- O Estado de S.Paulo
Ministros de tribunais superiores insistem em decisões monocráticas segundo agenda própria
Com a sucessão de críticas ao Supremo Tribunal Federal (STF), no sentido de que vem julgando situações iguais de modo diferente e de que seus ministros estariam usurpando o poder democrático por meio de decisões monocráticas, o tema da judicialização voltou com força à agenda. Veja-se, por exemplo, o discurso de posse do novo presidente da Suprema Corte, que falou menos como magistrado e mais como político. Veja-se, também, a estratégia adotada pelo PT na campanha presidencial. Tendo durante meses desqualificado o pleito por causa da inelegibilidade de seu verdadeiro candidato, o partido optou por inundar os tribunais com recursos judiciais, para tirar todos os dividendos eleitorais possíveis dessa iniciativa. Só no caso da tentativa de registro de seu real candidato foram protocolados 17 recursos.
A judicialização da política surgiu em muitos países a partir da segunda metade do século 20. No Brasil, ganhou impulso com o surgimento da ação civil pública. Criada em 1985, ela permite que um grupo ou uma instituição possa apresentar-se como representante de uma coletividade, substituindo-a processualmente. Utilizado em larga escala em decorrência da multiplicação dos movimentos sociais e entidades de defesa de direitos humanos empenhados em assegurar o acesso de segmentos desprotegidos aos tribunais, esse instrumento processual deu visibilidade a diversas reivindicações, como as que a pedem a concretização dos direitos sociais assegurados pela Constituição.
Ao colocar essas reivindicações sob a forma das técnicas e especificidades do Direito, a judicialização não se limitou a multiplicar o número de litígios plurilaterais no Judiciário e a colocar em novos termos a aplicação de direitos difusos e direitos coletivos. Também exigiu de promotores e juízes novos argumentos e novas fundamentações legais. E ainda envolveu os tribunais em atividades até então tidas como exclusivas do Executivo. Isso ocorreu com as ordens judiciais para que esse Poder destinasse recursos financeiros para a implementação de programas sociais, o que levou o Judiciário a interferir crescentemente na produção e distribuição de bens coletivos e em suas formas de financiamento. Esse modo de agir dos tribunais ampliou o alcance do STF, cujo papel é garantir as liberdades públicas, preservar o Estado de Direito e impedir que maiorias políticas manipulem as regras do jogo em proveito próprio. Mas no exercício desse papel, e diante do desafio de readequar a ordem jurídica a um processo de redemocratização que, após a promulgação da Carta de 88, converteu a política em múltiplos espaços de conflitos coletivos, o Judiciário deixou de ser um Poder fiscalizador do cumprimento das leis e assumiu funções transformadoras.
A ideia de que o Executivo, o Legislativo e o Judiciário deveriam ser independentes partiu da premissa de que a divisão dos Poderes assegura uma separação entre a política e o Direito. Em nome da harmonia entre os Poderes, regulamentou-se o exercício da política, considerada legítima no Executivo e no Legislativo, mas vedada no Judiciário. Este era visto como capaz de controlar os antagonismos políticos de modo imparcial. Com as mudanças sociais e econômicas na transição do século 20 para o século 21, o papel institucional do Judiciário voltou a se alterar, passando de controlador da constitucionalidade das leis para o de depositário da legitimidade constitucional, controlando até mesmo as emendas à própria Constituição. À medida que a sociedade se foi tornando mais complexa, criando novas possibilidades de ação e, por tabela, novos problemas e dilemas, esse tipo de controle deixou de ser voltado para o passado para saltar para o futuro. Em vez de se limitar ao que já aconteceu, preocupa-se com o que acontecerá e em que circunstâncias.
Com isso, em vez de se concentrar nos procedimentos formais inerentes às regras do jogo, os tribunais hoje também enfatizam a eficiência dos resultados. A atuação dos juízes deixou de ser pautada só pelos critérios de legalidade e passou também a ser balizada pelos princípios da eficiência, da economicidade e da justiça substantiva, com ênfase em temas como distribuição de renda, inclusão social e defesa das minorias. Isso explica por que muitos ministros de tribunais superiores insistem em tomar decisões monocráticas, com base numa agenda própria. Desprezando interpretações mais restritivas das leis, passaram a fazer interpretações criativas e a invocar princípios jurídicos para “fazer a História avançar”. O problema é que esses tribunais frequentemente se revelam despreparados quando a dinâmica dos fatos mais problemáticos se acelera e a capacidade de seus integrantes de avaliar seus efeitos é pequena, o que tende a criar insegurança jurídica e provocar crises institucionais.
Diante desse cenário, em que os conflitos de competência entre os Poderes acabam produzindo vácuos que vão sendo ocupados por juízes que imaginam deter uma independência individual como se fosse decorrência natural de seu cargo, há quem recomende enxugar a Constituição por meio da supressão de artigos e a aprovação de uma lei que criminalize o abuso de autoridade. A ideia é que essas medidas conteriam os poderes do STF, reduziriam o protagonismo de magistrados e permitiriam ao Executivo gerir a economia sem risco de travamentos judiciais. Mas em que medida essas estratégias são viáveis num período em que as formas hierárquicas do Estado e o princípio da tripartição dos Poderes têm de se adequar à expansão de redes sociais e mercados globalizados; a um mundo cada vez mais marcado por interdependências e policentralidades, onde a Justiça não tem mais o monopólio da resolução de litígios, perdendo espaço para a arbitragem?
Sejam quais forem as respostas a essas questões, a judicialização da política é um problema mais complexo do que transparece no debate político.
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*Professor titular da Faculdade de Direito da USP e professor da Fundação Getúlio Vargas
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