Dez entre dez analistas afirmam que o controle sobre as finanças dos Estados-membros é condição necessária para salvar a Europa. Esta unanimidade não deixa de ser curiosa, pois há grande divergência sobre as causas do excessivo endividamento e, mais ainda, sobre as políticas emergenciais.
Os governantes europeus parecem fracos para tomar as medidas domésticas necessárias à saída da crise. Há quem diga que o problema é de falta de lideranças. Faltariam às democracias modernas líderes como Churchill, capazes de obter o sacrifício de seus cidadãos sob circunstâncias adversas. Churchill, contudo, foi fragorosamente derrotado nas eleições de 1945!
Políticas de ajuste fiscal impõem perdas aos eleitores. Logo, têm grandes chances de levar a derrotas eleitorais. Daí decorre a solução de montar governos "técnicos" ou de coalizão nacional, na tentativa de proteger os Ulysses europeus do (en)canto das urnas.
No plano doméstico, os governos tentam evitar a punição de seus eleitores. No plano europeu, o problema é evitar que medidas para salvar os endividados hoje gerem incentivos para mais endividamento amanhã. Está clara a razão do impasse!
A história é conhecida no Brasil. Até meados da década de 90, os governos estaduais tinham grande margem para captar recursos. Podiam comportar-se como cigarras ou formigas. Os governadores jogavam suas dívidas no colo da União à proximidade do inverno, contando com o fato de que, se deixados à própria sorte, exporiam todos ao risco da escassez.
Para que a União socorresse as cigarras, barganhas políticas entre governadores e presidentes nem seriam necessárias. Não se tratava de fraqueza de vontade ou da necessidade do presidente obter apoio parlamentar. Bastava o presidente reconhecer que poderia ser responsabilizado pela escassez geral na eleição seguinte. Por isto, a saída recorrente era a União assumir a dívida dos estados. Os bancos, por sua vez, continuavam a emprestar para governos sabidamente inadimplentes, a juros cada vez mais altos, pois contavam com o socorro da União, embora cada socorro fosse apresentado como o derradeiro. Esopo ficaria desolado: eram as cigarras que davam lições às formigas!
Como pôde o Brasil sair deste impasse? E por que uma solução parece longínqua para a Europa? Resposta intuitiva, porém incompleta, é de que a Europa é uma união de países independentes ao passo que o Brasil é um Estado-nação.
A principal diferença, na verdade, remete ao dilema de todos os sistemas de governo. Diz respeito à autoridade do centro. O problema institucional europeu é ser governado por um centro politicamente constrangido. A Alemanha enfrenta problema semelhante pelas mesmas razões. Por isto, os Länder são as maiores cigarras dentre os governos regionais da Europa e o governo federal alemão é frequentemente chamado a socorrê-los.
No Brasil, as instituições que permitiram ao presidente Fernando Henrique Cardoso aprovar a Lei de Responsabilidade Fiscal são as mesmas que permitiram ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva incorporar 12 milhões de famílias ao Bolsa Família no prazo recorde de um ano. A Constituição de 1988 autorizou a União a legislar em qualquer área de política pública, em particular naquelas cuja execução está sob responsabilidade de Estados e municípios. Os constituintes deram continuidade a um modelo de Estado cujas origens datam dos anos 30, que combina ampla autoridade jurisdicional à União com limitadas oportunidades de veto aos governos subnacionais.
Nem sequer uma emenda constitucional foi necessária para aprovar a Lei de Responsabilidade Fiscal e o Bolsa Família. Bastou aos presidentes fazer uso de recursos deixados à sua disposição pela Carta.
A Lei de Responsabilidade Fiscal está baseada nos artigos que conferem ao governo central autoridade sobre as finanças dos governos subnacionais. O Bolsa Família foi iniciado por medida provisória e aprovado como lei ordinária.
Na (con)federação europeia, as instituições centrais têm muito limitada autoridade para legislar sobre as finanças públicas e as políticas sociais dos estados-membros. Em seu desenho atual, iniciativas nesta direção podem ser facilmente vetadas por uma minoria em um referendo, na volta da padaria com os pães do café da manhã de domingo.
Nossos presidentes enfrentaram resistência para implantar aquelas medidas, a despeito de seus incontestes benefícios gerais. Governadores postumamente descritos como grandes estadistas resistiram às medidas de FHC para tirá-los da confortável condição de cigarras. Lula teve de contornar a resistência de governadores e prefeitos a colaborar com uma iniciativa que traria dividendos políticos ao presidente. As limitadas possibilidades de veto dos governos subnacionais permitiram a aprovação e implementação das medidas. Em ambos os casos, restou aos derrotados a estratégia de buscar dividir os louros da vitória.
Os dirigentes europeus não contam com esta fortuna, o que lhes exige doses muito superiores de virtude. A Europa de hoje é vítima do sucesso da Europa de ontem. Exportou para o resto do mundo o modelo do Estado-nação e dos Estados de bem-estar. As identidades construídas a partir deles estão na raiz da resistência ao alargamento da autoridade legislativa da União. Por isto, a solução do impasse europeu parece tão longínqua. Ela requer substanciais mudanças institucionais para fortalecer a União. Faltou combinar as decisões de 9 de dezembro, largamente festejadas, com os parlamentos e os eleitores. Perdoem-me o plágio: estas decisões não trarão paz definitiva para a Europa!
Marta Arretche é professora livre-docente de ciência política na USP, diretora do Centro de Estudos da Metrópole.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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