domingo, 16 de novembro de 2025

O fim do caso dos 9 chineses, por Bernardo Mello Franco

O Globo

Regime torturou e condenou estrangeiros sem provas; caso levou 21.930 dias para ser encerrado

Aconteceu em 3 de abril de 1964, nas primeiras horas do golpe. A polícia do governador Carlos Lacerda, fervoroso apoiador da quartelada, prendeu nove cidadãos chineses que viviam no Rio. Sem acusação formal, eles foram espancados e levados à sede do Dops. Penaram um ano em prisões militares até serem expulsos do país.

Para a ditadura, os chineses obedeciam ordens de Pequim e queriam implantar um regime maoíosta nos trópicos. Tudo paranoia. Dois deles eram jornalistas da agência estatal Xinhua e cumpriam a tarefa revolucionária de correr atrás de notícias. Os outros sete integravam missões comerciais.

Dez dias depois da prisão ilegal, o regime instaurou inquérito policial militar para apurar “crimes contra a segurança nacional”. Em agosto, o Ministério Público Militar apresentou denúncia contra os estrangeiros. Os jornalistas foram acusados de produzir reportagens sobre “agitações das massas”, “antagonismos classistas” e “aspectos da miséria” brasileira. Os encarregados de comércio seriam agentes secretos.

O texto da denúncia resume, em linguagem bacharelesca, a paranoia anticomunista daqueles tempos: “Para conseguirem o seu intento, serviam-se os denunciados chineses das táticas, de que são mestres, da situação que lhes era propícia, a fim de obterem informes de toda a sorte para fins de espionagem e resultados frutíferos com as suas constantes doutrinações para, no momento oportuno, e com a ajuda de elementos comunistas brasileiros, os demais denunciados, implantarem a revolução das massas”.

Defendidos pelo advogado Sobral Pinto, os chineses foram condenados a dez anos de prisão. A sentença deixa claro que os juízes militares tinham poucas provas e muitas convicções. “Cada um desses indícios contra os acusados pode não ter maior expressão, quando examinados isoladamente, porém apreciados no seu conjunto, forma (sic) um encadeamento perfeito convencedor da culpabilidade”, diz o texto, antes de acusar os réus de tramarem “a sinistra tentativa de subversão da nossa democracia cristã e liberal”.

No início de 1965, o doutor Sobral apelou ao presidente Castello Branco por um indulto aos chineses. O governo preferiu expulsá-los, e o recurso que pedia a anulação da sentença foi sobrestado no Superior Tribunal Militar (STM). Assim ficaria por mais 60 anos — ou exatos 21.930 dias, ignorando o fim da ditadura, os prazos de prescrição e a morte de oito dos nove réus.

No fim do mês passado, o STM analisou um requerimento do ex-deputado João Vicente Goulart. Filho do presidente derrubado pelos militares, ele pedia que os ministros reconhecessem o óbvio: não havia mais o que julgar. No dia 23, a Corte reconheceu que o processo já estava prescrito desde 1981. O acórdão que encerra o caso foi publicado sem alarde há 11 dias. Mandou para o arquivo um calhamaço com 50 volumes, 133 apensos e 18 anexos.

O escândalo de violação de direitos humanos atrasou em uma década o restabelecimento de relações entre Brasil e China. Está relatado em detalhes no livro “O caso dos nove chineses”, de Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo. Em entrevista aos autores, o jornalista Ju Qingdong relembra as torturas com coronhadas, golpes de cassetete e ameaças de fuzilamento. Único sobrevivente do grupo, ele tem 95 anos.

 

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