quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Cristiano Romero: Economia e tirania

- Valor Econômico

Diz-se que o regime militar criou uma economia forte. Ilusão

Muitos no mercado financeiro acreditam na tese de que, para avançar na economia, o Brasil precisa passar por um novo regime autoritário. A democracia, pensam, atrasa o país. O exemplo citado é o do Chile, que, sob a ditadura comandada pelo general Augusto Pinochet entre 1973 e 1990, quando mais de 40 mil pessoas foram vítimas do regime, entre executadas, desaparecidas e torturadas, economistas formados pela prestigiosa Escola de Chicago implantaram uma sólida economia de mercado ao sul da Linha do Equador.

Outro exemplo mencionado é o da China, que, dominada por um regime comunista fechado, conseguiu forjar experimento capitalista que a transformou, em pouco mais de quatro décadas, na segunda maior economia do planeta. O que se diz é que, sem democracia, governos fortes conseguem impor agendas liberalizantes que aceleram o crescimento do PIB, criando as condições para eliminar a pobreza.

No caso da China, poucos analistas identificam as chances de as coisas darem muito errado logo adiante. Cerca de 400 milhões de chineses, da população de 1,39 bilhão, vivem no "maravilhoso" mundo do capitalismo ocidental. Trata-se de uma imensa classe média, mais numerosa que a de qualquer outra nação. Mas, um detalhe é inescapável: mesmo com dinheiro no bolso, esses milhões de cidadãos não têm liberdade para se expressar e seus direitos, inclusive o de ir e vir, são restritos.

Imagine-se o seguinte: se a China não fosse uma ditadura, a maioria dos que vivem no grupo do 1 bilhão, entre gente que vive no campo e nas cidades, sendo que a população urbana já superou a rural, migraria para o "Sul maravilha", onde ficam as províncias capitalistas. Num regime fechado, o Estado escolhe quem salta da Idade Média para o século XXI. Se a escolha fosse livre, as cidades chinesas já teriam favelas mais povoadas, por exemplo, que as de Brasil e Índia, recordistas desse triste ranking.

Chineses, como brasileiros e indianos, buscam o progresso, o que significa procurar, sempre, o lugar onde possam viver melhor. A urbanização acelerada do Brasil desde a década de 1950 provocou o crescimento desordenado das principais capitais do país. O subproduto desse processo foi o surgimento de favelas gigantescas no Rio, São Paulo, Recife, Salvador etc. Brasília, mesmo tendo sido criada para ser uma cidade autárquica, sede do poder e de limitada capacidade de geração de renda e emprego, atraiu centenas de milhares de brasileiros, movidos por seu projeto monolítico audacioso - literalmente no meio do nada, uma cidade de arquitetura modernista e futurista refundaria o Brasil e encorajaria os habitantes deste imenso país a se inspirarem em sua bela capital para progredir... não deu certo, como todos sabemos.

A China também tem seus monólitos, mas, lá, a maioria da população não os conhece. A economia é movida por elevada taxa de investimento, superior a 40% do PIB, enquanto no Brasil essa taxa caiu para 15% do PIB durante a recente recessão. Ora, o investimento na China é elevado porque os chineses são obrigados a poupar boa parte de sua renda devido à ausência de um regime previdenciário como o nosso, que consome 13% do PIB.

É razoável esperar que, à medida que a China caminhe para se tornar uma economia avançada, o clamor por mais liberdade e direitos aumente exponencialmente. O povo pedirá democracia porque isso é intrínseco ao ser humano. A pressão por mudança de regime será crescente e isso, claro, terá efeito negativo sobre o ritmo de expansão da economia.

Uma lembrança óbvia, apesar de trágica: o Brasil passou por tudo isso não faz muito tempo. Em 1964, num ambiente em que a inflação rondava os 100%, o presidente João Goulart - o vice eleito (na época, o povo elegia também os vice-presidentes) que assumiu o poder porque Jânio Quadros renunciou, fracassando na tentativa mambembe de dar um golpe e ganhar mais poderes - era contestado abertamente e as denúncias de corrupção se espalhavam, civis incitaram militares a dar um golpe. Nos primeiros três anos, o governo reorganizou a economia e esta entrou em fase de crescimento acelerado, mas, ao contrário da promessa inicial, de rápido restabelecimento da democracia, os militares foram ficando, ficando, e só deixaram o poder 21 anos depois.

Tirania não combina com democracia. Diz-se que o regime militar criou uma economia forte. Ilusão. Se a liberdade de expressão, é imprescindível para a existência da democracia, a economia de mercado não funciona fora dos regimes democráticos. A China não é uma economia de mercado. Assim como o Brasil, durante a ditadura, também não o era - muito pelo contrário: na década de 1970, os militares fecharam as fronteiras comerciais, implantaram uma economia planificada e um Estado "soviético"; a liberdade de empreender era diminuta, e os preços da maioria dos bens e contratos, tabelados; como uma economia de mercado pode florescer num ambiente institucional como aquele?

É curioso que, na "eleição dos extremos", os mercados tenham se entusiasmado com o candidato Jair Bolsonaro (PSL). O ex-deputado promete fazer gestão liberal, a ser conduzida por Paulo Guedes, um economista liberal. Durante a campanha, o candidato desautorizou Guedes justamente nos momentos em que ele discorreu sobre propostas liberais. Mas há aspectos mais relevantes a serem considerados sobre o ex-capitão do Exército.

A verdade é que Bolsonaro, e não há "fake news" que consigam desmentir isso, atentou publicamente contra direitos e garantias fundamentais do cidadão livre. Aqui, onde a escravidão reinou por quase 400 anos e as mulheres começaram a votar há menos de um século, ele discrimina negros e mulheres. Distingue, também, homossexuais. Sua visão de Brasil atenta contra qualquer aspiração deste país em um dia chegar ao status de civilização.

Mais do candidato do PSL: no país onde mais de 60 mil pessoas, a maioria delas jovens e pobres, são assassinadas todos os anos, ele defende que a polícia torture e que os cidadãos tenham o direito de portar armas para... participar desta guerra civil não declarada. A indagação urgente é a seguinte: como essas ideias combinam com liberdade, condição sine qua non da democracia e, portanto, de uma economia de mercado?

O candidato Fernando Haddad (PT), é verdade, não entusiasma. Insiste num discurso anacrônico rejeitado hoje pela maioria da população, traumatizada pela tragédia econômica provocada pelo governo Dilma Rousseff. Se ganhasse a disputa e governasse com as propostas de seu partido, Haddad aprofundaria o desalento que assola a economia brasileira há cinco anos.

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