O Globo
Regime torturou e condenou estrangeiros sem
provas; caso levou 21.930 dias para ser encerrado
Aconteceu em 3 de abril de 1964, nas
primeiras horas do golpe. A polícia do governador Carlos Lacerda, fervoroso
apoiador da quartelada, prendeu nove cidadãos chineses que viviam no Rio. Sem
acusação formal, eles foram espancados e levados à sede do Dops. Penaram um ano
em prisões militares até serem expulsos do país.
Para a ditadura, os chineses obedeciam ordens de Pequim e queriam implantar um regime maoíosta nos trópicos. Tudo paranoia. Dois deles eram jornalistas da agência estatal Xinhua e cumpriam a tarefa revolucionária de correr atrás de notícias. Os outros sete integravam missões comerciais.
Dez dias depois da prisão ilegal, o regime
instaurou inquérito policial militar para apurar “crimes contra a segurança
nacional”. Em agosto, o Ministério Público Militar apresentou denúncia contra
os estrangeiros. Os jornalistas foram acusados de produzir reportagens sobre
“agitações das massas”, “antagonismos classistas” e “aspectos da miséria”
brasileira. Os encarregados de comércio seriam agentes secretos.
O texto da denúncia resume, em linguagem
bacharelesca, a paranoia anticomunista daqueles tempos: “Para conseguirem o seu
intento, serviam-se os denunciados chineses das táticas, de que são mestres, da
situação que lhes era propícia, a fim de obterem informes de toda a sorte para
fins de espionagem e resultados frutíferos com as suas constantes doutrinações
para, no momento oportuno, e com a ajuda de elementos comunistas brasileiros,
os demais denunciados, implantarem a revolução das massas”.
Defendidos pelo advogado Sobral Pinto, os
chineses foram condenados a dez anos de prisão. A sentença deixa claro que os
juízes militares tinham poucas provas e muitas convicções. “Cada um desses
indícios contra os acusados pode não ter maior expressão, quando examinados isoladamente,
porém apreciados no seu conjunto, forma (sic) um encadeamento perfeito
convencedor da culpabilidade”, diz o texto, antes de acusar os réus de tramarem
“a sinistra tentativa de subversão da nossa democracia cristã e liberal”.
No início de 1965, o doutor Sobral apelou ao
presidente Castello Branco por um indulto aos chineses. O governo preferiu
expulsá-los, e o recurso que pedia a anulação da sentença foi sobrestado no
Superior Tribunal Militar (STM). Assim ficaria por mais 60 anos — ou exatos 21.930
dias, ignorando o fim da ditadura, os prazos de prescrição e a morte de oito
dos nove réus.
No fim do mês passado, o STM analisou um
requerimento do ex-deputado João Vicente Goulart. Filho do presidente derrubado
pelos militares, ele pedia que os ministros reconhecessem o óbvio: não havia
mais o que julgar. No dia 23, a Corte reconheceu que o processo já estava
prescrito desde 1981. O acórdão que encerra o caso foi publicado sem alarde há
11 dias. Mandou para o arquivo um calhamaço com 50 volumes, 133 apensos e 18
anexos.
O escândalo de violação de direitos humanos
atrasou em uma década o restabelecimento de relações entre Brasil e China. Está
relatado em detalhes no livro “O caso dos nove chineses”, de Ciça Guedes e
Murilo Fiuza de Melo. Em entrevista aos autores, o jornalista Ju Qingdong
relembra as torturas com coronhadas, golpes de cassetete e ameaças de
fuzilamento. Único sobrevivente do grupo, ele tem 95 anos.

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