complementares: 1) a liberalização financeira que, desde os anos 80, submeteu os países às peripécias da movimentação desimpedida do capital–dinheiro; 2) o movimento da grande empresa manufatureira transnacional para ocupar espaços “competitivos”; 3) a concentração do capital financeiro sob o comando dos oligopólios financeiros; 4) as dificuldades dos países em desenvolvimento açoitados pelas instabilidades das taxas de câmbio.
Publicado na edição n° 1355 de CartaCapital,
em 02 de abril de 2025.
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