O Estado de S. Paulo
A isolada e abstrata exacerbação de penas
para coibir a criminalidade constitui impenitente falácia há muito descartada
pela Ciência Penal
Em mais um capítulo da interminável e
demagógica novela do populismo penal, o Senado aprovou, em 14 de outubro, o
Projeto de Lei n.º 4.809/24, que majora penas de certos crimes, em especial os
cometidos com violência. Aproveitandose do sumário feito pelo site jurídico
Migalhas, serão alteradas as punições para:
“Roubo qualificado: quando praticado em grupo
ou contra transporte de valores, passa a ter pena de seis a doze anos de
reclusão (antes, de quatro a dez anos);
Roubo com arma de fogo de uso restrito: de
oito a vinte anos de prisão (atualmente, de quatro a dez, com aumento de dois
terços);
Roubo com lesão corporal grave: de dez a
vinte anos (antes, de sete a dezoito anos);
Constituição de milícia privada: de seis a
dez anos (atualmente, de quatro a oito anos);
Receptação: de dois a seis anos (antes, de um
a quatro anos);
Receptação culposa: de um a cinco anos
(antes, de um mês a um ano ou multa); e
Homicídio simples: de oito a vinte anos
(antes, de seis a vinte anos)”.
Engendrado na Comissão de Segurança Pública, sob a presidência do senador Flávio Bolsonaro, o projeto será agora apreciado pela Câmara dos Deputados, que tanto pode alterar como pode manter o texto. Causa preocupação que mais uma norma de viés populista passe a integrar nosso ordenamento jurídico-penal. Onde se irá parar?
A isolada e abstrata exacerbação de penas
para coibir a criminalidade constitui impenitente falácia há muito descartada
pela Ciência Penal. No histórico desse sofisma, prenhe de raciocínio tão
ilusório quanto inexato, não há registros documentados da eficácia de tal
panaceia. Os filósofos da pena excrescente, que por contradição aumenta como a
criminalidade que pretende prevenir, querem-nos fazer crer que o autor do crime
pondera com maturidade racional as consequências de seu ato.
É de levar a sério a premissa desses
legisladores de que alguém, no impulso de um dos múltiplos fatores que levam à
prática delituosa, do planejamento frio e meticuloso ao descontrole provocado
pela violenta emoção, desiste da ação ilícita porque a sanção cominada foi
ampliada?
Só aumentar pena, decididamente, não inibe a
criminalidade. Veja-se o feminicídio. Em 2024, a lei elevou as penas mínima e
máxima de 12 a 30 anos para 20 a 40 anos de reclusão. Mas, segundo o
acompanhamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), ao final
daquele ano, o assassinato de mulheres por sua condição de gênero superou o
recorde da série histórica iniciada em 2015: 1.492, embora com uma taxa
porcentual pequena de aumento, 0,7% sobre 1.463 casos no ano anterior. Já as
tentativas explodiram para 3.870, 19% a mais em relação a 2023.
Ainda não há estatísticas nacionais para
2025, mas dados estaduais coletados pelo Instituto Sou da Paz indicam que o
recrudescimento das penas não contribuiu para a redução dos crimes. No Estado
de São Paulo, nos primeiros oito meses do ano, foram registradas 168 vítimas, um
crescimento de 11,3% em relação às 151 mulheres mortas no mesmo período de
2024.
Estudiosos apontam que a principal razão para
se lograr ao menos a estabilidade dos números de feminicídios de 2023 a 2024
foi o aumento das medidas ditas protetivas (palavra que a lei criou para o
lugar de protetoras). O Conselho Nacional de Justiça registrou a concessão de
582.105 dessas cautelas inibitórias em 2024, aumento de 7,2% em relação a 2023.
Quantos crimes foram evitados por ações efetivamente protetoras emanadas do
aparelho de Estado, em comparação à ameaça de sanções?
Em rigor, hipertrofiar a resposta penal
inscreve na lei o malabarismo diversionista, para atender ao clamor punitivo
das ruas e desviar a atenção de estruturas que a demagogia não enfrenta. O
Estado não consegue investigar eficazmente alguns crimes, como os homicídios e,
por isso, não pune seus autores. Dos 45.747 registrados no Brasil em 2023, 64%
não foram esclarecidos, isto é, sabe-se quem morreu, mas não se sabe quem
matou. Apenas 36% das investigações identificam os supostos assassinos e ainda
assim poucos são presos, levados à Justiça e submetidos a um julgamento justo.
No cômputo geral, muitos milhares de detentos
são esquecidos no cárcere sem ter esse direito assegurado pelo devido processo
legal. Os dados de 2023 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, preparado
pelo FBSP, contabilizaram 208.882 pessoas que aguardavam julgamento, num total
de 852.010 pessoas enclausuradas, aumento de 2,4% em relação a 2022. Não por
acaso, a grande maioria (69%) fazia parte do tríplice pê da desigualdade
social: pretos, pobres, periféricos. Quando julgados com efetiva defesa, muitos
terminam absolvidos.
No figurino do Estado Democrático de Direito, o preso provisório veste uniforme roto esquecido pelos que usam toga. Mofam no cárcere sem que seus processos avancem e os decretos de prisão sejam, no caso da preventiva, reavaliados a cada 90 dias. São prisões sem pena, condenações antecipadas, sem sentenças. Ironicamente, esses supostos infratores são inocentes perante a lei, amparados pelo princípio da não culpabilidade ou presunção de inocência, conforme o artigo 5.º, inciso LVII, da Constituição. Para esses, a pena é aumentada a cada dia que passam na prisão.

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