Guilherme Magalhães | Folha de S. Paulo
SÃO PAULO - "É muito tentador pensar no século 20 da Europa como um século de dois tempos completamente diferentes, talvez com uma prorrogação a partir de 1990."
É com essa metáfora futebolística que o historiador britânico Ian Kershaw, 73, —torcedor do Manchester United— inicia a empreitada de contar a história do continente europeu no conturbado século passado.
O primeiro de dois volumes, "De Volta do Inferno: Europa, 1914-1949", acaba de ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras e cobre os acontecimentos que vão do início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) até o estabelecimento da Europa dividida entre capitalismo e comunismo.
O segundo, que analisará a metade do século marcada pela Guerra Fria, tem publicação prevista para 2018.
Renomado pesquisador da Alemanha nazista e autor de diversas obras sobre esse período da história alemã, entre elas uma biografia de Adolf Hitler (1889-1945), Kershaw queria "expandir o panorama para toda a Europa e por todo o século 20, já que a catastrófica primeira metade do século é essencial para entender como a segunda se desenvolveu", afirmou à Folha.
Em meio à Grande Depressão, nos anos 1930, a política europeia se inclinou claramente para a direita.
O discurso centrista perdeu força entre as massas empobrecidas, notadamente na Alemanha. Imperava o medo do comunismo e o anseio pela ordem, o que foi prontamente oferecido pelos políticos nazifascistas.
É possível traçar um paralelo com a atual crise do discurso moderado no continente europeu, onde cada vez mais ganham força políticos da direita populista?
"Existem certos ecos, e as ansiedades atuais são muito compreensíveis", responde Kershaw. "Mas precisamos manter em mente as diferenças em relação aos anos 1930", diz o historiador.
Ele lembra que a Europa é hoje "um continente de democracias", enquanto que naquela década "a democracia era um sistema de governo profundamente contestado" —apenas 11 países do norte e oeste europeu tinham, na época, governos considerados democráticos.
Além disso, os militares desempenham atualmente um papel pequeno na política europeia, ao contrário do período entreguerras.
"E, não menos importante, a Europa tem em seu centro uma Alemanha pacifista e internacionalista, em absoluto contraste com a Alemanha dos anos 1930."
Sob a sombra da saída do Reino Unido, o chamado "brexit", a União Europeia estaria ameaçada em seu cerne? Ian Kershaw acredita que não. Mas, se a UE se desintegrar, "a paz e a estabilidade da Europa certamente estariam mais ameaçadas do que nunca estiveram nas últimas décadas".
ABISMO
O título do livro de Kershaw é uma referência ao período de quase autodestruição que a Europa protagonizou durante as duas guerras mundiais. Para ele, o continente "mergulhou no abismo". Não é para menos.
Se a Primeira Guerra e seus 10 milhões de mortos já haviam assombrado o planeta, os 40 milhões que perderam a vida na Segunda (1939-1945) somados ao horror do Holocausto elevaram o patamar de autodestruição a um nível nunca antes visto.
"As consequências morais de um colapso tão profundo da civilização se estenderiam pelo restante do século e além dele", escreve Kershaw.
O historiador elenca quatro fatores cruciais que motivaram a "catástrofe imensurável" que foi a Segunda Guerra: uma explosão de nacionalismo etnorracista; exigências irreconciliáveis de revisionismo territorial pós-Primeira Guerra; um agudo conflito de classes, intensificado depois da Revolução Russa (1917); e a crise do capitalismo ocasionada pela quebra da Bolsa de Nova York, em 1929.
Para ele, a paz na Europa passava pela Alemanha. Segundo Kershaw, "a sobrevivência da democracia alemã era a melhor garantia de paz e estabilidade futuras para a Europa. O que aconteceria se a democracia entrasse em colapso no país que era mais crucial para a Europa?", questiona.
Com a ascensão de Hitler ao cargo de chanceler, em janeiro de 1933, a democracia estava com os dias contados na Alemanha.
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