segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Obama, responsabilidade e porrete

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Alguns jornalistas ou analistas políticos têm se empenhado em ser os primeiros a mostrar ceticismo diante de Barack Obama e do entusiasmo em torno dele. A meu ver, não cabe dúvida de que se trata de um líder de qualidades intelectuais e pessoais singulares, e elas certamente justificam, por si só, o entusiasmo. Gente agnóstica talvez se indague com estranheza sobre um aspecto particular: a relação dessas qualidades com a intensa e ostensiva religiosidade. Mas há a questão de até que ponto uma carreira político-eleitoral seria possível nos Estados Unidos sem alguma ostentação de religiosidade - o que não significa que haja razões para crer, no caso de Obama, que se trate de algo postiço. De todo modo, a distância em relação ao fundamentalismo cristão bushiano ficou evidente no discurso de posse de terça-feira passada: como notou Nicholas Kristof no "New York Times" ("The Remaking of America", 21/01), não há notícia de um presidente estadunidense no exercício do cargo a cometer a ousadia de manifestar publicamente a visão de pluralismo religioso em relação ao país introduzida de maneira capaz de incluir até os ateus, ao lado de muçulmanos, judeus, hindus...

Seja como for, à parte a sensatez que se espera venha a prevalecer quanto à economia e suas urgências urgentíssimas (cada vez mais, ai de nós), caberia ressaltar alguns planos relacionados que se ligam à força simbólica e aos méritos de Obama. O primeiro, óbvio e mais doméstico, tem a ver com a desigualdade racial e com o acesso dele à Presidência como uma espécie de coroamento das lutas e do longo avanço do país a respeito. Um bom livro recente de Fareed Zakaria ("The Post-American World", 2008), em que o nome de Obama surge apenas em referência passageira ao início da última campanha eleitoral, entrelaça de maneira reveladora a desigualdade como problema com a dinâmica demográfica do país como fator de mudança e trunfo de amplo significado. Por um lado, se, por exemplo, a "melhor indústria" dos Estados Unidos é seu sistema universitário, segue grande a precariedade do sistema educacional básico, com os testes internacionais situando o país em posições medíocres em comparação com países asiáticos e europeus. Ora, a razão está no peso das minorias étnico-raciais mais pobres, relegadas a escolas públicas ruins e sem condições de acesso às universidades, enquanto os estudantes dos distritos escolares dos subúrbios afluentes tendem não só a incluir-se entre os melhores nos testes internacionais, mas também, naturalmente, a ter o caminho aberto às grandes universidades.

Por outro lado, o caráter "demograficamente vibrante" do país (não obstante as dificuldades que têm cercado em tempos recentes a imigração como tema político) o singulariza em confronto com os países europeus e asiáticos, com importantes consequências favoráveis do ponto de vista da relação entre trabalhadores e inativos e das perspectivas para o desenvolvimento econômico. Dá-se, porém, algo análogo, num aspecto importante, ao observado quanto ao acesso educacional: a população branca "nativa" tem as mesmas baixas taxas de fertilidade dos países europeus. E, ironicamente, não só a imigração tem sido decisiva para os maiores níveis de crescimento econômico dos EUA em comparação com a Europa, mas também "a vantagem americana em inovação é esmagadoramente um produto da imigração", com estudantes e imigrantes estrangeiros respondendo, por exemplo, pela metade dos pesquisadores científicos do país.

Se voltamos a Obama, é bem claro o sentido em que ele representa a consequência direta do dinamismo demográfico do país e do que daí decorre em termos culturais - e aqui surge outro dos planos acima anunciados. Ele é em si mesmo, com seu peculiar background ricamente diversificado e cosmopolita (meio africano, meio branco, algo muçulmano, de padrasto e irmã asiáticos etc.), um fruto especial daquele dinamismo. Tendo podido inserir-se no establishment acadêmico do país e equipar-se intelectualmente sem deixar de comprometer-se com o lado "menos igual" de suas origens ou perder as conexões com a diversidade delas, sua postura geral abre perspectivas otimistas quanto ao papel de liderança mundial que qualquer presidente americano se vê destinado a cumprir no mundo dos nossos dias, mesmo se o peso relativo do país é gradualmente solapado. Essa postura, de tolerância pluralista, multilateralismo, responsabilidade e mesmo humildade, tem sido afirmada e reafirmada com ênfase não só em suas palavras de campanha e agora em seu discurso de posse, mas também, em apenas alguns dias no exercício real da Presidência, nas ações adotadas de imediato.

Aqui sim, contudo, há espaço para uma reserva. A menção a Obama feita por Zakaria evoca sua participação em debate, ainda em 2007, e a pergunta aos candidatos sobre como reagiriam a um novo ataque terrorista. Em contraste com a pronta resposta "machona" dos demais, competindo sobre qual seria o mais duro, Obama, começando com resposta matizada e sensata sobre informar-se adequadamente e agir responsavelmente em articulação com aliados, "logo se deu conta de sua vulnerabilidade política e brandiu também ele a devida ameaça retaliatória". Temos visto agora os comentários sobre política externa em que a combinação "inteligente" dos poderes "duro" e "suave" de Joseph Nye, ligados respectivamente sobretudo à força militar e à das idéias e valores, são traduzidos (pelo mesmo Kristof no artigo mencionado) na fórmula cínica de Theodore Roosevelt que recomenda "falar suavemente e carregar um porrete".

Não há, provavelmente, como escapar ao componente de realismo no fatal exercício da liderança mundial pelos Estados Unidos. Esperemos que Obama saiba de fato preservar o equilíbrio e a responsabilidade no recurso a ele.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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