domingo, 13 de julho de 2008

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS


O MST DA ORDEM
José de Souza Martins*

O que parece confuso e anacrônico no ideário do movimento e da CPT é, na verdade, a economia moral que os rege

A reforma agrária que o MST e a Pastoral da Terra querem não é a reforma agrária que o Estado brasileiro quer e nem mesmo a reforma agrária que o presidente Lula e o PT podem e mesmo querem. Desencontros como esses, no passado recente, eram explicados, pelos mesmos protagonistas, como desencontros entre esquerda e direita. Diagnóstico fácil e superficial que embaralhava, ideologicamente, as causas dos problemas e a busca de soluções. O embaralhamento agora é maior: o MST e a CPT estão na base do apoio decisivo à ascensão política de Lula e do PT, que não obstante ainda os consideram seu partido e seu governo. Embora não o sejam e nunca tenham sido, porque filhos do contrato laboral moderno e não da posse familista e pré-moderna da terra, que são mundos opostos e inconciliáveis. MST e CPT não compreendem esse bloqueio histórico. Sua luta não é só pela terra. É, também, luta contra aquilo que consideram componentes do mesmo sistema econômico de que o latifúndio é o cerne, como a monocultura, o agronegócio, a globalização.

O que parece confuso e anacrônico no ideário do MST e da CPT constitui, na verdade, o sistema conceitual da economia moral que os rege e ordena sua crítica dos efeitos socialmente devastadores da economia moderna sobre populações que estão apenas no limiar da modernidade.

Demarcam, assim, o mundo de referência do seu clamor como território da sua legitimidade política, o que com freqüência os coloca em confronto com a legalidade e a conseqüente reação do Estado. Foi o que se viu nas últimas semanas, no Pará e no Rio Grande do Sul. No Pará, a condenação a 2 anos e 5 meses de prisão de um advogado da CPT e de um ex-coordenador da Federação dos Trabalhadores na Agricultura, pela invasão do Incra de Marabá, em 1999. No Rio Grande do Sul, o pedido do Ministério Público de desocupação de fazenda invadida, acompanhado de considerações sobre o caráter supostamente subversivo do MST (e do Via Campesina) por atos de desrespeito à lei e à ordem jurídica, até com o pedido de sua extinção.

Nos dois casos, as organizações gêmeas defrontam-se com a reação do aparelho de Estado à suposta ultrapassagem da linha de contraposição do legítimo ao legal. O documento do MP, aliás, assinala que a relação entre o MST e o presidente Lula não se sobrepõe à prevalência da lei e da Constituição, na qual o Ministério Público se apóia para definir sua denúncia. O Estado se funda na lei e a ela se sujeita. O limite do MST é a lei; mas a forma de sua demanda é o que a lei não contempla. Portanto, como inovar e transformar jurídica e politicamente? Pelos partidos, diz a lei; pela transgressão da lei, dizem as organizações e movimentos populares, enfraquecidos e abandonados por seu próprio partido, o PT, que de fato os tutela, mas não os representa.

Se o MST e a CPT têm seus equívocos, têm também suas razões. Por falta de apreço pelo estudo, pela leitura séria e pela teoria, da parte de seus líderes, claudicam e até falham na compreensão do que são e fazem e no convencimento da sociedade inteira quanto aos males sociais da monocultura e aos benefícios sociais da agricultura familiar. Essa é nossa alternativa keynesiana para o desemprego rural decorrente da modernização agrícola. Seria o meio de criar, nesta era de oportunidades agrícolas, uma economia mista de agricultura familiar moderna e agronegócio, uma economia abrangente e eficiente, que criaria renda e emprego e beneficiaria a economia inteira.

Contentam-se com inchaços estatísticos relativos às invasões de terra. Ainda agora o Nera - Núcleo de Estudos da Reforma Agrária, da Unesp, alinhado com o MST e a CPT, divulga relatório em que mostra que o número de invasões de terra no Brasil, nos últimos 19 anos, que foi de 7.500, mais de uma invasão por dia, é bem maior do que essas próprias organizações têm divulgado. Durante o regime militar, o crescente registro de conflitos fundiários, pela CPT, servia para mostrar o fracasso da reforma agrária decretada e descumprida pelo próprio governo. Naquela época, cada um dos conflitos ainda era propriamente um caso específico, a maioria dos quais não dizia respeito a invasões, mas à resistência na terra de trabalho contra a concentração fundiária, a grilagem e a expulsão dos trabalhadores rurais, sobretudo na região amazônica.

Agora já não se trata apenas de uma disputa pela terra, embora a ideologia do MST e da CPT ainda seja essa. Trata-se agora de encontrar alternativa para a marginalização que alcançou essas populações e seus descendentes. A concentração fundiária dos anos 60 e 70 e a correlata modernização agrícola criaram uma imensa massa de órfãos do crescimento econômico, sem a contrapartida, como ocorrera entre os anos 30 e 50, de uma indústria dinâmica capaz de absorver os excedentes populacionais oriundos do desenraizamento rural. As lutas dos trabalhadores rurais tentam criar o que o Estado não criou nem o governo do PT está criando, apesar de seus compromissos morais e políticos com o MST e a CPT.

As estatísticas recém-divulgadas pelo Nera não confirmam a ampliação do alcance da luta pela terra. Repetidas invasões de uma mesma fazenda, ao longo do tempo, são contadas como diferentes casos, embora sejam apenas episódios de conflitividade no interior de um único e mesmo conflito. Trata-se de um indicador de intensidade e não de quantidade. Portanto, de fato, o número de invasões é inferior ao anunciado. O problema político que se põe é outro: por que a conflitividade é maior em alguns casos, como o do Pontal do Paranapanema, e menor em outros? Porque ela foi transformada numa questão política e partidária, que se sobrepõe à questão social, na busca, no passado idílico, das raízes do futuro utópico. Apenas confirma que a luta se institucionalizou, tornou-se um rito da ordem, diversamente do que acusam o MP do Rio Grande do Sul e a Justiça do Pará. O conflito, na sociedade moderna, é constitutivo da mesma modernidade de que MP e Justiça são expressões.


*José de Souza Martins é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP

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