Correio Braziliense
O governo Boric chega
enfraquecido ao fim do mandato. Sua agenda de reformas — tributária,
previdenciária e trabalhista — esbarrou no Congresso conservador
Como aconteceu com as últimas eleições na
Bolívia, no Equador e na Argentina, o Chile vota neste domingo polarizado entre
a esquerda e a ultradireita. Jeannette Jara (Partido Comunista do Chile),
apoiada pelo presidente Gabriel Boric, e José Antonio Kast (Partido Republicano,
pinochetista), lideram a disputa.
Durante décadas, o país alternou presidências de esquerda e de direita moderadas, tornando-se um “case” de crescimento alto, estabilidade macroeconômica, redução da pobreza e instituições sólidas. Governos de centro-esquerda e centro-direita partilharam o mesmo “sonho chileno”: transformar o país em desenvolvido até 2020. Esse ciclo ruiu com o tsunami social de 2019, que expôs os limites do modelo: desigualdade social, serviços públicos precários, sistema de pensões privatizado e endividamento das famílias.
A resposta institucional foi ousada: um
acordo para redigir uma nova Constituição, aprovado por 78% dos eleitores em
2020. Mas o processo terminou em frustração. Em 2022, o texto progressista da
Convenção Constitucional foi rejeitado por 62%. Em 2023, caiu também o projeto
conservador elaborado por um conselho dominado pela direita. O país permaneceu,
assim, com a Constituição herdada da ditadura de Pinochet, reformada, porém
incapaz de simbolizar um novo pacto social.
O eleitorado chileno está cansado de
promessas de “refundação”, desconfiado das elites e preso ao que especialistas
classificam como “crise de países de renda média”: expectativas muito altas,
crescimento fraco e um sistema político fragmentado, incapaz de produzir
reformas estruturais. Nada muito diferente do que ocorre no Brasil. Nesse
vazio, um tema ocupou o centro da campanha: segurança pública.
A preocupação com criminalidade, assaltos,
roubos e crime organizado cresceu, sobretudo entre os mais pobres. A presença
de gangues estrangeiras – com destaque para redes vinculadas à migração
venezuelana – e casos de sequestro e homicídios violentos alimentaram a
sensação de que “o país não é mais o mesmo”.
É esse Chile amedrontado que escuta José
Antonio Kast, cuja campanha promete um “governo de emergência”, militarização
de fronteiras, barreiras físicas no Norte e deportações em massa. Kast
inspira-se explicitamente em Trump, Bukele e Orbán, combinando discurso de lei
e ordem com conservadorismo moral. Ele é o candidato mais competitivo em
cenários de segundo turno. Por quê?
É que o governo Boric chega enfraquecido ao
fim do mandato. Sua agenda de reformas – tributária, previdenciária e
trabalhista – esbarrou no Congresso conservador e fortalecido após o fracasso constitucional.
A deterioração da segurança e a percepção de avanço do crime organizado
reduziram sua popularidade para cerca de 30%. O pleito deste domingo funciona
como um referendo informal sobre Boric.
Duas agendas
Kast explora isso de forma incessante: “Jara
é Boric e Boric é Jara”. Além disso, parte da antiga centro-esquerda da
Concertación nunca aceitou a hegemonia do novo eixo Frente Amplio-Partido
Comunista, consolidado por Boric. A candidatura de uma militante comunista
aprofundou essa divisão e expôs fissuras entre moderados e a nova esquerda.
Pomo da discórdia, Jeanette Jara, 51 anos,
advogada, ex-ministra do Trabalho e de origem popular, é a primeira postulante
comunista competitiva desde a redemocratização. Responsável pelo aumento
histórico do salário-mínimo para 500 mil pesos, pela reforma das pensões e pela
jornada de 40 horas, construiu um discurso voltado aos trabalhadores de baixa e
média renda.
Defende um “salário vital” de 750 mil pesos,
controle de preços de medicamentos, creche universal, mais investimento em
saúde e uma Empresa Nacional do Lítio. Ao mesmo tempo, adotou tom pragmático:
compromisso com responsabilidade fiscal, distância de regimes autoritários de
esquerda e prioridade para a segurança com foco em investigação financeira e
policiamento de proximidade.
José Antonio Kast, 59 anos, advogado, líder
do Partido Republicano, disputa sua terceira eleição presidencial. Rejeita
aborto em qualquer circunstância, casamento igualitário, avanços de gênero e
defende políticas migratórias e penais extremamente rígidas. Não esconde sua
admiração pelo ditador Augusto Pinochet.
Na economia, propõe cortes de gastos, redução
de impostos e ampliação de parcerias público-privadas. Seu núcleo eleitoral é
composto por homens, jovens de baixa renda, moradores de áreas periféricas e
segmentos evangélicos, todos impactados pela sensação de desordem e perda de
controle estatal.
As últimas pesquisas (AtlasIntel) mostram
Jara à frente no primeiro turno, com 32,7%, seguida por Kast (20,1%), Evelyn
Matthei (13,8%), Johannes Kaiser (13,4%) e Franco Parisi (13,2%). A projeção
aponta um segundo turno entre Jara e Kast, no qual a candidata da esquerda
perde em todos os cenários testados. No duelo direto, Kast venceria por 47% a
39%. A conferir.

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