- O Globo
O vazamento chega em péssima hora para o regime da China, suficientemente ocupado com a teimosa insurgência em Hong Kong
Vazamentos de documentos secretos na China de XiJinping são raros. Daí o valor do brado do material publicado dias atrás pelo “New York Times”, e complementado por lote igualmente devastador obtido pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (Icij,na sigla em inglês). Ambos tiveram acesso a centenas de discursos e diretivas internos sobre a “reeducação” imposta às minorias étnicas muçulmanas, em particular os dez milhões de uigures da rica província de Xinjiang. O território situado no norte do país faz fronteira com o Paquistão e o Afeganistão, duas nações de maioria muçulmana, e é visto pelo regime de Pequim como incubadeira de terroristas islâmicos. Por isso, recebe o tratamento reservado a desviantes ideológicos.
Há anos denúncias de opressão contra os uigures emergem aqui e ali, sempre negadas por Pequim. Agora, com o vasto material vazado ao que parece por um membro do próprio Partido Comunista, a questão muda de figura. O vazamento chega em péssima hora para o regime da China, suficientemente ocupado com a teimosa insurgência nas ruas de Hong Kong. Os documentos mostram que o recurso a uma “cura ideológica” foi iniciado pelo camarada Xi em 2014, pouco após um atentado uigure a mais de 150 pessoas numa estação ferroviária da província, com 39 mortos. Na época, em discurso reservado, o presidente exigiu o uso de “ferramentas da ditadura do povo democrático, sem misericórdia”.
Sugeriu que o partido adotasse algumas práticas da “Guerra ao terror” decretada por George W. Bush em 2001, além de outros métodos clássicos como a delação popular e confissões estalinistas. Também passou a fazer parte do cardápio de repressão o emprego maciço de reconhecimento facial, testes genéticos, big data e uma plataforma de inteligência artificial destinada a prever crimes.
Sem falar na implantação de uma teia de campos de internamento forçado, cuja matriz data da Revolução Cultural de Mao TséTung . De uma hora para outra, sem aviso ou processo judicial, famílias inteiras, vizinhos, colegas de trabalho e funcionários públicos simplesmente começaram a sumir. Estima-se que mais de um milhão de chineses das etnias uigur e cazaque estejam confinados. Repetindo: mais de um milhão. A ponto de ser necessário elaborar um protocolo específico para lidar com a massa de estudantes que retornam no período de férias e encontram a casa vazia. A ordem é interceptá-los no momento da chegada, e estar preparado para explicar por que os pais, avós, parentes ou vizinhos desapareceram.
Segundo instruções por escrito, a resposta à esperada pergunta inicial —“Onde está minha família?”—deve ser mansa: “Está numa escola de treinamento do governo”. Em seguida, é explicado que “esse período de aprendizado é gratuito, alojamento e comida também... e se você quiser vê-los podemos proporcionar um encontro por vídeo”. E que o próprio estudante de férias, através de um sistema de pontuação por bom comportamento, pode apressar ou delongar o tempo de reclusão dos parentes. Em média, quem cai na malha passa mais de um ano isolado, só sendo libertado quando receber aprovação de quatro comitês do partido.
Caso o estudante insista com indagações mais inquisitivas, a intimidação aperta: os parentes sumidos teriam sido “infectados pelo vírus do radicalismo”, a quarentena se destina à sua cura, e ele deve ser grato ao partido por seus familiares receberem “sólidos alicerces de uma vida familiar feliz”. Segundo o manual, a pergunta “Eles cometeram algum crime? ”deve ser respondida em negativa condicionante: “Apenas o modo de pensar deles foi infectado. A liberdade só é possível quando este vírus for erradicado e eles voltarem a ser saudáveis”.
Esses jovens pinçados pelo regime para estudar nas melhores universidades do país e formar uma nova geração mais leal ao partido em Xinjiang são de interesse máximo para Pequim. Por terem estabelecido laços sociais na faculdade, são vistos como risco, caso emitiam “opiniões de impacto e difíceis de erradicar” em plataformas como WeChat e Weibo. Embora monitoradas pelo regime, mesmo na China comunista mídias sociais são um pesadelo.
Ainda esta semana, uma adolescente afegã-americana deu um baile no regime de Xinjiang. Feroza Aziz, 17 anos, olhos aveludados e residente em New Jersey, postou o que parecia ser apenas mais um vídeo caseiro com dicas de maquiagem. Abordoda plataforma TikTok, muito popular na China por seus memes e concursos de karaokê, Feroza inicia o tutorial de como deixar os cílios mais curvados de forma banal: “Primeiro, você precisa de um curvador, depois, claro, você vai curvar seus cílios”. A partir daí, sem mudar um átimo no tom de voz nem pular uma fração de segundo, ela engata: “Agora largue o curvador, pegue o celular que você está usando e vá pesquisar o que está acontecendo na China, onde tem campos de concentração, maltratam muçulmanos, separam famílias...”. Antes que Pequim pudesse piscar, o post tinha sido visto por mais de 1,5 milhão de pessoas, recebeu 501 mil e gerou 600 mil comentários. E quando pousou no Twitter, portanto fora do alcance da censura chinesa, viralizou: mais de 6,5 milhões de views.
Feroza, Greta, os colegiais de Hong Kong —a garotada de hoje anda impossível.
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