CartaCapital
A cruzada para regulamentar as fintechs tem
dimensão internacional
A principal instituição financeira do País, segundo os usuários, não é o Itaú, o Bradesco ou o Banco do Brasil, inconfundíveis e tradicionais, com suas logomarcas e cores próprias em cada esquina do Brasil, mas o Nubank, fintech criada em 2013 que não tem agências físicas, não capta depósitos e opera totalmente online por meio de aplicativos e da internet. É o que apurou um levantamento da empresa de pesquisas de mercado Okiar. O Nubank é preferido por 21,7% da população, o Itaú por uma parcela de 14,2% e o Bradesco, por 12%. Em outubro, seu valor de mercado, de 77,7 bilhões de dólares, superou, pela primeira vez, aquele da Petrobras, maior estatal brasileira e detentora do direito à exploração de milhões de barris de petróleo. PicPay, PagSeguro, XP Investimentos, Mercado Pago e C6 Bank são outros integrantes do que poderia ser chamado “Lado A” das fintechs. O lado B inclui o 2Go Bank e o InvBank, citados pela Polícia Federal como suspeitos de utilização pelo PCC para lavagem de dinheiro, o T10 Bank, usado em esquemas de criptomoedas em conexão com o crime organizado, e o BK Bank, braço financeiro do Primeiro Comando da Capital, entre várias instituições menos conhecidas.
Os lados A e B encontram-se tão distantes um
do outro quanto as avenidas Faria Lima e Sapopemba, mas pertencem ao mesmo
sistema financeiro, assim como as duas vias integram a cidade de São Paulo. Mas
por que as fintechs passaram a ser usadas com tanta desenvoltura por
criminosos? Há alguns motivos: regulação frouxa ou inexistente, dificuldade de
rastreamento das transações e o uso desbragado de operações dissimuladas, entre
elas as chamadas “contas-bolsão”, subterfúgio que permite esconder os donos do
dinheiro. Essa flexibilidade, digamos assim, amparada no avanço tecnológico,
transformou as instituições hitech na principal e mais eficiente alternativa
aos bancos tradicionais para quem lava dinheiro e quer esconder o patrimônio. A
lavanderia global tem novos sócios, está sob nova administração, e novos meios
de entregar o serviço à clientela.
No Brasil, o Centrão e o bolsonarismo tentam
limitar o poder de fiscalização do Estado
A existência de uma enorme zona cinzenta na
qual operam as fintechs, a despeito do grupo de empreendimentos que aposta na
idoneidade, deve-se, em grande medida, no caso brasileiro em particular, ao
sucateamento das agências e atividades regulatórias, um dos entulhos criados
pela criminalização do gasto público e da política fiscal pelo neoliberalismo,
fato bem documentado em estudos de economistas. O uso crescente dessas
instituições pelo crime organizado tem exigido um aperto fiscalizatório e
tributário por iniciativa do Banco Central e do Ministério da Fazenda, mas o
esforço encontra forte resistência no Congresso, dominado pelo Centrão, em
conluio com o bolsonarismo. O Projeto de Lei que aumenta a tributação das
bets e fintechs, gongado recentemente, continua a enfrentar resistências
significativas no Parlamento, sob a desculpa esfarrapada de que os brasileiros
não aguentam mais pagar impostos. Senadores avisaram o ministro Fernando Haddad
ser alta a probabilidade de a medida, redesenhada pelo Executivo, ser novamente
barrada.
O flagrante de fintechs a lavar dinheiro do
crime na bem-sucedida Operação Carbono Oculto, da Polícia Federal, em plena
Avenida Faria Lima, coração das finanças privadas nativas, alarmou o governo e
ao menos três medidas foram tomadas. O BC aumentou as exigências de capital
mínimo para as instituições, de 1 milhão para 9,2 milhões de reais, e decretou
a extinção das “contas-bolsão”, usadas por facções. A Receita, por sua vez,
anunciou a exigência de compartilhamento de informações a respeito das contas
dos clientes, como se cobra das instituições tradicionais. Das cerca de 2 mil
empresas em operação no mercado, estima-se que ao menos 500 teriam dificuldades
para cumprir a regra de aumento de capital, o que tende a estimular um movimento
de fusões e aquisições no setor.
Segundo Edemilson Paraná, professor de
Economia Política na LUT University, da Finlândia, as medidas anunciadas pelas
autoridades brasileiras representam um passo importante e necessário, mas não
fecham todos os dutos. É preciso, defende, um esforço coordenado de regulação e
controle, com supervisão ativa e colaborativa de diferentes órgãos e agências.
Além de ampliar o escopo regulatório para alcançar as instituições financeiras
não bancárias, ressalta Paraná, é preciso treinar e aparelhar adequadamente os
órgãos de supervisão e controle, que hoje se encontram limitados em termos de
infraestrutura de trabalho, particularmente de pessoal. É fundamental que esse
esforço de supervisão, controle e até de coação seja articulado em termos de
compartilhamento e coordenação de informações e ações entre os diferentes
atores, frisa o economista.
“As medidas fecham algumas brechas, mas não
todas, porque a questão principal são as normas de constituição de fundos de
investimento pela Comissão de Valores Mobiliários. O Banco Central cobre uma
parte do sistema, mas o principal está com a CVM. A identificação do CPF pela
Receita é extremamente importante”, destaca Manfred Back, professor de Economia
e ex-trader de renda variável. Para fechar ainda mais as válvulas de escape
para a prática de crimes, prossegue Back, é necessária a unificação da
fiscalização pelo BC. Hoje, só as fintechs que oferecem crédito dependem de uma
aprovação da autoridade monetária. Com as medidas recentes, o problema não
acaba, mas diminui. A questão maior, conclui o professor, é ética, e de livre
iniciativa, de instituições aceitarem dinheiro sem perguntar a origem. “O
problema a solucionar é o seguinte: quem fiscalizará os compliances?”
O FMI alerta para os riscos de uma crise
sistêmica semelhante àquela de 2008
Para a advogada Lucía Ferrés, sócia da Ferrés
Advogados, a CVM adota uma estratégia regulatória de comando e controle, o que
demanda fiscalização intensiva e punição de todas as infrações apuradas. A
escassez de recursos orçamentários frequentemente alegada pela autarquia
compromete, entretanto, sua capacidade de executá-la. “O resultado inevitável é
o comprometimento da supervisão preventiva eficaz no mercado, levando a uma
atuação mais reativa, que responde a problemas estabelecidos em vez de
antecipá-los. Uma fiscalização preventiva, ativa e abrangente é fundamental, e
poderia, em tese, ter detectado vários esquemas fraudulentos como os
investigados pela Operação Carbono Oculto. O que se viu ali e em inúmeros casos
foi fiscalização muito aquém do necessário e investigação e reação tardia da
CVM. O modelo regulatório atual da autarquia precisa ser debatido. É uma
abordagem teórica que desencadeia resultados práticos”, sublinha Ferrés, autora
de um livro sobre a regulação do mercado de valores mobiliários. CartaCapital
perguntou à Comissão sobre a grave vulnerabilidade do sistema regulatório
vigente no mercado de capitais, evidenciada nos crimes apontados pela Carbono
Oculto, o modelo obsoleto e a falta de capacidade financeira. Recebeu uma
resposta lacônica: “A CVM acompanha e analisa informações e movimentações
relacionadas ao mercado de valores mobiliários, tomando medidas cabíveis,
sempre que necessário. A Autarquia não comenta casos específicos”.
As normas editadas pelo Conselho Monetário
Nacional e pelo BC vão na direção correta ao ampliar as exigências prudenciais
e tratar pontos de fragilidade que favoreciam a utilização das fintechs e
demais instituições reguladas para lavagem de dinheiro e outras atividades
ilícitas, destaca Marcel Mascarenhas, sócio do Warde Advogados e
ex-Procurador-Geral-Adjunto do Banco Central. Ainda há, porém, desafios
relevantes para a prevenção e o combate à criminalidade no setor financeiro,
que exigem fiscalização contínua, articulação institucional e
inteligência. Um ponto de preocupação, sublinha Mascarenhas, é a
insuficiência do quadro de pessoal do Banco Central, no menor nível histórico,
e a ausência de recursos, ou mesmo de autonomia orçamentária, para fazer frente
ao dinamismo do crime organizado, que parece estar sempre um passo à frente da
ação estatal. Uma demanda recorrente no mercado, prossegue o advogado, é o
acesso rápido a informações sobre operações suspeitas. Isto é, quando um banco
ou fintech identifica operação suspeita com algum cliente e comunica os
indícios ao BC ou ao Conselho de Controle da Atividade Financeira, a informação
nem sempre chega às demais instituições do mercado.
O BC fez ajustes na regulação do Pix e de outros serviços de pagamento para
possibilitar compartilhamento de alertas entre as instituições reguladas. “A
Resolução Conjunta CMN/BCB nº 6, de 2023, foi um notável esforço nesse sentido.
O Regulamento do Pix também foi atualizado algumas vezes para possibilitar
acesso mais amplo aos alertas de segurança relacionados a transações
suspeitas”, diz Mascarenhas.
A expansão das fintechs, a falta de regulação
e seu uso pela criminalidade preocupam além das fronteiras brasileiras. Não
são poucos os alertas de elevação significativa do risco de contaminação do
conjunto do sistema financeiro, cada vez mais interligado, fator explosivo
diante da probabilidade considerada elevada de uma nova crise financeira
global. O mundo precisa ficar de olho em fintechs, fundos hedge,
seguradoras, fundos de pensão, fundos de investimento e outras instituições não
bancárias, menos supervisionadas, mas detentoras de metade dos ativos
financeiros mundiais e do volume diário no mercado cambial, anotou o Fundo
Monetário Internacional em alerta emitido em meados deste mês sobre novos
riscos para a estabilidade financeira do planeta. “Os formuladores de políticas
devem fortalecer a supervisão dos intermediários financeiros não bancários,
cuja crescente interconexão com os bancos pode exacerbar choques adversos”,
afirma o economista Tobias Adrian, conselheiro e diretor do Departamento de
Mercados Monetários e de Capitais do FMI. Adrian lidera o trabalho da
instituição em supervisão e capacitação, políticas monetárias e
macroprudenciais, regulação financeira, gestão da dívida e mercados de
capitais. Foi vice-presidente sênior do Federal Reserve de Nova York e lecionou
nas universidades de Princeton e de Nova York.
A valorização excessiva de ativos e as
pressões nos principais mercados de títulos soberanos, prossegue Adrian, mantêm
elevados os riscos de instabilidade em meio à crescente incerteza econômica. As
vulnerabilidades podem ser amplificadas pelo crescimento das instituições
financeiras não bancárias, devido à sua importância cada vez maior como
formadoras de mercado, provedoras de liquidez e intermediárias nos mercados de
crédito privado, imobiliário e de criptomoedas. “Conforme detalhamos em nosso
novo Relatório de Estabilidade Financeira Global, os testes de estresse mostram
que as vulnerabilidades desses intermediários não bancários podem transmitir-se
rapidamente ao sistema bancário central, amplificando os choques e complicando
o gerenciamento de crises”, acrescenta o economista.
As fintechs substituíram os bancos
tradicionais nos esquemas de lavagem de dinheiro
Seguradoras, fundos de pensão e fundos de
investimento, apesar de não captarem depósitos, desempenham um papel cada vez
mais importante nos mercados globais. Essa mudança na intermediação financeira
exige uma abordagem mais abrangente e voltada para o futuro na avaliação de
riscos. Ao contrário dos bancos, as instituições não bancárias, em sua maioria,
operam sob uma regulamentação prudencial mais branda. Além disso, muitas
proveem informações limitadas sobre ativos, alavancagem e liquidez, o que
dificulta a detecção de vulnerabilidades. Elas podem facilitar as atividades do
mercado de capitais e canalizar crédito para tomadores, prossegue Adrian, mas a
sua expansão também “aumenta a tomada de riscos e a interconexão no sistema
financeiro”. Nos Estados Unidos e na Zona do Euro, diz o economista do FMI,
muitos bancos têm exposições a instituições não bancárias que excedem seu
capital de Nível 1, reserva crucial que permite a uma instituição absorver
perdas e manter-se estável em tempos de crise. Da mesma forma, as fintechs e
assemelhadas agora respondem por metade do volume diário de negócios no mercado
cambial, mais que o dobro de sua participação há 25 anos, como demonstramos no
Relatório de Estabilidade Financeira Global.
Fontes do governo brasileiro confirmam um
crescimento exponencial das chamadas NBFI, as Non-Bank Financial Intermediaries
Institutions. Ou seja, instituições que não são bancos, mas fazem intermediação
financeira. A participação dos hedge funds nos leilões do Tesouro, seja o
canadense, o norte-americano ou o inglês, expandiu-se vertiginosamente. A
liquidez hoje está muito mais nesses empreendimentos do que nos bancos, apontam
relatórios internacionais. Muitas vezes um Banco Central ou autoriza e não
regula e supervisiona adequadamente, ou nem autoriza, nem regula, nem
supervisiona essas instituições. O BC brasileiro não tem nenhum poder sobre os hedge
funds atualmente. E a maior parte dos títulos públicos do País, que é o que
realmente importa para as oscilações da curva de juros, está nas mãos deles.
Há uma discussão crucial nessa área, não só
no Brasil. O Banco Central da Inglaterra, após o fracasso do plano econômico da
ex-primeira-ministra conservadora Liz Truss, criou infraestruturas para injetar
liquidez nesses fundos, casos eles venham a enfrentar problemas. O motivo? Eles
ficaram grandes demais para quebrar. Ou seja, oferecem um risco nada desprezível
ao sistema financeiro da ilha. Ao contrário dos BCs usuais como concebidos
originalmente, onde a infraestrutura para prover liquidez só pode ser acionada
por bancos, na Inglaterra atual, a função abrange fundos de pensão e
seguradoras. O Fed, Banco Central dos Estados Unidos, também criou uma repo
facility, mecanismo de recompra ao alcance de autoridades monetárias
estrangeiras, para dar liquidez aos hedge funds. O Banco do Canadá aumentou,
por sua vez, a abrangência da infraestrutura para prover liquidez. O
Financial Stability Board, instituição da qual o Brasil faz parte, e os
reguladores de mercado alemães têm afirmado que não pretendem apenas dar
liquidez para instituições não bancárias quando preciso, mas supervisioná-las e
regulá-las.
Economistas do setor financeiro e o próprio
BC nacional defendem uma proposta de emenda constitucional que permita o
aumento do perímetro regulatório para alcançar esse tipo de empreendimento e
reduzir o risco do sistema, em sintonia com as tendências internacionais mais
avançadas. Uma complicação adicional é a conexão direta entre as fintechs
de pagamento e os criptoativos, principalmente stable coins vinculados ao
dólar, com status formal elevado por decisão do governo Trump.
“Os sinais de alerta estão por toda parte e
são perturbadoramente familiares. Os preços dos ativos estão subindo muito além
do que pode ser justificado pelos fundamentos subjacentes, enquanto as
instituições financeiras não bancárias agora desempenham um papel semelhante ao
dos ‘bancos paralelos’ na crise financeira de 2008. Ao mesmo tempo, a ascensão
das stable coins levou os bancos regulamentados para o mundo opaco
das criptomoedas, e vastas somas de capital especulativo inundam as ações de
Inteligência Artificial, impulsionadas mais pela euforia do que por retornos
comprovados”, elencou em artigo recente a economista Jayati Ghosh, professora
na Universidade de Massachusetts Amherst e copresidente da Comissão
Independente para a Reforma da Tributação Corporativa Internacional. “O
desmantelamento das já frágeis regulamentações financeiras sob o governo do
presidente Donald Trump só agravou a ameaça.” Crime e crise, neste caso, andam
perigosamente juntos. •
Publicado na edição n° 1388 de CartaCapital, em 19 de novembro de 2025.

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