O CAPITAL INICIAL
Luiz Carlos Azedo
O governo estimulou a volta do dinheiro brasileiro que havia sido aplicado no exterior, como uma forma, inclusive, de enfrentar a crise cambial que quase levou o país à breca
Luiz Carlos Azedo
O governo estimulou a volta do dinheiro brasileiro que havia sido aplicado no exterior, como uma forma, inclusive, de enfrentar a crise cambial que quase levou o país à breca
Não vou me estender sobre a crise instalada no Judiciário por causa da decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, que concedeu habeas corpus ao banqueiro Daniel Dantas. Quem pode mais, pode menos. Se depender da lei da gravidade, prevalecerá a mais alta Corte do país, apesar do esperneio de juízes federais, procuradores da República e delegados da Polícia Federal. Nesse imbróglio não pode prevalecer o “prendo e arrebento” como forma de purgar os males da sociedade, uma fórmula simpática à opinião pública farta de tanta corrupção e privilégios, mas que aponta na direção de práticas autoritárias e atitudes até fascistas. O que preocupa, nesse aspecto, é o desgaste do Poder Judiciário, que se soma ao do Congresso Nacional. O poder das duas instituições não emana da força econômica – nem da bruta –, mas do respeito das demais autoridades e da legitimidade perante a sociedade.
Acumulação
Audaciosos, o banqueiro Daniel Dantas e o empresário Eike Batista cavalgam contradições do nosso capitalismo tardio, como veremos a seguir. Adam Smith chamou o fenômeno de “acumulação prévia”, um eufemismo para classificar a forma como o capitalismo surgiu no mundo. Ninguém se torna capitalista sem capital inicial acumulado. Uma forma de acumulação, na gênese capitalista, foi a expropriação da produção familiar, artesanal, camponesa e corporativa, que apartou os trabalhadores da propriedade dos meios de produção e ampliou a divisão social do trabalho. Os grandes capitalistas, porém, surgiram no mercantilismo, com a violenta exploração colonial, por meio dos saques, do tráfico negreiro, da especulação comercial e do monopólio mercantil.
O Brasil não existiria fora desse contexto. Os Estados Unidos também. Mas há um ingrediente que nos diferencia muito: aqui não havia uma ética protestante balizando as relações da sociedade, para o surgimento de um Henry Ford, na segunda Revolução Industrial, ou de um Bill Gates, na moderna sociedade da informação. O que havia era o nosso velho patrimonialismo ibérico, ainda hoje redivivo, que nos legou um capitalismo marcado pelo favorecimento do Estado ao surgimento das fortunas familiares. É difícil encontrar uma empresa tradicional no Brasil, por mais moderna que seja, que em algum momento não tenha dependido da alavancagem política dos seus negócios. Nosso modelo de substituição das importações, fomentado pelo Estado, teve por base a articulação entre capital estrangeiro, empresariado nacional e investimentos governamentais.
Estabilização
Esse tripé do nosso desenvolvimento, porém, foi para o ralo com o choque do petróleo e a terceira Revolução Industrial. Recessão, crise de financiamento do Estado e hiperinflação. Na década de 1980, o país estava em estagnação econômica e à beira do colapso financeiro. Foi nesse contexto que a remessa ilegal de recursos para o exterior por pessoas físicas e jurídicas se generalizou. Foi uma espécie de autodefesa do capitalismo brasileiro contra a ameaça de bancarrota, num momento em que o modelo autárquico de substituição de importações havia se esgotado e a abertura da economia era um imperativo da globalização.
Quando houve o Plano Real, a política de estabilização da economia não teria sucesso sem o programa de privatizações, que uma década antes havia sido preconizado por Inácio Rangel, um economista do BNDES de formação muito heterodoxa. O Estado não tinha como financiar seu próprio funcionamento, e a retomada do desenvolvimento exigia a modernização dos serviços públicos e da infra-estrutura do país, mas não havia recursos públicos para isso, como aliás ainda não há. A quebra do monopólio do petróleo e da exploração mineral e a venda de estatais, como a Vale do Rio Doce, das siderúrgicas e das teles foram uma via de saneamento das finanças públicas e de captação de investimentos privados.
Nesse contexto, o governo estimulou a volta do dinheiro brasileiro que havia sido aplicado no exterior, como uma forma inclusive de enfrentar a crise cambial que quase levou o país à breca. É nessa ambígua e sinuosa fronteira de oportunidades que o empresário Eike Batista e o banqueiro Daniel Dantas amealharam agressivamente suas fortunas, um correndo os riscos do garimpo, da mineração e do mercado petrolífero, outro repatriando capitais e transformando-os em investimentos financeiros. A acumulação inicial de capital é sempre uma aventura, nem sempre bem-sucedida.
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