Obra foi motivada pela condenação injusta de um homem pela morte de seu filho
Martim Vasques da Cunha* / O Estado de S. Paulo /Aliás, 14/1/2018
No dia 9 de março de 1762, o negociante Jean Calas, de 68 anos, oriundo da pequena cidade francesa de Toulouse – segundo seus vizinhos “um bom homem praticante da religião protestante” –, foi condenado à morte pelo assassinato do seu filho Marc-Antoine, convertido ao catolicismo. O garoto se enforcara em uma porta, e aparentemente tirara a vida porque não conseguira cumprir suas dívidas de jogo.
Mas não foi assim que o tribunal de Toulouse viu a situação. Para ele, Calas era um “fanático anticatólico” – uma acusação grave em um país que ainda se recuperava do massacre da Noite de São Bartolomeu, ocorrida em 1562, no qual 4 mil protestantes (huguenotes) foram trucidados a mando da família do rei Carlos IX. O negociante foi executado no “suplício da roda”: o indivíduo ficava esticado numa roda de madeira, quebravam-se seus ossos e membros, e, completamente estraçalhado e já morto, era exposto ao público como exemplo. Dias depois, o corpo de Calas foi jogado em uma fogueira. Até o fim, alegou sua inocência que, enfim, seria provada e sentenciada postumamente pelo tribunal de Paris, em 1765, por coincidência no mesmo 9 de março.
Em 3 de maio de 2014, um domingo, a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, do Guarujá, segundo seus familiares uma excelente mãe de dois filhos, “conversadeira e alto astral, vulnerável e inofensiva” – pois tomava medicamentos para controlar o transtorno bipolar diagnosticado após sofrer um aborto espontâneo –, fazia compras num minimercado quando passou a mão na cabeça de uma criança que estava na rua e lhe ofereceu uma fruta. Segundo os juristas Letícia de Souza Furtado e Wilson Franck Júnior em artigo acadêmico publicado na revista Iurisprudentia, “nesse instante, alguém teria apontado a mulher como sendo a ‘bruxa da internet’, porque ela era supostamente semelhante a uma figura representada em difundido retrato falado”, uma “feiticeira” que sequestrava crianças da região para rituais satânicos, arrancando-lhes os olhos e o coração.
O linchamento foi implacável. Durante duas horas, Fabiane “foi jogada num mangue, depois de ter sido amarrada com arame, arrastada, espancada, agredida com uma roda de bicicleta e com pedaços de madeira”. Por uma ironia macabra, a bíblia de capa preta que carregava consigo naquele dia foi vista como prova definitiva do seu “satanismo”. Internada em estado grave naquele mesmo dia, Fabiane morreu no dia 5 de maio, uma segunda-feira. A vergonha tomou conta de quem participou daquele ato hediondo ao perceber que se tratava de uma inocente – e a sensação de horror se acentuou ainda mais quando se descobriu que o evento foi filmado e divulgado nas redes sociais, com momentos escabrosos como o de alguém que, ao ver Fabiane estirada no chão e ao perceber que ela tentava dizer alguma coisa, apenas xingou: “‘Uh’ é o c*, filha da p*. Agora é ‘uh’, né?”.
O caso de Jean Calas foi o estopim para que François-Marie Arouet (1694-1778), conhecido como Voltaire, escrevesse um dos textos mais famosos de todos os tempos – o Tratado Sobre a Tolerância, publicado em 1763, e agora recentemente lançado no Brasil com nova tradução e notas de Leandro Cardoso Marques da Silva (Edipro, 127 págs.). As épocas são diferentes, mas a semelhança no comportamento humano é assustadora, ao compararmos a tragédia de Calas com a de Fabiane de Jesus. A única diferença é que, infelizmente para quem acredita que Voltaire ainda tem algo a dizer, o seu Tratado tornou-se uma peça de museu que cheira a mofo.
Voltaire nunca teve a coragem intelectual de perceber que o verdadeiro assunto do seu libelo a favor de Calas não era a tolerância ou a intolerância, mas sim a única constante na natureza humana: a capacidade de praticar o Mal com todos ao nosso redor, independentemente do credo, da raça, do país e da riqueza. Como bem explicou Eric Voegelin no sexto volume da sua História das Ideias Políticas, apesar da sinceridade e compaixão ao defender a dignidade da razão e do homem, Voltaire foi o pioneiro ao inaugurar o tipo de intelectual público que acredita estar no ápice de uma época que, por sua vez, estaria no ápice da civilização humana (o Iluminismo) – e, possuído pelo “fogo da tolerância”, atacaria a superstição e a perseguição religiosas. Ele não compreendia os mistérios da vida espiritual e, assim, a sua solução era vê-los como obstáculos a serem eliminados da cena pública porque eram um escândalo para o homem iluminado.
Segundo Michael Polanyi, tolerância seria a capacidade de ouvir uma afirmação hostil e injusta dita por um oponente e descobrir nela tanto os pontos de comum acordo como as razões que existem por trás dos seus erros. No Tratado, Voltaire não faz nada disso. Após relatar o caso Calas com uma precisão literária invejável, esquiva-se do assunto para fabricar uma narrativa histórica, que vai de Roma à Europa do seu tempo, passando pela Israel dos profetas. Nela, a intolerância combate a tolerância, na crença apocalíptica de que, no final, somente a razão sairá vitoriosa porque, olhem só, o próprio Voltaire fará esse serviço por todos nós.
Fica evidente aqui porque a brasileira Fabiane de Jesus não teve um Voltaire para chamá-lo de seu. Na verdade, o francês fez o que todo intelectual pratica em seus escritos: abstrai o Mal intrínseco ao ser humano e apela a uma palavra vazia de sentido, mas comovente ao público em geral – a tal da “tolerância” –, sem entender que a vida religiosa, se for compreendida corretamente (e não usada com meios políticos, como foi o que aconteceu no caso Calas), pode impedir com eficácia a violência que há dentro de nós.
No seu belo Pré-História & História (É Realizações, 365 págs.), o historiador Maurício G. Righi, inspirado na teoria do bode expiatório de René Girard, argumenta que o ser humano realiza uma peregrinação civilizacional. Começa com o homo urbanus, habitante das cidades construídas sobre sacrifícios repletos de mortes hediondas, ao homo necans, o caçador que precisa matar para sobreviver neste mundo cruel, e termina com o homo spiritualis, o sujeito que controla o Mal dentro de si porque decide imitar algum Deus que o faça superar os seus vícios e conquistar a virtude que ainda habita no seu coração.
Righi tem pontos em comum com Claudio Magris que, no ensaio The Fair of Tolerance, escreve que, para manter a unidade social, a tolerância só será justa se for observada a existência de princípios não negociáveis. São as leis não escritas dos deuses meditadas por Sófocles na Antígona, aquilo que não se pode negar a existência de forma alguma porque são a base da realidade objetiva na qual o ser humano vive. Quem negar isso, cairá naquele alçapão da loucura que Dostoievski descreveu tão bem como “tudo é permitido” e no qual o caos torna-se uma instituição.
Para Magris, essas “leis não escritas” são compreendidas sempre à luz da razão humana e consistem neste centro de experiência comum que compõe e solidifica a cultura ocidental. É justamente essa experiência permanente para todos que o escritor triestino identifica como a verdadeira “laicidade”.
Ser “laico” não significa ser contra a religião; significa respeitá-la como uma experiência factual e que molda outras culturas; significa usar a luz da razão humana para compreender que existem outras coisas além da nossa vã filosofia; significa que, para a religião cristã que moldou o continente, deve-se também respeitar qualquer outra religião – e esta não pode desrespeitar os princípios não-negociáveis (e vice-versa).
Ora, o que o autor de The Fair of Tolerance defende é o contrário do que afirma Voltaire. Para o francês, a tolerância só pode existir se a religião for vista como uma mera superstição. Já para Righi e Magris, o fenômeno religioso é o fundamento da verdadeira tolerância – a que obriga o ser humano a dominar a si mesmo, sob quaisquer circunstâncias extremas. Portanto, jamais pode se negar que a única igualdade democrática dos nossos tempos é a prática do Mal, do berço ao túmulo. Não por acaso, o Voltaire de Fabiane de Jesus foi ninguém menos que o coveiro que a enterrou. Ao observar a loucura daquela situação, ele apenas disse aos jornalistas que cobriram o evento, extremamente comovido: “A mulher tem Jesus no nome. Foi espancada, apedrejada e injustiçada que nem ele. Tinha a mesma idade do Cristo. Dois mil anos depois, não mudou nada.”
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*É autor dos livros 'Crise e Utopia - O Dilema de Thomas More' (Vide Editorial, 2012) e 'A Poeira da Glória - Uma (Inesperada) História da Literatura Brasileira' (Record, 2015); Pós-doutorando pela FGV-Eaesp
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