quarta-feira, 16 de abril de 2025

Economia global em marcha à ré forçada - Márcio Garcia

Valor Econômico

Ironicamente, as medidas econômicas ineptas do novo governo Trump podem até colocar em risco a hegemonia do dólar como moeda de reserva internacional

A incerteza que se disseminou pelos Estados Unidos e pela economia mundial após a posse do novo governo foi ampliada em grande medida no “dia da liberação”, 2 de abril. Naquela bela tarde primaveril do Hemisfério Norte, o presidente Donald Trump fez o anúncio das novas tarifas, sobraçando uma placa com uma lista de países com as tarifas que teriam sido aplicadas às importações de bens oriundas dos EUA em 2024, e com as novas “tarifas recíprocas” que passariam a ser aplicadas às exportações de cada país.

Quando pouco depois foi divulgada a fórmula utilizada no cálculo das supostas tarifas que seriam cobradas dos EUA, a reação foi quase unânime. Não me lembro de ter visto nenhum economista minimamente respeitável defendendo seja a concepção da exótica fórmula seja a forma muito peculiar de sua implementação.

Apesar de maiores tarifas serem promessa de campanha, poucos acreditavam que seriam tão elevadas. Imediatamente, os mercados reagiram, sobretudo com uma grande queda na bolsa de valores dos EUA e ao redor do globo.

As idas e vindas que vêm ocorrendo desde então, em apenas duas semanas, com anúncios de reduções, adiamentos e isenções setoriais, frequentemente seguidos de desmentidos por diferentes membros do governo, têm contribuído ainda mais para amplificar a incerteza. É bem sabido que a incerteza inibe o crescimento econômico. Expansão pressupõe investimento, e este depende de previsibilidade das regras sob as quais as empresas operarão no futuro. Países nos quais as regras econômicas variam ao longo do tempo, como bem o sabemos, têm investimento e crescimento baixos.

É difícil imaginar que algum empresário esteja implementando novos projetos de investimento nos EUA em meio a tanta insegurança. Qual será a tarifa imposta a seus insumos, e, consequentemente qual será o preço do produto? Que tarifa será cobrada sobre importações competitivas? Qual será a tarifa que incidirá sobre as exportações, se houver retaliação? Não por outra razão, tornam-se cada vez mais frequentes previsões de queda do nível de atividade, ou mesmo de recessão nos EUA, com sérias implicações sobre o mundo.

O tarifaço e eventuais retaliações devem causar mais inflação e menos crescimento nos EUA e no mundo

Como diz o ditado, quando os EUA pegam um resfriado, o mundo pega pneumonia. E os efeitos das tarifas sobre os preços nem ainda ocorreram. Quando escrevo este artigo (15/4), grosso modo, vigem tarifas de 125% sobre produtos chineses (cerca de 14% das importações dos EUA) e 10% sobre todos os demais.

A persistirem as tarifas é inexorável o aumento da inflação. O timing e a dimensão do impacto inflacionário, contudo, não estão ainda claros. Dependerão, dentre outros fatores, do comportamento das empresas. Frente ao aumento das tarifas, os estoques existentes terão seus preços imediatamente majorados ou só quando forem renovados? Mas, independentemente do prazo, preços mais altos virão. E dado que baixar os preços foi uma das principais promessas de campanha, é difícil que os impactos inflacionários das tarifas não tragam repercussões políticas importantes.

Uma grave consequência do tarifaço foi o impacto negativo sobre os preços dos títulos públicos longos do Tesouro dos EUA, as Treasuries. Segundo o noticiário, tal impacto teria mesmo levado o governo a rever/adiar muitas das tarifas previamente anunciadas.

Impactos negativos sobre as bolsas já eram esperados, mas aparentemente o governo não antevia possíveis problemas no mercado de bonds. A queda do preço dos títulos públicos dos EUA se espraiou para o mercado de títulos privados, dificultando em muito a rolagem de dívidas de empresas consideradas sólidas.

A situação atual traz temores de que venha a se repetir o episódio ocorrido no início da pandemia, denominado de “dash for cash” (corrida para a liquidez), no qual instituições financeiras venderam enormes quantidades de Treasuries, derrubando seus preços e elevando significativamente as taxas de juros de longo prazo. Apenas no curto período entre março e maio de 2020, o Fed viu-se compelido a comprar cerca de US$ 1,6 trilhões para mitigar o agravamento da crise5.

Os problemas do mercado de títulos públicos nos EUA têm múltiplas causas. A primeira é que a dívida pública dos EUA é muito alta. A dívida pública federal detida pelo setor privado está quase em 100% do PIB, e exibe rápido crescimento, devido a elevados déficits públicos. Isso implica que o Tesouro tem de continuar vendendo grande quantidade de títulos.

A segunda causa é que grande parte dos Treasuries é detida por intermediários financeiros envolvidos em complexas estratégias financeiras, conhecidas como “basis trades”. Tais estratégias de arbitragem são muito sensíveis a variações inesperadas nos preços dos ativos, como as causadas pelo surgimento da covid ou pelo tarifaço. No caso atual, há também o agravante é que boa parte dos Treasuries é detido por governos de outros países, sobretudo a China, que podem estar reestruturando suas aplicações em detrimento dos Treasuries. O resultado final é que muito rapidamente as instituições financeiras vêm a mercado tentando vender grandes quantidades de Treasuries. E, à medida que seus preços caem, o movimento se agrava, originando ainda maior pressão vendedora.

Em resumo, o tarifaço e suas implicações, como as eventuais retaliações, devem causar mais inflação e menos crescimento, nos EUA e no mundo. Ainda pior, podem vir a deflagrar grave crise financeira internacional. Ironicamente, as medidas econômicas ineptas do novo governo podem até colocar em risco a hegemonia do dólar como moeda de reserva internacional.

 

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