José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
Na nova visão de reforma agrária do movimento, a prioridade não é mais a terra e sim o mercado
O aniversário de 25 anos do MST deu a Gilmar Mauro, um de seus dirigentes, a oportunidade de uma autocrítica, na Folha Online, que bem expressa o bifrontismo e os dilemas dessa organização política. De um lado, ele reconhece que o MST não conseguiu uma reforma agrária no Brasil, embora tenha contribuído para o assentamento de muitas famílias de trabalhadores rurais. De outro lado, diz que agora a reforma agrária tem um conteúdo novo, relativo a uma agricultura, de alimentos saudáveis e matérias-primas, que não agrida o meio ambiente. Antes a terra tinha precedência, agora é o mercado.
Bifrontismo porque a reforma agrária do MST é antagônica ao historicamente próprio da reforma agrária: a supressão ou atenuação da renda territorial, o preço da terra, como tributo que condiciona seu uso, para viabilizar a expansão capitalista na agricultura.
A reforma agrária nada tem de revolucionária, embora possa ter potenciais de transformação social e até política. O sujeito social da reforma, que é a chamada agricultura familiar, tem um potencial que para Gilmar Mauro ainda se limita à agricultura ecológica e sadia. Deixa ele de lado o potencial socialmente transformador do saber tradicional e do familismo rural quando inseridos nas imensas possibilidades da economia e da sociedade modernas, como contraponto às suas insuficiências e irracionalidades, como é o caso da fome. Na economia moral do MST há um capital social que vem sendo desperdiçado quando reduzido a uma prática fantasiosa, destituída de mediações e imune às próprias contradições.
Ao ignorar os limites e as possibilidades desse dilema, o MST deixa de tirar dele mais do que a bravata anticapitalista de seus dirigentes e atira ao monturo das oportunidades perdidas a riqueza do capital social que, na figura do agricultor familiar em crise, lhe caiu nas mãos literalmente por milagre. É nesse terreno movediço que o MST se situa, por motivos históricos alheios a sua vontade e a sua compreensão. O MST não é o pai e patrono da reforma agrária no Brasil, bem mais antiga do que ele. Nasceu ela quando as esquerdas já haviam perdido essa bandeira para a própria ditadura militar. A reforma agrária entrara na agenda dos partidos de esquerda nos anos 50 basicamente como condição para enfraquecer o poder político da grande propriedade da terra e alargar as bases sociais da luta pelo socialismo. Não era uma demanda efetiva e consistente de imensas massas insurgentes. Aliás, a Igreja opôs-se à reforma agrária de Jango e deu decisiva demonstração nesse sentido ao apoiar e viabilizar as chamadas Marchas da Família com Deus pela Liberdade, que promoveram mobilizações de massa a favor do golpe de Estado.
Dado o golpe, a ditadura apropriou-se da causa da reforma e tornou-a causa do governo. A Igreja, de onde o MST nasceria em 1984, só voltou a se interessar por ela em 1975, quando foi criada a Pastoral da Terra, como pastoral de direitos humanos, motivada pela sistemática violência contra posseiros pobres na avassaladora expansão da fronteira econômica na Amazônia. A protestantização do Estado brasileiro, a partir do golpe, deixou a Igreja sem margem de intervenção junto ao governo em defesa de seus pontos de vista, tendo sido a aprovação do divórcio o ápice dessa marginalização política. Quebrou-se o arranjo proposto pela Revolução de Outubro de 1930, com Getúlio, de um reconhecimento do catolicismo como religião da maioria da nação, o que dava à Igreja preferência nas atenções do Estado.
Esses dois fatores empurraram a Igreja para uma opção decisiva pelas questões sociais e políticas. Mas a Pastoral da Terra fora proposta como pastoral de suplência e deu sinais de que chegara ao limite quando ficou evidente que o regime chegava ao fim. Foi a CNBB, aliás, que propôs a Tancredo o nome de um católico como novo ministro de Assuntos Fundiários contra os nomes indicados pela Associação Brasileira de Reforma Agrária, três nomes de esquerda. A Igreja queria a reforma, mas não queria a esquerda na sacristia.
Nesse cenário, já antes, agentes de pastoral começaram a articular um futuro sem envolvimento direto dos bispos na questão fundiária. Numa conversa informal no Centro de Treinamento de Líderes, da Arquidiocese de Goiânia, o Padre José Servat, um belga originário da Ação Católica, que exerce seu ministério no Nordeste, lembrou ao acaso que a saída poderia ser a de criar um movimento de trabalhadores sem terra, para que essa mudança não afastasse da luta pela reforma agrária os leigos da Igreja.
Na mesma direção, outra mudança já vinha ocorrendo. Em 1981, 600 famílias de sem-terra acamparam na faixa de servidão da estrada de Ronda Alta a Passo Fundo (RS). Na origem e no geral, era gente expulsa das terras dos índios caingangues na revolta indígena de outubro de 1978, em Nonoai. Em curto tempo, houve levantes em praticamente todos os aldeamentos caingangues, de São Paulo ao Rio Grande do Sul. No caso de Nonoai, as terras indígenas começaram a ser ocupadas por colonos em 1966, mediante pagamento de renda simbólica à Funai, os índios transformados em seus empregados. Expulsos, parte dos colonos foi para fazendas do governo, esperando assentamento definitivo. De um modo ou de outro, muitos acabariam na estrada de Ronda Alta. Ali, na Encruzilhada Natalino, nasceu a mística da terra prometida, a cultura das Romarias da Terra, a reforma agrária como sacramento e partido. Dessa cultura se apropriará o MST, unificando política e ideologicamente a imensa variedade de lutas pela terra de todo o Brasil. Será ele a base de afirmação partidária do PT no campo, propondo-se como mediação partidária única da diversidade rural. Assim como teve seu momento de aparente afastamento em relação à Igreja, o MST alarga hoje seu conflito com o próprio PT, sem grandes consequências, porém, já que para o MST o PT é o limite e o governo Lula sabe disso. O MST pode produzir o trovão, mas o dono do raio é o governo.
*José de Souza Martins é professor de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
Na nova visão de reforma agrária do movimento, a prioridade não é mais a terra e sim o mercado
O aniversário de 25 anos do MST deu a Gilmar Mauro, um de seus dirigentes, a oportunidade de uma autocrítica, na Folha Online, que bem expressa o bifrontismo e os dilemas dessa organização política. De um lado, ele reconhece que o MST não conseguiu uma reforma agrária no Brasil, embora tenha contribuído para o assentamento de muitas famílias de trabalhadores rurais. De outro lado, diz que agora a reforma agrária tem um conteúdo novo, relativo a uma agricultura, de alimentos saudáveis e matérias-primas, que não agrida o meio ambiente. Antes a terra tinha precedência, agora é o mercado.
Bifrontismo porque a reforma agrária do MST é antagônica ao historicamente próprio da reforma agrária: a supressão ou atenuação da renda territorial, o preço da terra, como tributo que condiciona seu uso, para viabilizar a expansão capitalista na agricultura.
A reforma agrária nada tem de revolucionária, embora possa ter potenciais de transformação social e até política. O sujeito social da reforma, que é a chamada agricultura familiar, tem um potencial que para Gilmar Mauro ainda se limita à agricultura ecológica e sadia. Deixa ele de lado o potencial socialmente transformador do saber tradicional e do familismo rural quando inseridos nas imensas possibilidades da economia e da sociedade modernas, como contraponto às suas insuficiências e irracionalidades, como é o caso da fome. Na economia moral do MST há um capital social que vem sendo desperdiçado quando reduzido a uma prática fantasiosa, destituída de mediações e imune às próprias contradições.
Ao ignorar os limites e as possibilidades desse dilema, o MST deixa de tirar dele mais do que a bravata anticapitalista de seus dirigentes e atira ao monturo das oportunidades perdidas a riqueza do capital social que, na figura do agricultor familiar em crise, lhe caiu nas mãos literalmente por milagre. É nesse terreno movediço que o MST se situa, por motivos históricos alheios a sua vontade e a sua compreensão. O MST não é o pai e patrono da reforma agrária no Brasil, bem mais antiga do que ele. Nasceu ela quando as esquerdas já haviam perdido essa bandeira para a própria ditadura militar. A reforma agrária entrara na agenda dos partidos de esquerda nos anos 50 basicamente como condição para enfraquecer o poder político da grande propriedade da terra e alargar as bases sociais da luta pelo socialismo. Não era uma demanda efetiva e consistente de imensas massas insurgentes. Aliás, a Igreja opôs-se à reforma agrária de Jango e deu decisiva demonstração nesse sentido ao apoiar e viabilizar as chamadas Marchas da Família com Deus pela Liberdade, que promoveram mobilizações de massa a favor do golpe de Estado.
Dado o golpe, a ditadura apropriou-se da causa da reforma e tornou-a causa do governo. A Igreja, de onde o MST nasceria em 1984, só voltou a se interessar por ela em 1975, quando foi criada a Pastoral da Terra, como pastoral de direitos humanos, motivada pela sistemática violência contra posseiros pobres na avassaladora expansão da fronteira econômica na Amazônia. A protestantização do Estado brasileiro, a partir do golpe, deixou a Igreja sem margem de intervenção junto ao governo em defesa de seus pontos de vista, tendo sido a aprovação do divórcio o ápice dessa marginalização política. Quebrou-se o arranjo proposto pela Revolução de Outubro de 1930, com Getúlio, de um reconhecimento do catolicismo como religião da maioria da nação, o que dava à Igreja preferência nas atenções do Estado.
Esses dois fatores empurraram a Igreja para uma opção decisiva pelas questões sociais e políticas. Mas a Pastoral da Terra fora proposta como pastoral de suplência e deu sinais de que chegara ao limite quando ficou evidente que o regime chegava ao fim. Foi a CNBB, aliás, que propôs a Tancredo o nome de um católico como novo ministro de Assuntos Fundiários contra os nomes indicados pela Associação Brasileira de Reforma Agrária, três nomes de esquerda. A Igreja queria a reforma, mas não queria a esquerda na sacristia.
Nesse cenário, já antes, agentes de pastoral começaram a articular um futuro sem envolvimento direto dos bispos na questão fundiária. Numa conversa informal no Centro de Treinamento de Líderes, da Arquidiocese de Goiânia, o Padre José Servat, um belga originário da Ação Católica, que exerce seu ministério no Nordeste, lembrou ao acaso que a saída poderia ser a de criar um movimento de trabalhadores sem terra, para que essa mudança não afastasse da luta pela reforma agrária os leigos da Igreja.
Na mesma direção, outra mudança já vinha ocorrendo. Em 1981, 600 famílias de sem-terra acamparam na faixa de servidão da estrada de Ronda Alta a Passo Fundo (RS). Na origem e no geral, era gente expulsa das terras dos índios caingangues na revolta indígena de outubro de 1978, em Nonoai. Em curto tempo, houve levantes em praticamente todos os aldeamentos caingangues, de São Paulo ao Rio Grande do Sul. No caso de Nonoai, as terras indígenas começaram a ser ocupadas por colonos em 1966, mediante pagamento de renda simbólica à Funai, os índios transformados em seus empregados. Expulsos, parte dos colonos foi para fazendas do governo, esperando assentamento definitivo. De um modo ou de outro, muitos acabariam na estrada de Ronda Alta. Ali, na Encruzilhada Natalino, nasceu a mística da terra prometida, a cultura das Romarias da Terra, a reforma agrária como sacramento e partido. Dessa cultura se apropriará o MST, unificando política e ideologicamente a imensa variedade de lutas pela terra de todo o Brasil. Será ele a base de afirmação partidária do PT no campo, propondo-se como mediação partidária única da diversidade rural. Assim como teve seu momento de aparente afastamento em relação à Igreja, o MST alarga hoje seu conflito com o próprio PT, sem grandes consequências, porém, já que para o MST o PT é o limite e o governo Lula sabe disso. O MST pode produzir o trovão, mas o dono do raio é o governo.
*José de Souza Martins é professor de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)
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