Professor titular de Sociologia da Universidade de São Paulo, Brasílio Sallum Jr. é autor de uma das mais completas interpretações da transição para a democracia no Brasil: em uma palavra, Labirintos (Hucitec, 1996) é uma obra seminal. O brilhantismo usual para lidar com categorias da Sociologia, da Política ou da Economia reaparece nestas linhas, acrescentado ao desafio de se reportar ao tempo presente. Para Brasílio, o binômio desenvolvimento/desenvolvimentismo ainda não assumiu uma formatação sólida e esbarra em obstáculos políticos, institucionais, sociais e econômicos, tanto de ordem doméstica como de domínio internacional. Esta entrevista foi concedida a Jefferson O. Goulart, em agosto de 2011, e publicada na Revista Faac (Bauru, v. 1, n. 2, p. 129-34, out. 2011/mar. 2012).
Descontadas as estocadas de todos os lados nas disputas políticas e eleitorais, o que há efetivamente de continuidade e de ruptura na política macroeconômica e nas políticas de desenvolvimento da “Era Lula” em relação à “Era FHC”?
Creio que os termos continuidade e ruptura são muito fortes para caracterizar as políticas das duas presidências. É preciso lembrar, antes de mais nada, que as políticas de Estado não são adotadas ou implementadas no vazio. Cada uma tenta lidar e, em geral, transformar condições domésticas e internacionais específicas. Sem a consideração dessas condições, a comparação entre políticas tem pouco sentido. O cambio flutuante, por exemplo, certamente pode ser vinculado a uma concepção macroeconômica neoliberal, mas sua adoção foi um alivio para a indústria quando foi adotado em 1999. Mas hoje, em função das mudanças das condições internacionais e domésticas, a mesma política vem causando enorme constrangimento à expansão industrial e à sua competitividade internacional. Em segundo lugar, embora se possa comparar os períodos Lula e FHC, não podemos esquecer que cada um presidiu dois governos, havendo algumas diferenças importantes entre eles, inclusive no que diz respeito às políticas macroeconômicas. Acredito que temos que tomar isso em consideração, caso quisermos pensar as diferenças entre os dois períodos presidenciais.
Isso posto, creio que há entre as duas presidências muita continuidade, sim, mas no sentido de que elas dão sequência à construção — muito disputada, é verdade — de uma nova forma de Estado, moderadamente liberal e democrática, cujo alicerces são a Constituição de 1988 e as reformas liberalizantes que acompanharam o Plano Real. Os governos presididos por Lula não desfizeram estes alicerces, continuaram a construção, embora tenham feito muito pouco em termos institucionais. Os problemas centrais com que cada governo teve que lidar foram muito diferentes. O da estabilização dominou completamente o primeiro governo FHC. No segundo governo, FH tentou trocar o foco para o desenvolvimento, mas a crise cambial e política, as crises externas e a ameaça de apagão inviabilizaram aquele projeto inicial. No primeiro governo Lula, a questão da estabilidade ainda foi central, principalmente no começo quando ele teve que lidar tanto com a herança da crise externa (originada na Argentina) quanto com a instabilidade decorrente do receio do “mercado” em relação à vitória da oposição.
O governo enfrentou muito bem estes desafios, mas ao “custo” de manter a nova ortodoxia legada pelo anterior. Tenho que usar aspas, pois acho que, para a maioria dos partidários do PT, a preservação das políticas macroeconômicas de FHC foi um custo. Mas, além disso, foi em minha opinião um ônus para o país, porque isso tornou aquela política um fetiche, intocável, não importam as circunstâncias. Esta herança não vinha só do governo FHC, mas também do período anterior a ele, derivada do passado que ele manteve. Parte deste legado funciona até hoje como uma canga que passou a nos oprimir, depois que a estabilização monetária deixou de ser o foco principal da política econômica do governo. A pressão bem-sucedida para manter depois aquela política acabou por enfraquecer, creio, o impulso para mexer, por exemplo, nas regras de mercado e na política de juros, desenhadas — como assegura o Nakano, da FGV — para enfrentar a instabilidade inerente a um ambiente inflacionário, mas mantida depois da estabilização. O bom senso interessado do “mercado” se impôs na gestão Meirelles, e o resultado é que, mesmo sem dívida externa significativa e com uma dívida interna palatável, continuamos a ter as mais altas taxas de juros do mundo. O pagamento destes juros absorve uma massa muito significativa de recursos públicos e tem consequências nefastas para a taxa de câmbio, desvalorizando o dólar de tal maneira que ameaça o desenvolvimento da indústria. Claro que minha opinião é de um não profissional da economia. Mas os profissionais não têm nos fornecido explicações muito convincentes sobre o nível de nossas taxas e, de forma geral, sobre nossos dilemas.
Seria adequado inferir que, tendo em vista os termos em que transcorreu o debate eleitoral e programático das eleições de 2010, foi legitimada uma agenda desenvolvimentista para o país? Quais seriam as implicações e desafios desse novo padrão no plano doméstico?
De fato, creio que o desenvolvimentismo está na agenda, mas tenho dúvidas de que predomine uma agenda desenvolvimentista. Mesmo no governo atual, em que a presidente é seguramente desenvolvimentista, não vejo que ele se mova segundo uma agenda deste tipo nem que procure construir um consenso político em torno disso. O desenvolvimentismo — em sua versão liberal — disputa, como tem feito desde os anos 1990, com neoliberais e estatal-distributivistas a prioridade na orientação do Estado. Mas disputa em desvantagem. Embora tenhamos hoje políticas sociais bastante razoáveis — particularmente as de garantir aumentos reais para o salário-mínimo e de transferência de renda —, há pressão distributiva muito grande especialmente para funcionários públicos (há projetos no Congresso que, em nome da justiça salarial para algumas categorias de servidores, ameaçam esgotar os recursos públicos).
Ora, isso compete com o “equilíbrio das finanças públicas”, mantra dos liberais, e com os “investimentos públicos”, mantra dos liberal-desenvolvimentistas. Uma agenda desenvolvimentista demanda produzir mais acordo sobre as prioridades, e isso é sempre difícil. O empresariado industrial, eventual suporte do desenvolvimentismo, é um ator coletivo cada vez mais fraco. A dinâmica eleitoral ajuda as políticas distributivas, e o “mercado” e seus porta-vozes espalhados na mídia ajudam a ortodoxia macroeconômica. Além disso, implantar uma política desenvolvimentista é difícil porque há, aparentemente, uma extraordinária ineficiência do Estado em realizar programas, coisa que nenhum governo gosta de reconhecer. Uma simples comparação entre as despesas orçadas e gastas efetivamente no PAC no segundo governo Lula já assusta. Mas não estou falando apenas do governo anterior. Creio que temos um problema político-administrativo no setor público que mais cedo ou mais tarde teremos que identificar e enfrentar.
Apesar das dificuldades, que eu talvez tenha sublinhado demais, estamos nos aproximando talvez de uma conjuntura crítica que vai exigir de nós brasileiros a construção de mecanismos que permitam aumentar significativamente a taxa de investimento público e privado, sob pena de não conseguirmos construir o suporte material à altura de nossas ambições sociais e políticas.
A aspiração a um ciclo de desenvolvimentismo, qualquer que seja, esbarra em relações de interdependência com atores políticos e econômicos internacionais. Na sua avaliação, quais seriam os principais constrangimentos externos?
De fato, há certos parâmetros internacionais que não temos como mudar. Não podemos impedir que os EUA inundem o mundo de dólares nem que a China mantenha uma taxa de câmbio muito desvalorizada. Ou que a fragilidade da economia argentina leve a políticas protecionistas que prejudicam nossas exportações para lá. Não podemos alterar o fato, também, de que nosso parque industrial é dominado por transnacionais. Entretanto, todos estes e outros parâmetros não podem ser vistos apenas como restrições, como elementos negativos. Por vezes, eles têm efeitos negativos e positivos. Eles exigem de nós políticas mais elaboradas que possam fazer com que funcionem mais em favor do nosso desenvolvimento. Ao invés de restringir a atuação das multinacionais, nosso interesse é que elas aumentem as plantas produtivas que mantêm aqui e, especialmente, sediem no Brasil parte de seus centros de produção de tecnologia. Que as empresas nacionais não sejam apenas fornecedoras de produtos feitos com mão de obra barata ou meras maquiadoras, mas ganhem capacidade de competição pela inovação.
O ponto central aqui é sermos um polo relevante de crescimento do capitalismo — que hoje não pode ser pensado em escala nacional. Desta expansão produtiva depende a incorporação em atividades econômicas regulares dos cerca de 25% de brasileiros que vivem de transferências de renda. Depende também a elevação do padrão de vida dos trabalhadores da base da pirâmide. Esta é a “distribuição” produzida pelo investimento que pode expandir para todos a possibilidade de uma vida decente. Esta é uma condição material fundamental para assegurar e expandir um modo democrático de vida. Da capacidade de inovação do sistema produtivo aqui instalado e dos centros de produção de ciência e tecnologia a ele conectados vai depender em que nicho da economia mundial do Brasil vai se situar. Creio que a preservação da ascensão brasileira no plano mundial dependerá, entre outros fatores, dessa expansão quantitativa e qualitativa de nossa base material. Infelizmente, ainda não encontramos o arranjo político-econômico que permita avançar nisso com velocidade.
Seguindo a mesma linha, e considerando os embaraços e empecilhos da regulação do comércio internacional (vide os impasses da rodada Doha), as dificuldades de recuperação da economia norte-americana, o fluxo de capital externo, a crescente importância da China ou os impasses do Mercosul em sua institucionalização e na integração regional, quais os principais temas e dilemas da política externa brasileira?
A política externa brasileira tem uma grande continuidade pelo menos desde o começo dos anos 1990. Ela se move em torno da diretriz da “integração competitiva”, procurando elevar o posicionamento do Brasil na construção e gestão da ordem mundial surgida a partir do fim do mundo soviético. Trata-se de uma estratégia difícil de implementar para uma potência média — econômica e militarmente — em um mundo de múltiplas potências de grande porte. Apesar dos percalços, ela parece estar sendo bem-sucedida. A exceção aqui é o Mercosul, cuja construção como união aduaneira e com maior abrangência tem sido talvez mais lenta do que o esperado. Mas não gostaria de ir muito além, porque não tenho acompanhado isso muito de perto e não sou especialista no assunto.
A transição para a democracia marca uma dupla mudança: de regime político e do modelo de Estado. A essa transformação também corresponde uma séria crise de hegemonia, só reconstruída tempos depois com o primeiro governo de FHC, uma nova maioria parlamentar, a agenda da estabilidade e uma orientação liberista. No período atual, que tipo de hegemonia temos?
Como mencionei antes, o Estado que temos desde 1995 — para fixar uma data — é atravessado por três orientações distintas no que diz respeito à economia. Uma baseada no ideário neoliberal, mais elaborado intelectualmente e mais definido quanto às recomendações práticas, cuja principal demanda tem sido, além da ampliação do peso da iniciativa privada e da liberdade de mercado, a da estabilidade monetária. Uma segunda orientação baseada no ideário da “inserção competitiva” no capitalismo mundial (ou liberal-desenvolvimentista), que procura ajustar o velho nacional-desenvolvimentismo — constituir no Brasil um sistema econômico produtivo diversificado e integrado — ao novo contexto mundial em que predomina o liberalismo e a competição em escala global; sua demanda principal tem sido por investimento produtivo. Por último, uma terceira orientação baseia-se em um ideário que podemos denominar “estatismo distributivo”, que procura combinar presença forte do Estado, inclusive na produção, tendo em vista produzir uma “democracia substantiva” com repartição da renda para os assalariados e “excluídos”; sua demanda central é controle estatal para garantir a “distribuição”.
Cada governo desde 1995 tem dado maior ênfase a cada um desses ideários, mas eles sempre estiveram e estão presentes nos vários governos. Em nenhum momento, porém, alteramos o predomínio dos interesses financeiros na sociedade e nas políticas de Estado. As políticas liberal-desenvolvimentistas e estatal-distributivas têm sido executadas sempre respeitando aquele predomínio. Examinando as coisas mais de perto, vê-se que nenhum dos governos desde 1995 sequer tocou no perfil da distribuição da propriedade existente no pais. Esta questão sequer está na agenda; e, que eu saiba, nem as estatísticas que possam existir sobre isso são públicas. A esquerda vem se contentando com programas de transferência de renda, elevação real do salário-mínimo e políticas facilitadoras da mobilidade social. Elas nada mais são do que políticas tendentes a “civilizar” o capitalismo, que décadas atrás classificávamos como “selvagem”. Não há, porém, que minimizá-las, pois a miséria é tão grande e atinge tanta gente no Brasil que tais transferências são vitais, ao menos enquanto não conseguirmos encontrar um caminho para crescermos mais rápido de modo a pelo menos incorporar esta população, de forma regular, ao sistema produtivo.
Em recente entrevista, o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros afirma que o governo de Dilma estaria “à esquerda” em relação ao de Lula porque seria mais “ideológico” e “intervencionista”. Em que medida essa percepção está correta e quais seriam suas eventuais consequências?
O que seria mais à esquerda hoje? Ser mais estatista? Não creio, pois boa parte das políticas de Estado — tributária, de regulação, alguns fundos, etc. — são extremamente onerosas para o conjunto dos assalariados. Mais Estado não significa sempre mais igualdade. Pode significar mais privilégio. Nossa história devia ter nos ensinado isso. Ou não tivemos taxas extraordinárias de crescimento — impulsionadas por grande intervencionismo estatal — com extrema concentração da renda? Esta combinação de Estado com privilégio se repete na política salarial e previdenciária para uma parte dos funcionários públicos. Em suma, ter a igualdade no horizonte, creio, está no cerne do que é ser “de esquerda”. Certas políticas “liberais” podem às vezes estar à esquerda, porque rompem com privilégios arraigados seja de segmentos do empresariado, seja de setores “especiais”da administração pública.
O professor Wanderley Guilherme dos Santos defende a tese de que, durante a “Era Lula”, tivemos uma ruptura definitiva com o populismo porque os padrões de inclusão tiveram um caráter mais universalista, diferente, portanto, da “cidadania regulada” própria dos tempos varguistas. O que pensa dessa proposição?
Creio que foi a Constituição de 1988 que rompeu com a cidadania regulada – com o SUS, com a política de assistência social, regulamentada pelo governo Itamar Franco, etc. O que o governo Lula nos legou foi uma política formalizada de aumento real do salário-mínimo — a que existia antes, desde 1994, não era formalizada — e uma expansão extraordinária das políticas de transferências de renda, o que não é pouco, mas isso cumpriu de uma certa forma a decisão de 1988.
O impeachment do presidente Collor revela um papel proeminente dos partidos políticos, também contrariando certas tendências da literatura política e sociológica de tratar nosso presidencialismo como um sistema frágil e intrinsecamente instável. Passados quase 20 anos daquele momento crítico, como o Sr. avalia o desempenho do nosso sistema decisório, em particular o papel desempenhado pelos partidos?
De fato, o impeachment de Collor legou para o sistema político a “lição” da necessidade de compartilhar o Executivo com os partidos políticos que tenham bancadas significativas no Congresso. Este compartilhamento vem permitindo ao Executivo contornar o poder que a Constituição de 1988 deu ao Legislativo, impondo a ele sua agenda. Os governos que o sucederam têm seguido a lição de maneiras variadas. Nos governos FHC havia mais homogeneidade de orientação política na coalizão, pois a composição ia do centro para a direita. A esquerda ficou na oposição. Com a vitória de Lula, as coisas se embaralharam, pois sua eleição dependeu de alianças à direita, de modo que o governo tornou-se mais heterogêneo e, no segundo período Lula, bastante heterogêneo. Não creio que uma vitória da oposição nas próprias eleições presidenciais possa mudar substancialmente isso. A oposição será obrigada a fazer alianças à esquerda, se quiser chegar à vitória.
Esta heterogeneidade das coalizões torna, como é óbvio, muito difícil dar direção ao governo. Ao contrário das esperanças desatadas pelo movimento de democratização, estamos muito longe de chegar a ter um Estado com uma burocracia eficiente que permita aos vitoriosos nos processos eleitorais imprimir eficazmente uma direção ao Estado. Temos um Estado com uma burocracia estável, mas, em muitas áreas, pouco eficiente e parcialmente dominada por “cliques” clientelistas — em que as clientelas são não apenas potenciais votantes, mas também financiadores de campanha e até simplesmente “enriquecedores” de segmentos da elite política. Sublinho, porém, de novo, que há vários ramos do Estado cuja burocracia é tecnicamente competente e protegida do clientelismo. Obviamente, a questão da eficiência e do caráter republicano da administração pública não é apenas uma “questão administrativa”. Ela tem que ser pensada no interior da dinâmica do sistema político, eleitoral e partidário.
É correto afirmar que tivemos um processo de maturação das instituições políticas no período recente e que, de outro lado, temos a conformação de uma nova sociedade (urbana, mais escolarizada, com mais mobilidade e ascensão, etc.)? E sobre a relação entre sociedade e instituições políticas, é possível dizer que hoje há mais sintonia entre as demandas daquela e as respostas destas?
Creio que vivemos um período de grande estabilidade política, e o crescimento econômico, ainda que limitado, a expansão do crédito e das oportunidades de educação (mesmo de baixa qualidade) vêm permitido maior afluência social. Mas creio que se faz demasiado alarde sobre a nossa mobilidade social; o que há mais é uma melhora das condições materiais de vida de uma faixa de assalariados e de pequenos empreendedores que antes não tinha acesso a certos itens de consumo — ao alcance apenas das classes médias e superiores. Isso “civiliza” uma parte dos assalariados, mas não significa necessariamente mobilidade vertical. Em pouco tempo, creio, teremos os resultados de grande pesquisa sobre classes e mobilidade dirigida pelo Nelson do Valle, que permitirão avaliar melhor a quantas andamos em relação a isso.
De qualquer maneira, acho que o movimento pela democratização, cujo ápice foram os anos 1980, continua produzindo impactos benéficos até hoje, tanto no plano político como no social. Claro que estas realizações estão longe de realizar os sonhos democratizantes daquela década. Somos ainda uma sociedade extraordinariamente desigual, e a melhora das condições materiais de certa camada de assalariados e da massa que vive na extrema pobreza não alterou isso de forma substancial. No entanto, tenho a impressão — é mesmo ainda uma impressão — de que o regime que construímos já dá sinais de falta de vigor. Parece que o Estado que construímos começa a se mostrar incapaz de realizar os sonhos dos 1980, de conduzir a sociedade brasileira a um grau social e politicamente satisfatório de desenvolvimento.
O ex-presidente FHC foi muito criticado por propor que a oposição esquecesse o “povão” e se preocupasse mais com segmentos intermediários emergentes. A esse entendimento subjaz a percepção de que a sociedade brasileira mudou bastante nas últimas décadas, mas, afinal, que tipo de sociedade emergiu após a década perdida, a transição democrática, a estabilização e os novos formatos da inclusão?
Creio que se criticou muito sem ler o documento de FHC. Fazia muito tempo que eu não lia um documento político-estratégico como este. Creio que se pinçou no texto uma frase mal construída e se fez dela uma espécie de reconhecimento do senso comum, daquilo que usualmente se acusa os tucanos, de alheamento em relação ao “povão”, de elitismo, etc. Incrível que isso ocorreu mesmo entre alguns tucanos. Ora, o que se trata lá é da inserção social de um partido, de um partido cujo principal adversário, o PT, tem inserção societária forte e tem a seu favor, hoje, o controle das políticas públicas e, portanto, a capacidade de atender em melhor medida as camadas mais pobres da população.
Isso me permite sublinhar algo que se tem enfatizado pouco, ou sequer apontado, a propósito nosso sistema partidário. Uma de suas características chave é que este sistema é totalmente desequilibrado, no sentido em que ele tem um partido, o PT, articulado com movimentos populares e organizações de trabalhadores, e os demais não têm esta inserção societária, embora conservem os vínculos clientelistas usuais na política brasileira. A coalizão lulista e a que sustenta a atual presidente está ancorada nesses dois pontos de apoio. O documento de FHC chama a atenção dos seus correligionários justamente para a pouca viabilidade de um partido que não tem inserção societária articulada; que confia em ganhar eleição apenas com base em uma retórica eleitoral com afinidade com os valores da classe média. O esquecimento a que foi relegado, aparentemente, o documento, depois das “repercussões” na imprensa, mostra a dificuldade de converter um partido de quadros em um partido socialmente articulado.
Collor, Itamar, FHC e Lula (ambos duas vezes) tiveram que formar maiorias depois das eleições. Desde a democratização, agora, pela primeira vez um governo é eleito já com uma sólida e majoritária base de sustentação no Congresso. Essa nova situação altera substantivamente o sistema de barganhas políticas e aumenta a governabilidade, ou apenas amplia o poder de fogo do PMDB e de outros aliados?
Você tem razão em relação às diferenças entre os governos anteriores e Dilma. Esta foi eleita pela própria coalizão que tem hoje responsabilidade de governo. O PMDB só participou da coalizão de governo e não da que elegeu FHC em 1994 e Lula em 2002. Essa participação na coalizão eleitoral dá mais autoridade aos partidos na hora de demandar posições no governo. Mas creio que a questão da “governabilidade” deve ser pensada, ao mesmo tempo, como sustentação parlamentar e como direção política. Às vezes, a amplitude da sustentação vai em sentido inverso à capacidade de imprimir direção, da capacidade de definir um rumo que oriente o conjunto da coalizão. A base partidária do atual governo é muito grande, mas não é sólida. Sua solidez depende — no esquema clientelista que vivemos — da capacidade do governo articular sua coalizão. Isso é tanto mais necessário porque, à falta de um ideia-força que convença os aliados, fica-se reduzido ao atendimento maior ou menor, mais ou menos “justo”, das demandas da base. O tamanho da base parece dar ao governo mais capacidade de manobra, mas torna complicada a administração das demandas. Se não houver, além disso, vantagens eleitorais em aliar-se a um governo com prestígio popular, o tamanho não dará tranquilidade ao governo. Embora a trajetória do governo Dilma até agora tenha sido bastante acidentada, eu não arriscaria projetar isso para o futuro. Os governos, como as pessoas, aprendem com as dificuldades. Temo, apenas, que o aprendizado signifique aumento da tolerância com o malfeito.
Alguns analistas ressaltam a “simplificação” do quadro partidário mediante um bipartidarismo informal entre PT e PSDB (sintetizado nas últimas cinco disputas presidenciais), que, inclusive, passou a reorientar a conduta destes e de seus aliados nas disputas estaduais. Em sua opinião, essa tendência deve continuar nas próximas eleições ou é possível projetar novas disputas com novos atores? O PSD pode alterar essa dinâmica?
Tanto quanto eu possa prever, a tendência no futuro imediato é de manutenção da polarização. Além de quadros, o PSDB tem o controle de vários estados importantes da federação, o que faz dele um adversário relevante. Não creio, porém, que possa se sustentar a médio prazo apenas nisso. Terá que sair do canto do ringue, seja na direção da “sociedade organizada”, seja na direção de partidos à sua esquerda. Se não fizer isso, tenho a impressão de que terá poucas chances de sucesso ao enfrentar o PT. Mesmo se Lula não for o candidato em 2014.
Em relação ao PSD, não me parece que agregue muito. Deverá ser mais um partido clientelista entre outros. Aliás, esta polarização PT e PSDB pode organizar as alternativas disponíveis, mas enfraquece no plano político-institucional o impulso de mudança que vem da sociedade. Estes impulsos democratizantes e liberalizantes — que se expressam em doses diferentes naqueles partidos — têm sempre que se acomodar ao particularismo clientelista dominante nos demais partidos. Veja, não estou dizendo que PSDB e PT estão imunes ao clientelismo, mas que ainda têm capacidade de lutar por objetivos mais marcados pelo universalismo.
FONTE: REVISTA FAAC & GRAMSCI E O BRASIL
Um comentário:
Gilvan,
Perdi, com certeza, um ótimo artigo. Mas parei logo no início ao ler
"as duas presidências... dão sequência à construção ... de uma nova forma de Estado..."
Intolerantes como eu não suportam tanta tolerância. Ou será ingenuidade? Acho que vou ler o artigo todo. Devo estar enganada.
Um abração, Ju
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