domingo, 1 de dezembro de 2019

Vinicius Torres Freire – Bolsonaro, a calúnia como método

- Folha de S. Paulo

Livro tenta explicar a raiva carnavalesca da política das redes insociáveis

O bolsonarismo recorre com frequência à calúnia pusilânime a fim de atiçar milicianos virtuais contra “inimigos do povo”. Depois de introduzir um assunto com um “parece”, um “há suspeita”, Jair Bolsonaro costuma avançar para uma acusação, que por sua vez seria prova de alguma conspiração contra ele e o Brasil. Logo esquece que levantava apenas uma hipótese.

Bolsonaro pode ter escorregado para a calúnia estrita em seu programa semanal ao vivo, na quinta passada. Afora difamações, acusou ativistas ambientais e sociais do Pará de incendiarem a floresta. Sem evidência de crime dos militantes, Bolsonaro terá cometido crime de calúnia.

“Estava circulando uma foto dos quatro ongueiros, vi agora pouco aqui, parece que é verdadeiro, não tenho certeza, né, os caras vivendo em uma luxúria de fazer inveja para qualquer trilionário que anda pelo mundo. Ganhando a vida como? Tacando fogo na Amazônia!”, disse Bolsonaro.

Bolsonaristas repetiram a acusação temerária com desassombro sociopata. Não se trata de engano ou explosão de raiva ocasionais. É a vida como ela é um mundo em que a tentativa de argumentar com fatos é atropelada pela raiva.

Os “engenheiros do caos” exploram uma raiva de base a fim de provocar ondas de fúria, a distração permanente da lacração colérica e derrisória de “hashtags” e posts agressivos, a substância da nova política.

“Engenheiros do Caos” é o livro (em francês) do italiano Giuliano da Empoli, ensaísta pop esperto que analisa estrategistas e cientistas que assessoraram a ascensão dos principais demagogos autoritários do planeta.

Esses engenheiros utilizam massas de dados das redes (“big data”) a fim de provocar emoções extremas em grupos diversos, com mensagens quase individualizadas. O conteúdo de base dessa raiva não importa muito: abandono social, desesperança, desgosto com governos corruptos e tecnocráticos, com elites econômicas e intelectuais e inimigos do povo, reais ou imaginários. O demagogo autoritário não tem o plano de agregar cidadãos em torno de um programa de superação do mal-estar.

Os engenheiros do caos e seus algoritmos, escreve Empoli, levam as pessoas a “defender qualquer posição, razoável ou absurda, realista ou intergaláctica, desde que tenha a ver com as aspirações e os medos (principalmente os medos) dos eleitores”. O objetivo é provocar fúria e caos permanente, temperados por vaga promessa abstrata de “quebrar o sistema” que produz sofrimento.

As mídias sociais são um ambiente propício para a demagogia. A ideologia das redes, que tem seu elemento de verdade, é igualitária (parece que todos podem ganhar likes e serem ouvidos) e a da “democracia direta”, sem intermediação. A divulgação simpática da incapacidade intelectual, das gafes e da incompetência comuns a tantos demagogos autoritários reitera que o “líder” não faz parte da elite tradicional; as “fake news” e as grosserias demonstrariam autenticidade e independência, “sem frescura”.

O caos das redes, diz Empoli, tem um lado “festivo e libertário” como a confusão do Carnaval. Por lá, o ressentimento narcisista da gente comum e a quem não é dada importância, reconhecimento, explode na também carnavalesca quebra de hierarquias e na trolagem escarninha que zomba do poder, do especialista, do intelectual, do cientista, dos pedantes, protesto que ganha pela primeira vez voz individual, publicidade em massa, por causa das redes sociais.

O que fazer?

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